restos do vento

Fotografia da minha autoria



A lengalenga «vem o vento do deserto, misturar o errado e o certo/vem o vento, sopra forte, não é ele que traz a morte» é pronunciada por um grupo de jovens, vestidos com trajes típicos de uma tradição pagã. Este momento mais não é do que um ritual de passagem «para aqueles que se vão tornar homens», perpetuando um comportamento de humilhação e de masculinidade tóxica, e uma perseguição gratuita às raparigas.

O momento é, aparentemente, inocente, integrando as festas da vila, mas há um dia em que algo não corre conforme o esperando: um dos elementos do grupo de 1995 tem um ataque de consciência e revolta-se contra aquela prática excessiva. O que se sucede deixará marcas profundas naquela vila do interior do país e em cada um dos envolvidos, mais concretamente em Laureano, a principal vítima desta insanidade.

O meu primeiro pensamento, enquanto assistia às cenas iniciais, foi para o quanto nos escudamos na tradição, aceitando determinados procedimentos que, muitas vezes, colocam em causa a integridade física e a dignidade de terceiros. Por consequência, fiquei incomodada com a apatia e, pior, com a banalização daquela situação, marcada por comportamentos de violência extrema. Neste ponto, também fiquei a questionar-me sobre aquelas que acredito serem algumas das questões do filme: o que é que justifica a agressividade? Estará o mal assim tão enraizado para não o combatermos?

As mazelas não foram esquecidas, nem podiam, e os traumas do passado acabam por regressar. 25 anos depois, o grupo reencontra-se e há, aqui, um vislumbre do quanto as vidas seguiram por caminhos tão distintos: enquanto Laureano subsiste de um modo precário, todos os outros têm empregos, famílias e um propósito. A ironia atroz deste destino inquieta, por um lado, porque demonstra a impunidade e, por outro, porque nos faz acreditar que a maldade compensa. Afinal, quais foram as consequências?


A calma do quotidiano não está isenta de um prenuncio de tragédia, como se aquela vila e aquelas pessoas ainda se estivessem a preparar para o pior. Cruzando várias realidades, parece que os ares de outrora chegam para um ajuste de contas, mas sem pressas, talvez para que as feridas reabram, talvez para que exista uma mudança.

Foi impossível ficar indiferente a este argumento, tão bem construído e com atores de luxo, porque é palpável o rancor, o luto, a mágoa e a impulsividade. Há jogos de poder que se repetem, quase como se fossem um legado geracional, uma passagem de testemunho, ainda que inconsciente. Além disso, é feito de alegorias que apenas acrescentam mais densidade à ação. Nunca nada é dito na totalidade: vai-se intuindo, vai-se descobrindo, camada a camada, nas expressões da comunidade, nos silêncios.

Filmado em Meimão, no concelho de Penamacor, o filme de Tiago Guedes faz um retrato muito credível e humano de uma população de um meio rural, no qual há marcas que o tempo não apaga. Sem querer ofuscar o restante elenco, permitam-se só fazer um destaque à interpretação de Albano Jerónimo (Laureano), que está sublime!

Restos do Vento mostra-nos que existem ciclos difíceis de quebrar, que a culpa nem sempre é sentida e que o sofrimento pode cegar. Oscilando entre a violência, o medo e o discernimento de saber o que é certo e o que é errado, creio que este filme também é sobre perdoar ou, então, sobre como podemos escolher a bondade, mesmo que nos tenham ferido de formas insanáveis. 25 anos depois, a história repetiu-se, no entanto, foi mais longe: se calhar, para provar que não saímos assim tão impunes. Se calhar, para provar que, em algum momento da vida, teremos de responder pelos nossos atos.

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