Entre Margens

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A BiblioLED (biblioteca pública para leitura e empréstimo digital) ficou disponível na área metropolitana do Porto. Assim, o meu primeiro passo foi percorrer o catálogo e o segundo, com a lista de leitura já bem composta, foi perceber que seria a oportunidade perfeita para voltar à escrita da Capicua. Depois de Aquário, que continua a ser um dos meus livros de eleição, fui descobrir a sua mais recente obra de literatura infantil.


aceitação e amor próprio

Cor-de-Margarida surgiu de uma forma encantadora, «enquanto contava uma história para adormecer o seu filho, Romeu», e, talvez por esse motivo, traga na sua essência o conforto e a delicadeza da descoberta; traga a necessidade de, desde o início do nosso crescimento, contactarmos com um reforço positivo acerca das nossas diferenças, das nossas particularidades, da imagem que vemos refletida no espelho. Nesta narrativa, Margarida sente-se mal, porque as suas pétalas não têm cor e o que ela mais queria era ter «o vermelho das camélias e o rosa das rosas». Aliás, a tristeza é tão profunda, que acha que não tem qualquer importância, até um dia em que tudo muda para ela.

Entrar em pormenores seria comprometer a experiência que tanto a escrita como as ilustrações da Matilde Horta nos reservam, no entanto, é extraordinário como a artista portuense parte de algo aparentemente simples e nos deixa a refletir sobre o impacto das comparações, sobre este desejo intenso de mudarmos aquilo que não gostamos em nós e, inclusive, sobre como é longo o processo de aceitação pessoal. Ademais, deixou-me a pensar na forma antagónica como nos observamos e como os outros nos veem, ou seja, aquilo que para nós pode ser um defeito, os outros podem sentir que é o que nos dá personalidade, charme, interesse. Portanto, esta noção será sempre muito relativa.

«Não há nada como este cheirinho a terra molhada»

É natural termos inseguranças, passarmos por períodos em que certas características nos incomodam e sentirmos que se fôssemos diferentes tudo seria mais fácil, mas creio que conversar sobre isso pode ser uma maneira de termos ferramentas que nos impeçam de ficarmos presos a esse registo. Não há bem uma fórmula que o elimine (num mundo idílico, quem sabe), mas podem existir estratégias que nos ajudem a compreender que nem todos os dias são de tempestade, que também há alturas em que o sol brilha e podemos sentir-nos radiantes. E fazê-lo na infância, quando as crianças «ainda estão a formar uma identidade», pode potenciar um crescimento sem culpas ou sem a perceção de que terão de corresponder a um determinado padrão.

Cor-de-Margarida tem um toque muito humano, até porque podemos transportar os seus elementos para o nosso quotidiano. Ademais, está longe de ser um livro só para crianças, uma vez que tem uma importante mensagem sobre amor próprio e aceitação. Com sensibilidade e humor, percebemos que é um processo que não fica concluído e que precisamos de o abraçar ao longo da nossa vida, para nos irmos descobrindo. E acho que levanta uma questão pertinente: será que se mudássemos tudo aquilo que não gostamos em nós nos sentiríamos melhor ou perderíamos tudo o que somos?


notas literárias
  • Lido a: 22 de fevereiro
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Infantil
  • Personagem favorita: As Formigas
  • Pontos fortes: a simbiose entre texto e ilustrações, a mensagem e a simplicidade
  • Banda sonora: Flores, Lázaro & Rita Rocha | Conforto, Afonso Pais & Capicua | Deslocado, Napa | Este Meu Jeito, Elisa

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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O som desenfreado da máquina de escrever ia enfraquecendo, acompanhando a delicadeza de algo que se vai tornando ausente, longínquo, quase como se fosse um sopro indetetável. E ali estava eu, novamente, a pensar na morte, no declínio que não sou capaz de adiar.

O mundo já não parece ser suficiente. Há um aborrecimento que me repele, que me leva sempre para longe, prolongando a sensação de esta ser a opção menos lógica de todas. Vou combatendo os fantasmas. Silenciosamente, mas vou, embora haja sempre aquela imagem a ecoar na minha memória. Forço-me a empurrá-la para um lugar recôndito, inacessível, mas ela arranja maneira de encontrar o caminho de volta. A minha avó, nos raros momentos em que me entrançava o cabelo, reforçava a ideia de as memórias serem a nossa cruz e a nossa salvação, em simultâneo, numa espécie de entidade com vida própria, independente. Nunca a compreendi muito bem. Até agora.

Estou de olhar atento sobre o Douro e há uma neblina que cobre a cidade. Ia jurar que parece compreender o meu fado, o discernimento turvo dos dias que me restam. Não, não estou a morrer, porque ninguém morre duas vezes. Ninguém pode morrer depois de lhe retirarem tudo pelo qual lutar. E eu não permaneço cá para quebrar essa inevitabilidade, permaneço porque é mais seguro manter enclausurado quem nos pode trazer problemas. É uma espécie de proteção, uma garantia de sobrevivência pornográfica, que nos enfraquece.

Já não há pressa, porque também já não há nada a esperar. Só o vazio, a ausência e o silêncio. Se é calada que me querem, deixarei que vençam, que acreditem que o fim está próximo e que trará um novo alento. Já não tenho pressa, apenas dor.

Uma lágrima mancha as folhas desordenadas de uma história sem rumo e, lá fora, a neblina já engoliu as duas margens.

