giz, gisela casimiro

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Linguagem Gráfica e Explícita


O primeiro livro que li da Gisela Casimiro, Estendais, entrou diretamente para a lista de favoritos (do ano anterior e de vida), porque tem uma forma muito bonita de bordar as palavras àquilo que observa, que a rodeia, que sente na pele. Estava desejosa de regressar à sua escrita, por isso, depois de a descobrir em prosa, fui lê-la em poesia.


um misto de mágoa, descoberta e humor

Giz é uma coletânea poética que também tem espaço para acolher uma espécie de diário de sonhos. De acordo com a autora, é o seu trabalho mais duro, porque, creio eu, é o espelho da sua história (ou de fragmentos da mesma), mas onde é possível reconhecer outros rostos, outras realidades. Mesmo que escreva na primeira pessoa do singular, há uma pluralidade subentendida, por vezes explícita, que nos permite compreender a quantidade de vezes que a mesma história se repete, sem que se tenha escolha. Com um tom autobiográfico, parece projetar o mundo inteiro nos seus textos.

O rapper e compositor brasileiro Emicida, no prefácio, descreve a poesia de Gisela Casimiro afirmando que «a sua caneta pode ser uma navalha ou uma folha que suavemente passeia junto ao vento», o que me parece a melhor descrição possível, porque, de facto, sentimos o embate como se nos cravasse uma faca no peito, para, logo de seguida, nos trazer sossego e esperança. Por outro lado, sinto que não poderia ser de outra maneira, uma vez que a vida é feita destas dicotomias, uma vez que nos tira o tapete e nos permite descansar. Mas esta oscilação nem sempre é equilibrada.

Não pode existir conforto quando estamos perante cenários de racismo, de violência, de assédio, de perda, de ausência, de dor. No entanto, e acho que é também por esse aspeto que a leitura é tão apelativa, os seus versos não carregam a mesma escuridão. Despertam-nos para o problema, consciencializam-nos sem recorrer a filtros, talvez transportem uma dose de tristeza nas entrelinhas, por um passado não tão longínquo, mas não se distanciam da possibilidade de regenerar. E são a prova de que mesmo no meio do caos há motivos para sorrir. A sua escrita é crua e não camufla aquilo que a sociedade (ainda) tem de pior, contudo, este talento para observar o que a rodeia e encontrar beleza nos detalhes, no improvável é inspirador e dá-nos outra perspetiva.

«A amizade é o jardim fechado onde nos demoramos mesmo depois de trepado o portão»

Dividido em quatro partes, Giz, para mim, foi alternando entre um misto de mágoa, descoberta e humor. Parece que, à medida que vamos avançando, saímos da rua, onde é necessário intervir acerca de uma série de questões, para entrarmos em casa, onde a conhecemos um pouco melhor, onde conhecemos as cicatrizes que ainda carrega, embora já tenham outro peso. Além disso, entramos num plano mais intimista ao termos acesso aos sonhos que a autora foi registando - e é curioso como existem temas recorrentes. Para terminar, creio que ficamos com uma nota para o futuro, que interliga diferentes pólos: o que foi, aquilo que pode ser reescrito e o que poderá vir.

Escrever com esta matéria que provém do calcário é algo que me continua a fascinar: pela versatilidade, pelas memórias, pela leveza e por permitir apagar e refazer. Em parte, sei que isso pode transmitir uma certa ausência de compromisso, talvez um certo medo do definitivo e da falha, mas acho que nos concede a possibilidade de aperfeiçoar, não porque se procure a perfeição, mas pelo desejo de deixar ir aquilo que já não nos serve. E sinto que a Gisela Casimiro, neste livro, também faz esse exercício de libertar o passado, no entanto, sem esquecer que ele fará sempre parte de quem é.

Giz reúne traumas, pessoas e preocupações; reúne coisas bonitas e apontamentos cómicos, que me arrancaram gargalhas sonoras. E confere uma noção de movimento, quase como se acompanhássemos o que é descrito ao segundo. Dentro de tantos poemas que poderia destacar, confesso que os meus favoritos foram «Aviso», «Ser Mulher», «Árvores», «Calma» e «Giz». E não posso concluir sem destacar uma frase que a autora escreveu acerca deste livro: «o giz parte-se tantas vezes, como eu. Mas continuamos a poder escrever mesmo com o pedaço mais pequeno», atendendo a que é mais uma forma de demonstrar a resiliência transversal a todas estas páginas.


🎧 Música para acompanhar: Giz, Legião Urbana

📖 Outro livro lido: Estendais

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