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O sono é misterioso, cheio de reentrâncias, escuridão e possibilidades. Quando nos deitamos para dormir, não temos presente para onde escalarão os nossos sonhos, o nosso inconsciente. Ainda assim, se ficamos privados desta função natural básica, parece que existe um novo mundo a descoberto, que nos leva por caminhos sinuosos, pouco lúcidos, começando a afetar o nosso discernimento e, até, quem somos. É mais ou menos por esta odisseia que embarcamos no mais recente livro de Mafalda Santos.


uma odisseia de alucinação

Aquilo Que o Sono Esconde permite-nos conhecer Jaime, um solitário analista de seguros, «especializado em processos de acidentes de viação», que vive obcecado com o trabalho e, sobretudo, com o propósito de impedir que a seguradora indemnize os lesados, «como se o dinheiro saísse do seu bolso». Pouco empático e sociável, há um caso que o desconcerta e o deixa quase no limiar da loucura. Para ajudar, sem que isso estivesse nos seus planos, acaba num «bizarro baile de máscaras, para o qual não tinha sido convidado» e, desde esse momento, perde a capacidade para conseguir dormir.

Só tinha lido um livro da autora, Do Outro Lado, e fiquei fascinada com a sua forma de tecer arcos narrativos improváveis, mas cuja distopia aceitamos como se fosse a coisa mais natural que nos poderia acontecer. Neste livro em concreto, senti-o ainda mais, porque transborda de detalhes absurdos, mas que encaixam na perfeição, fazendo-nos acreditar que seria possível desenrolarem-se daquela maneira. A história aparenta ser simples, porém, cruzamo-nos sempre com camadas que nos deixam a questionar tudo.

«O silêncio que nos envolve quando choramos adquire um peso e uma densidade inconfundíveis»

Há um tom sombrio, sobrenatural, a pairar e isso não só aumenta a curiosidade, como também nos deixa investidos no mistério. Sou-vos sincera, detestei o protagonista, com todas as minhas forças, desde a primeira frase, no entanto, sei que dificilmente o esquecerei, atendendo a que a Mafalda Santos fez uma construção perfeita daquele homem. E, mesmo irritada com os seus comentários e com o modo como interagia com algumas pessoas, só queria compreender o que se passava com ele e, mais do que isso, desejei que ele tivesse uma resposta e que voltasse a adormecer, sem sentir que não tinha qualquer controlo na sua vida. Portanto, oscilei entre um constante revirar de olhos às suas intervenções e uma vontade de estar ao seu lado, para o auxiliar.

Feliz ou infelizmente, esta é uma narrativa sobre a qual não posso revelar muito, sem que acabe por comprometer a experiência de leitura. Por outro lado, creio que irem a saber o mínimo é a medida certa para que explorem os seus detalhes e o facto de terem histórias dentro de histórias, que é algo que me entusiasma sempre, uma vez que nos permite conhecer novas trajetórias. Se é alucinada? É, não tenho como negar, mas está tão bem escrita, e as sequências são tão apelativas, que foi impossível sair de expectativas defraudadas. Aliás, fiquei sem palavras para a conclusão e para a forma magistral como foi interligando cada situação, não deixando pontas soltas entre elas.

«A vida é um lugar inóspito onde toda a gente é estrangeira»

Aquilo Que o Sono Esconde inquieta-nos por aquilo que não conhecemos. E, quando se revela, talvez não estejamos preparados para o que se encontra do lado de lá da porta.


notas literárias
  • Gatilhos: Saúde Mental, Linguagem Explícita
  • Lido entre: 10 e 12 de fevereiro
  • Desafio: 6 autores para 2025
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Personagem favorita: Detestei o Jaime desde o começo, mas creio que dificilmente me esquecerei dele
  • Pontos fortes: Personagens bem construídas, a loucura da história e a naturalidade com que se desenrola
  • Banda sonora: Suspiro, Máximo & Selma Uamusse | Dream a Little Dream Of Me, Doris Day | Suite Bergamasque: Clair de Lune, Claude Debussy & Seong-Jin Cho | Merry Christmas, Mr. Lawrence, Ryuichi Sakamoto, Jaques Morelenbaum & Everton Nelson

Disponibilidade: Wook | Bertrand
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

Fotografia da minha autoria



vejo-te a mexer os lábios e acredito
que pronuncias algo de uma beleza singular
mas não te consigo ouvir
observo-te em gestos mudos
porque já não te tenho
já não estás aqui
e o som da tua voz foi-se perdendo

constringe-se o peito neste sofrimento
de já não te reconhecer pelas melodias
das tuas palavras, do teu sotaque vincado
dessa alma portuense que era todo o teu charme
e é como se nunca te tivesse ouvido
e tudo isto fosse apenas dor e uma miragem

de tudo o que perdi
o som da tua voz é o que mais me magoa
não recordar
mas abro a janela e ainda há
os teus botões de camélia a florir no jardim

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O meu bingo imaginário para 2025 não incluía ouvir um concerto de uma Orquestra, por outro lado, um dos propósitos é continuar a fazer coisas pela primeira vez. Assim, num encontro de amigas, fomos até à Casa da Musica assistir ao Concerto Solidário da Liga Portuguesa Contra o Cancro, dinamizado pela Orquestra Sinfónica do Porto.

A cinéfila que permanece adormecida em mim sentiu que um evento onde se tocaria a banda sonora de filmes icónicos seria uma forma bonita - e segura, talvez - de apreciar melhor este momento, uma vez que não tenho proximidade à música clássica. Só não estava à espera de ficar visivelmente emocionada, de pele eriçada e a pensar que não seria mal pensado repetir esta experiência, porque superou todas as expectativas.


Há uma certa magia quando uma sala se enche com melodias que reconhecemos de cor e, sobretudo, quando nos conseguimos transportar para cenas específicas. Embora não tenha visto todos os filmes musicados, foi impossível não imaginar as sequências narrativas de Harry Potter, não recordar o adorado E.T. e, inclusive, não relembrar o momento em que fui com o meu pai ao cinema ver Os Salteadores da Arca Perdida. Sei que uma parte do que me afasta deste género musical é não existir uma letra que me inquiete e que me deixe a pensar na mensagem e nas suas entrelinhas, mas, desta vez, impactada por tamanha harmonia, não me fez falta, porque tive memórias afetivas a preencher esse espaço, envolvendo-me em tudo o que estava a acontecer naquele palco.

A direção musical ficou à responsabilidade de Katharina Morin, uma maestrina alemã radicada em Munique. Enquanto a observava, dei por mim a pensar, por um lado, na exigência que é ter tantos músicos numa simbiose perfeita e, por outro, no quanto aquela imagem parecia uma dança delicada, por vezes de uma intensidade sôfrega, onde cada elemento sabia o exato momento em que tinha de deixar o outro brilhar e o segundo em que se reencontravam para brilharem em conjunto. Quem me dera ter conhecimentos suficientes para interpretar as passagens e, até, os seus silêncios.


Foi a primeira vez que assisti a um concerto na Casa da Música, e na sua tão aclamada Sala Suggia, e creio que não havia forma mais bonita e emocional de me estrear por lá.

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As crónicas do Bruno Nogueira continuam a sair na Sábado, no entanto, com exceção de textos pontuais, tenho evitado lê-las na revista, porque espero sempre que sejam compiladas num livro. Qualquer dia, reconheço, esta gestão é capaz de me correr mal, mas aproveitei a maré que se alinha e foi assim que cheguei ao seu segundo exemplar.


um tom melancólico

Dores Crónicas, parece-me, é uma viagem muito mais intimista pelos assuntos que o inquietam, pelos pensamentos que se reproduzem, repetidamente, em surdina e vão pairando sobre o seu quotidiano. Por esse motivo, notei um tom mais melancólico, por vezes, mais fatalista, concentrado naquilo que se perde com o tempo e com a ausência; ou, então, naquilo que povoa os cenários hipotéticos que construímos sem sabermos bem com que propósito. O Bruno Nogueira tem mais dez anos do que eu e é natural que as nossas visões do mundo se desencontrem em certos pontos, mas tenho sentido que, com o avançar da idade, tendo a olhar para algumas situações com nostalgia, quase como se lhes visse o fim (mesmo que não tenha capacidade para o adivinhar). Portanto, senti-me validada nos medos, nas irritações, na dificuldade em largar a mão.

Sou fascinada com o seu trabalho no humor, até porque cresci com essa referência, mas tenho descoberto uma camada ainda mais encantadora na escrita, talvez por ser tão humana e tão emocional - sem pender para a moralidade de quem acha que sabe tudo sobre a vida. E gosto mesmo que não tenha qualquer receio de demonstrar a sua vulnerabilidade e a tristeza que o habita em várias ocasiões. Acho que isso é fruto de um grande autoconhecimento, sem que se tenha passado a levar demasiado a sério.

«O Porto ensina-nos a todos uma coisa que feita por ele quase parece fácil: ensina-nos a genuinidade com que se deve receber alguém. Não há cerimónias na linguagem, no trato, na despesa que se tem com afectos. Quando alguém é amado pelo Porto, é uma boa oportunidade para se sentir especial»

Tenho várias frases destacadas, que ficaram a ecoar cá dentro e às quais quererei regressar, mas não posso deixar de destacar as cinco crónicas que mais me fizeram sentido: Melhor Assim, A Memória e a Criação, As Janelas Que Contam Histórias, Uma Família e Uma Escadaria e O Porto é Um País - esta última, surpreendendo um total de zero pessoas, é a favorita das favoritas, não só por ser sobre a cidade do meu coração, mas por todo o amor e consideração espelhados nas suas palavras sempre certeiras.

Dores Crónicas é sobre o tempo, a(s) memória(s) e o que nos pesa. Escrito num misto de leveza e intensidade, com sensibilidade e pertinência, acho que nos mostra que todos temos as nossas dores e que refletir sobre cada uma delas pode levar-nos a um sítio bom ou, pelo menos, mais esclarecido. Além disso, em simbiose com as ilustrações lindíssimas de Juan Cavia, acredito que nos mostra que nunca estaremos sozinhos.


notas literárias
  • Lido entre: 1 e 2 de fevereiro
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Crónica (Não Ficção)
  • Pontos fortes: A capacidade de observação, o tom melancólico e a forma como associa tantas imagens; as ilustrações do Juan Cavia
  • Banda sonora:  Rosa à Janela, Baile Popular | Tsunami, Richie Campbell & Gson | Do Avesso, Inês Marques Lucas | O Primeiro Dia, Sérgio Godinho | Margens do Douro, Mundo Segundo, Maze & Macaia

Disponibilidade: Wook | Bertrand 
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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Os versos da Tempo tornaram-se próximos, mas não o suficiente para que crescessem raízes. Alma Nua estreitou laços, no entanto, tenho a certeza de que foi com underwater, em colaboração com Diogo Piçarra e Frankieontheguitar que fiquei atenta a Van Zee.

O cantor e compositor madeirense fez do mar a sua imagem de marca: pelas origens, pela tradução do seu nome artístico do holandês e pelo nome do seu segundo álbum, um dos meus favoritos de 2023 e que continua a marcar vários momentos do meu dia e, inclusive, a embalar algumas sessões de escrita. Há qualquer coisa nas suas letras que magnetizam, que me agitam por dentro, tal e qual aquele pedaço infinito de azul.

   

Tem sido um privilégio vê-lo a navegar e a alcançar o seu lugar no panorama musical português, uma vez que não só lhe reconheço talento, como também sinto que chegou com os valores certos, sem egos e com uma enorme vontade de estar pela música. Por esse motivo, depois de assistir ao seu concerto na Queima das Fitas do Porto, estava desejosa de o ver numa grande sala, com outro tipo de condições, em nome próprio, o que aconteceu no passado dia 15 de fevereiro, num Coliseu do Porto bem composto.

A fila já deixava antever um público em perfeita simbiose com o artista e a banda, mas a forma como a sala se uniu para cantar as mesmas canções foi especial, muito mais do que aquilo que imaginei. Não tenho destreza para acompanhar a velocidade com que transita entre versos, ainda assim, foi impossível não tentar acompanhar, não dançar, não sentir a energia de quem estava em cima do palco a fazer a festa. Além disso, dei por mim a comover-me em alguns temas. Fazendo uma travessia pelos seus trabalhos mais antigos, presentes em Aporia, e pelos mais recentes, que culminam no tão bem bordado Alta Costura, em parceria com o guitarrista Frankieontheguitar, um dos aspetos que mais me impressionou foi o equilíbrio que conseguiu nessa viagem, ao ponto de crer que não fazia sentido existir qualquer outra sequência musical.

Estava, particularmente, curiosa para escutar Como Seria? / Amor Sóbrio, Ainda Prendes o Cabelo e Bravos ao vivo e sei que me apaixonei um pouco mais por estas músicas. Em simultâneo, queria muito ouvir a Even com o Richie Campbell, embora não tivesse garantias de que pudesse acontecer: aconteceu e foi, sem sombra de dúvidas, um dos meus momentos favoritos da noite. Por outro lado, percebi que a Pull Up cresceu em mim, e acho que essa é uma das coisas mais bonitas de estar num concerto, uma vez que sentimos a emoção do artista e ficamos a conhecer os temas de outra maneira. Para Casa continuará a ter um lugar cativo no meu coração e foi maravilhoso ter o Ivandro a cantar a Chamadas, bem como o Bispo a trazer-nos a inigualável Bênção.

   

Fica Só marcou o final do espetáculo, com todos os intervenientes em palco. Apesar de terem sido quase duas horas, fiquei com a sensação de que ninguém queria ir embora, para não se quebrar o encanto do que vivemos e prolongá-lo. Ninguém me perguntou, mas ficarei por perto. E, como canta Johnny Virtus, «para onde vais ou também vou».

Espero que o farol que nos iluminou toda a noite continue a ser a luz que o norteia, porque o Van Zee só não chegará onde ele não quiser. Que concerto extraordinário!

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A voz de Caetano Veloso, em Cajuína, questiona-nos sobre «a que será que se destina» esta ideia de existirmos. Talvez não haja uma resposta fechada, única, contudo, Ana Bárbara Pedrosa fez deste verso um mote para explorar a criação e, acima de tudo, para nos trazer uma versão diferente daquilo que encontramos escrito na Bíblia.


uma tentativa de repor a verdade

Palavra do Senhor remete-nos para uma aclamação litúrgica, permitindo-nos ouvir a voz do Criador. Neste caso, Deus narrar-nos-á os acontecimentos desde o princípio do mundo, sempre de uma perspetiva muito humana, para que reflitamos acerca do que foi sendo distorcido ao longo do tempo, porque o Homem leu, mas entendeu tudo mal.

A premissa intrigou-me de imediato, se calhar, por me sentir cada vez mais afastada da religião e das versões que se sobrepõem e contradizem. Continuo a ter as minhas crenças, mas sei que coloco mais coisas em causa, que questiono mais, que me vou tornando mais cética em relação a alguns propósitos. Não fui batizada por escolha pessoal, mas andei na catequese até fazer o crisma por vontade própria, fui acólita e andei no coro da Igreja pelos mesmos motivos. Olhando para esse trajeto, creio que precisei de passar por cada uma dessas etapas para chegar a este ponto: ao ponto de ser capaz de não aceitar tudo o que é invocado, somente por estar num livro sagrado.

Ana Bárbara Pedrosa não menospreza, ainda assim, a religião católica, traz-nos é um olhar crítico sobre a mesma e sinto que esse é um dos pontos fortes da narrativa, não só porque nos desarma com a sua abordagem em relação à ação d’ O Altíssimo, mas também porque nos obriga a analisar o nosso comportamento (enquanto crentes ou não), uma vez que tendemos a inverter e distorcer as mensagens consoante as nossas necessidades. E, por causa disso, fiquei a pensar no quanto é fácil escolhermos um bode expiatório, desculpabilizando-nos com o facto de agirmos sob a sua influência.

«Afinal, educar é isso: não cortar as asas, mas mostrar até onde vai o céu»

Imaginar Deus, em nome próprio, como um comum mortal, a vir esclarecer boatos, mal-entendidos e motivações dúbias, admito, teve a sua graça, muito por causa da escrita da autora. De um modo ousado, colocou-o ao nosso nível, com as mesmas inquietações, com rasgos de desapontamento, com obsessões, com emoções à flor da pele, com paixões, com sonhos, com um traço de emotividade que mais parece uma montanha russa a oscilar. Achei isso original e motivou-me para avançar na leitura, mas, por outro lado, sinto que este livro não ficará comigo, porque pareceu-me que a concretização acabou por esmorecer, tornando a narrativa um pouco repetitiva.

Palavra do Senhor explora limites, a desilusão agregada à falta de compreensão e erros. Dividido em duas partes, queria que a proposta tivesse mais espaço para amadurecer.


notas literárias
  • Lido entre: 3 e 5 de fevereiro
  • Desafio: 6 autores para 2025
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Pontos fortes: A crítica à Igreja Católica e a humanização de Deus
  • Banda sonora: Eva, Ivete Sangalo | Cajuína, Caetano Veloso | Na Escola, Os Quatro e Meia

Disponibilidade: Wook | Bertrand
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Uma sessão de escrita matinal foi a oportunidade perfeita para riscarmos mais um restaurante do roteiro gastronómico. Uma vez que a Sofia abraçou a missão de experimentar 12 francesinhas diferentes, este ano, e eu nunca recuso comer francesinha, a escolha foi imediata.

   

O Capa na Baixa, localizado na Praça de D. João I, pertence ao grupo Capa Negra, cujo propósito é manter a identidade portuense, mas acrescentando-lhe «um look mais moderno e novas sugestões». Já tinha ido ao Capa no Rio algumas vezes e a experiência foi sempre positiva, portanto, estava bastante curiosa - e expectante - para conhecer este restaurante.

Devo confessar que fiquei surpreendida assim que entrei, porque achei, pelo que via de fora, que a sala seria mais pequena. No entanto, é bem maior do que imaginei, sem perder um traço acolhedor, corroborado pelo atendimento simpático e sempre prestável. Outro aspeto que achei interessante, foi o facto de terem um botão incorporado nas mesas, que nos permite chamar um dos funcionários, cancelar ou pedir a conta. Creio que é um método benéfico para todos.

   

Para entrada, pedimos um dos famosos rissóis de carne, que estava delicioso. Para acompanhar a refeição, pedi uma Munich Dunkel, uma cerveja de perfil torrado, com aroma a frutas secas e um travo a caramelo - achei curioso que os sabores fossem ficando mais evidentes à medida que ia bebendo. Já a francesinha escolhida foi a Rainha do Capa, a especialidade da casa, com bife de coração de alcatra, e cumpriu todos os requisitos: carne suculenta, picante na dose certa e um molho líquido, mas não em demasia. Como acompanhamento, pedimos ovo e uma dose de batatas, suficiente para duas pessoas (estes acompanhamentos são pagos à parte). E terminei o almoço com um Cheesecake de Maracujá.

Se forem do Porto, morarem perto ou estiverem de passagem, recomendo imenso que incluam o Capa na Baixa no vosso roteiro. Sem qualquer dúvida, vou querer regressar.

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Os parques de estacionamento são espaços funcionais, que cumprem um propósito muito específico. Mas já pararam para pensar na quantidade de histórias que podem esconder, sem que nunca sejamos capazes de as desvendar? Eu nunca tinha feito esse exercício de análise, até que assisti à mais recente produção nacional da RTP Lab.

Lugar 54, composto por cinco episódios, parte do mesmo cenário para nos mostrar a pluralidade de narrativas que conseguem passar pelos mesmos metros quadrados, ao longo do dia. Bernardo Lopes e Francisco Mira Godinho procuraram criar um lugar comum, onde seria fácil rever-nos, porque existem pedaços destas histórias que, de facto, podiam pertencer-nos. Assim, do drama à comédia, e com um toque de terror pelo meio, acompanhamos momentos distintos, que levantam inúmeras perguntas.

Não quero entrar em detalhes, para não correr o risco de relevar demasiado sobre os episódios, mas sei que fiquei com outra perspetiva dos sítios por onde passo, daquilo que guardam sem que esses fragmentos nos toquem, daquilo que vai acontecendo em simultâneo sem que sejamos capazes de marcar a trajetória e viver as suas nuances. Aliás, quando voltar a um parque de estacionamento, sei que darei por mim a pensar na quantidade de realidades que se cruzaram ali e que acabaram por seguir caminho.

Neste lugar de passagem, um carro avança, deixando as marcações vagas, e outro chega para o ocupar, sem fazer ideia «das emoções que nele habitaram», do medo, das promessas que se quebraram, do desencanto, dos diálogos intensos, dos pensamentos, da esperança e/ou da carência de futuro. As histórias sobrepõem-se, no entanto, são incontáveis, porque fora dali mais ninguém as conhece, ainda que possam estar a viver algo semelhante. E foi esta noção que mais me fascinou na série, porque é como se estivéssemos a assistir a um jogo de luzes e de sombras ou, então, a contar segredos.

Lugar 54 traz-nos planos de fuga, problemas com drogas, memórias que se esfumam, conversas inconsequentes, deslumbramento e crime. Não me senti impactada em todos os episódios da mesma forma, talvez por estar longe de algumas experiências, mas gostei bastante da humanidade que espelharam, da credibilidade das reações e do facto de deixarem perguntas em aberto, porque a verdade é que não permanecemos nos locais durante os mesmos períodos de tempo, portanto, há coisas que acabaremos por não descobrir. Essa janela entreaberta aguça a curiosidade para vermos mais.

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A culpa pode assumir várias formas e atormentar-nos uma vida inteira, porque tem a capacidade de se alicerçar a tudo aquilo que vivemos, minando as nossas emoções e o modo como reagimos e/ou superamos certas adversidades. No seu romance de estreia, Susana Piedade leva-nos até à cidade do Porto para que o compreendamos melhor.


o que se esconde nos silêncios

As Histórias Que Não Se Contam é uma porta aberta para as histórias de três mulheres: Ana, cujo namorado faleceu precocemente, Isabel, que chegou tarde ao infantário, e Marta, num relacionamento que está longe de ser movido por amor. É no hospital, por conta de um acidente, que as vidas destas desconhecidas se cruzam, mostrando-nos que a dor, o luto e a solidão serão pontes a uni-las. Para cada uma delas, o presente tornou-se um lugar difícil para se estar, no entanto, haverá algo a proporcionar-lhes o alento necessário para lutarem, sararem e se reerguerem: a amizade a nascer do caos.

Tive necessidade de avançar na leitura devagar, não porque a escrita seja inacessível e pouco fluída, mas porque sentimos o peso do sofrimento, dos traumas enraizados que destroem qualquer rasgo de esperança. Acima de tudo, porque o mais intuitivo é ler estas partilhas e ficarmos a pensar no que faríamos, caso estivéssemos numa situação semelhante. Enquanto mulher, sei que houve gatilhos a ativar algumas preocupações, mesmo sem ter experienciado estas situações em concreto. Não obstante, parece-me inevitável transpor-me, idealizar todos os cenários e ver tudo aquilo a acontecer(-me).

«Trago o escuro da noite dentro de mim, um manto negro e denso sem mistérios»

É a terceira obra que leio da autora e, não me interpretem mal, um dos aspetos que mais me fascina na sua arte nem é tanto a construção das narrativas (embora sejam entusiasmantes), é mais o arco de crescimento das personagens e a sensação de que a ação podia ser baseada em factos reais. Retratando vidas e pessoas comuns, há um elo que nos aproxima e que nos impulsiona a colocar as nossas decisões em perspetiva.

Ana, Isabel e Marta partilham silêncios, comunicam pela perda e compreendem-se nesse espaço de ausência e de impotência, no qual a culpa parece ter sempre uma palavra final, porque deveriam ter estado, ter chegado, ter identificado sinais; porque assumiram que a responsabilidade é delas e que tudo seria diferente se optassem por outro caminho. Ora, acredito que vamos aprendendo que os «ses» não nos trazem mais do que angústia, já que nada nos garante que o desfecho seria diferente, mas é difícil libertarmo-nos dessa convicção, sobretudo, quando estamos emocionalmente frágeis.

Sinto que nos vamos envolvendo nas histórias das protagonistas como se elas fossem nossas amigas, por isso, não existe espaço para julgamentos, apenas empatia. E ainda que tenha achado que a narrativa se estende em algumas partes e que nem sempre é fácil reconhecermos a voz delas (gostava que houvesse uma diferenciação maior no discurso de cada uma), compreendi o propósito e fiquei presa até à última página.

«Medo de os ver ir para um lugar de onde nunca mais voltem, como se nunca tivessem existido. Medo de os esquecer, de me deixarem sozinha quando a solidão for tão brutalmente insuportável como sei que um dia será. Todos nós sozinhos, presos em memórias sem tempo, um lugar sem nome, tantas histórias por contar»

Estas mulheres foram-se reencontrando e redescobrindo, porque ninguém permanece igual perante a perda: trocamos as certezas pela desorientação, a felicidade pelo vazio, uma casa cheia por um futuro incerto. Sentimo-nos um caco e não é possível colar os estilhaços. Mas, por mais que demore, vamos percebendo que não estamos sozinhos e que há braços que não nos deixam cair. Cheguei ao fim do livro com a impressão de que esta é uma das suas maiores mensagens, porque partilhar a dor também nos salva.

As Histórias Que Não Se Contam, para além de ser uma ode ao poder da amizade, é um alerta para a importância de conversarmos sobre determinados assuntos. Tendemos a calar o luto e o sofrimento porque nos fragilizam e achamos que é uma maneira de nos resguardarmos, mas isso pode ser só mais uma forma de aumentar as feridas, já que não as curamos como seria suposto. Num mundo idílico, ninguém teria de se despedir de quem ama, nem de lidar com o sufoco da violência, por isso, sim, cada uma destas histórias precisa de ser contada, para que nos escutemos e quebremos as amarras.


notas literárias
  • Gatilhos: Luto, Violência Doméstica
  • Lido entre: 20 e 26 de janeiro
  • Formato de leitura: Físico
  • Género: Romance
  • Pontos fortes: A escrita e o enredo próximo, a ação passada no Porto e a relação de amizade
  • Banda sonora:  Laços, Toranja | Rosa Branca, Mariza | Carpe Diem, Maurice Jarre | Eu Deixei, Carolina Deslandes | Saudade, Saudade, Maro

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
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Fotografia da minha autoria



o teu corpo pequenino, inofensivo
quedou-se em silêncio
naqueles rasgos de ausência que
insistentes na memória
começam a ser cada vez mais turvos

o choro deixou de invadir a sala
o gargalhar já nem existia
e esses olhos esbugalhados
de quem come o mundo sem
o compreender
foi-me roubado do colo

ficou só um quarto vazio
com paredes emolduradas de sonhos
e o cavalinho de baloiço
não é mais do que uma promessa
que nunca se chegou a cumprir

Fotografia da minha autoria



A ideia de frequentar um estabelecimento de ensino pode ter tanto de entusiasmante como de assustador, porque existem dinâmicas que não compreendemos e talvez não estejamos preparados para todos os segredos que aqueles corredores escondem. Ainda assim, Faridah Àbíké-Íyímídé tentou transportar-nos para essa envolvência, a partir da perspetiva de alguém que passou a maior parte do seu percurso académico a ter aulas em casa.


quando nem tudo é o que aparenta ser

A Cama Onde Elas se Deitam concentra-se na história de Sade Hussein, uma jovem «prestes a começar um novo ano do secundário» na prestigiada Academia Alfred Nobel. Esta mudança é, no fundo, uma tentativa de recomeçar e de encontrar um rumo diferente para o infortúnio que tem sido a sua vida, só não contava que logo na primeira noite no colégio a sua colega de quarto, Elizabeth, desaparecesse de uma forma estranha e a comunidade estudantil desconfiasse que ela poderia ter algum tipo de envolvimento no seu desaparecimento.

A premissa intrigou-me desde o início e creio que a autora tem um talento especial para transmitir uma aura sombria nas suas palavras, o que já tinha sentido no livro anterior, Às de Espadas. Há alturas em que ainda não aconteceu nada de relevante, nada que nos deixe desconfiados, mas é inevitável sentirmos que deve estar para breve: pelo ambiente, pelos diálogos que ficam em suspenso, pelas pistas que vão surgindo nas entrelinhas. Além disso, por ser uma construção narrativa com um ritmo mais lento, a tensão torna-se quase palpável.

O livro está cheio de simbolismos, mensagens em código e personagens complexas. Enquanto o quotidiano avança numa falsa normalidade, vamos percebendo que há ligações por conveniência, que algumas peças não encaixam como deveriam e, sobretudo, que nem tudo o que é dito pode ser assumido como certo. E este último ponto, para mim, foi um dos mais estimulantes da história, porque nenhuma personagem é cem porcento confiável, porque todas elas têm algo a esconder: desde pequenas omissões a comportamentos condenáveis. 

«O mau pressentimento voltou a afundar-se em si, subindo-lhe pelos braços. Não acreditava em coincidências. A sua vida até então tinha sido uma série de ratoeiras cuidadosamente montadas pelo Universo. E a piada era sempre ela»

Os temas explorados são de máxima importância, não só por exporem o patriarcado e o silêncio daqueles que poderiam fazer uma diferença positiva e escolheram compactuar com jogos de poder, mas também por reforçarem que há heranças do nosso passado impossíveis de largar. Gostei que a leitura me permitisse traçar tantas teorias, que me revoltasse e me enganasse em certas passagens, no entanto, senti que se estendeu demasiado em detalhes que acrescentaram pouco ao enredo, fazendo com que a justificação fosse precipitada.

Depois de terminar a leitura, cruzei-me com um comentário de alguém que dizia que tinha gostado mais do conceito do que propriamente do livro em si e, em parte, relacionei-me. Não porque não tenha gostado da história, mas porque pareceu-me que as personagens foram crescendo mais do que aquilo que, depois, foi entregue na ação. No fundo, acho que queria ter encontrado um equilíbrio maior entre estas componentes, porque havia potencial para isso.

A Cama Onde Elas se Deitam mostra-nos a importância de termos uma comunidade e o poder da denúncia, ainda que continue a existir tanto por fazer, tantos estigmas por quebrar. Em simultâneo, embora seja uma obra de ficção, deixou-me a pensar na podridão que se esconde em locais considerados de elite, o que só comprova que a ausência de valores abarca todos os estratos sociais, a diferença talvez esteja na forma como, à posteriori, estes são camuflados.


notas literárias
  • Gatilhos: Agressão Sexual, Luto, Uso de Drogas
  • Lido entre: 16 e 19 de janeiro
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Jovem Adulto
  • Personagens favoritas: Baz e Persephone
  • Pontos fortes: os temas, a aura misteriosa, a relação de amizade que se foi construindo
  • Banda sonora: Trevo (Tu), Anavitória & Diogo Piçarra | You First, Paramore | You're The One That I Want, John Travolta & Olivia Newton-John | Haunted, Beyoncé | Poet (Music Box), Invadable Harmony | New Girl, Labrinth

Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)
Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

Fotografia da minha autoria


O início dos anos 80, no Algarve, ficou marcado por momentos de terror, uma vez que o gangue FP-27, liderado por Faustino Cavaco, protagonizou vários assaltos na região. Ao todo, contabilizaram-se vinte a bancos e a «fuga da prisão de Pinheiro da Cruz».


impressões depois de ver o primeiro episódio

A série O Americano, que estreou na primeira segunda-feira de dezembro, foca-se na história dos «irmãos Cavaco», considerada uma das mais intrigantes, uma vez que colocou em evidência não só as inúmeras facetas da criminalidade e a habilidade do grupo, mas também a precariedade e a necessidade de sobreviver a todo o custo.

De acordo com o realizador Ivo M. Ferreira, O Americano «assume um tom western de uma certa portugalidade rural». E, embora seja cedo para tecer uma análise profunda ao enredo, acho que o episódio inicial já nos deixa antever o quanto é ténue a linha que separa a honestidade da trafulhice, sobretudo, quando as dificuldades financeiras ampliam uma constante sensação de sufoco. Ademais, é tentador transpor limites quando nos prometem uma solução rápida, praticamente inconsequente. Mas será que os meios justificam os fins? Será que o risco compensará olhar por cima do ombro?

Achei interessante o espelho da dúvida e o prenúncio de mudança, porque, perante momentos de tensão, que nos tiram o tapete, não é assim tão óbvio sermos capazes de nos mantermos fiéis aos nossos valores. Entre negócios, festa e ligações questionáveis, a tragédia permanecerá à espreita. E o jogo de manipulação será um aliado de peso.


considerações finais sobre a série

A história de um gangue que aterrorizou o Algarve, no início dos anos 80, foi a minha companhia nas últimas semanas. Nesta adaptação ficcionada, inspirada «na história verdadeira dos irmãos Cavaco», como referi antes, ficamos a conhecer a extensão dos danos, que incluem não só assaltos, mas também homicídios, «nomeadamente de três guardas prisionais».

Eu ainda não tinha nascido quando tudo isto aconteceu, no entanto, considerando as palavras do realizador da série, foi um assunto que dominou o país, não só o Algarve, uma vez que a fuga do estabelecimento prisional de Pinheiro da Cruz foi uma das mais minuciosas e violentas e os criminosos andavam a monte. Portanto, só houve um pouco de sossego quando os envolvidos foram capturados. Faustino Cavaco, mais conhecido com O Americano, foi o último a ser encontrado, saindo da prisão em 1999.

Inevitavelmente, uma situação desta magnitude desperta interesse e, quase quarenta anos depois do sucedido, talvez os traumas que possam existir comecem a dar lugar a uma análise distanciada, menos emocional, que nos permita refletir sobre motivações e sobre a forma como este grupo foi atando todas as pontas soltas para que os crimes fossem bem sucedidos, trazendo-lhes estabilidade financeira e um estatuto social. O importante era aparecer, mas nunca ser visto por aquilo que acontecia nas sombras.

Um aspeto que, para mim, ficou claro no decorrer dos oito episódios foi o quanto a vida das personagens estava intimamente ligada à história do país, sendo um espelho do panorama político, das fragilidades económicas, do equilibrismo necessário para manter negócios rentáveis (e legais), enquanto patrões falhavam ordenados, as famílias aumentavam e o futuro risonho parecia escapar por entre os dedos. Claro que nenhum dos cenários desculpabiliza as ações do gangue, nem é esse o propósito, mas creio que se torna evidente que surge como uma consequência de cada um deles, da necessidade de sobreviver e de não passar a vida a contar tostões, perante a incerteza do amanhã.

A concretização deste argumento expõe a violência e o medo sentidos na altura, bem como todos os desafios e as relações duvidosas, mas também parece ter um tom de inocência, muito por causa de algumas decisões irrefletidas do protagonista. Embora nos faça acreditar que sabe o que está a fazer, pela firmeza do diálogo, pela maneira como ludibria aqueles com quem se cruza, não deixa de ser um homem de 20 e poucos anos a jogar um jogo demasiado perigoso para a vida que ainda não tinha feita.

Faustino foi-me desconcertando, por um lado, pela sua postura fechada, de quem não chegou para fazer amigos, e, por outro, pelo seu sentido de lealdade. Nem sempre foi prudente, mas a sua inteligência minimizou as fragilidades. E em vários episódios dei por mim a pensar que parecia ser duas pessoas completamente diferentes, porque era impossível que um homem tão preocupado com os seus não tivesse qualquer prurido em atormentar terceiros, se se revelassem um estorvo nos seus esquemas. Além disso, questionei-me se, em algum momento, ele quis mesmo fugir, recomeçar noutro lugar, ou se há promessas inquebráveis que mudam o curso da nossa história para sempre.

Apesar de não ser possível identificar com precisão o que é real e o que foi pensado para o enredo, há mensagens que ficam a pairar: uma delas é que «o mal existe para lá das pessoas», outra é que o lugar de onde vimos nos molda, mas que não é o único responsável por quem nos tornamos. Aliás, comprovamo-lo com as personagens de Cavaco e de Godinho, cujos caminhos e desfechos não poderiam ser mais opostos.

O Americano transita entre o passado e o presente, até que se tornam parte da mesma matéria. Transportando-nos para as guerras que cada um carrega por dentro, admito que terminei comovida, porque existe uma certa poesia nas cenas finais: ainda que não seja possível esquecer, compreendemos que talvez ninguém seja genuinamente mau.

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O Festival da Canção está quase de regresso e, por esse motivo, há uma nova razão para celebrarmos, por um lado, a vitalidade da música portuguesa e, por outro, a descoberta de novos talentos - ou o reforço de admiração por artistas que já são conhecidos do público.

No total, são 20 as músicas a concurso: «14 resultam de convites feitos diretamente (...) e seis selecionadas após um processo de livre submissão». As semifinais estão marcadas para 22 de fevereiro e 1 de março, enquanto a final acontecerá no dia 8 de março. À semelhança das edições anteriores, a transmissão destes três momentos é da responsabilidade da RTP.

Com a lista disponível no Youtube e no Spotify, fiz aquilo que faço sempre: entrar numa espécie de retiro para escutar todos os temas seguidos e, depois, listar aqueles que me chamaram mais à atenção. Numa primeira análise, senti que havia uma maior diversidade nas propostas e, curiosamente, que havia assuntos transversais a algumas letras. O que não deixa de fazer sentido, atendendo a que refletem problemas da sociedade, questões que nos inquietam e que fazem mossa num futuro que ambicionamos mais estável. Por outro lado, acho que as canções estão muito equilibradas, dificultando a escolha. Pela primeira vez, que me recorde, pelo menos, não fui capaz de identificar logo a minha favorita, portanto, continuo expectante.

Creio que existem temas que poderão crescer com uma atuação em palco e mudar a minha perceção dos mesmos, apesar disso, cheguei a um confortável grupo de seis favoritos.






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andreia morais

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O meu peito pensa em verso. Escrevo a Portugalid[Arte]. E é provável que me encontrem sempre na companhia de um livro, de um caderno e de uma chávena de chá


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