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| Fotografia da minha autoria |
A ideia de se prescrever literatura para determinadas maleitas é, por um lado, poética e ligeiramente utópica, mas, por outro, é uma imagem fidedigna do quanto as palavras nos podem nutrir de formas que mais nenhum outro recurso é capaz. Numa dimensão paralela, usar a literatura como escada para mudarmos os nossos hábitos alimentares parece despropositado e, ainda assim, uma estratégia entusiasmante, porque existem acasos transformadores, como podemos comprovar com o protagonista desta história.
de revelação poética em revelação poética
Dieta da Poesia permite-nos conhecer Bazulaque, «alguém que gosta muito de comer e que come tudo o que pode». Quando não consegue alcançar os potes mais altos, serve-se dos livros para lá chegar, mas, certo dia, sofre um acidente que inverte a narrativa e a sua fome deixa de estar direcionada para a comida e passa a ter as palavras como foco. Numa tentativa de saciar «essa nova fome pela leitura», António de Lousada vê o mundo com mais atenção e, inclusive, «a forma como os outros o veem transforma-se».
É a partir deste momento que a aventura começa, não só porque o protagonista se vai reencontrando consigo e com as suas verdadeiras prioridades, mas também porque se vai cruzando com histórias que o ajudarão a inverter a sua compulsão alimentar. Neste caminho que passa a trilhar, ainda assim, ecoa a noção de que, por vezes, se transita de uma obsessão para outra, o que pode não ser o hábito mais saudável, no entanto, os benefícios que Bazulaque elenca, ao construir uma dieta tão particular, demonstram resultados. E sinto que isso se deve, em grande parte, à sua mudança de mentalidade.
De revelação poética em revelação poética, conhecemos personagens secundárias que embelezam a travessia e que acrescentam uma pitada delicada — ora doce, ora amarga — à certeza de que a literatura nos deixa com mais saúde física e mental. Mas a magia deste livro, para mim, não está na dieta, nem no ato de emagrecer, está no modo como um segundo de espanto planta uma semente de mudança, como uma decisão nos pode libertar ou aprisionar, como, por vezes, estamos conscientes da verdade e preferimos acreditar numa ilusão que nos apazigua o medo, a dúvida, a ausência, a dor; está no modo como todas as nossas camadas reaparecem como se despíssemos uma magnólia.
«(...) de repente, o Bazulaque descobriu a adolescência, não porque as suas hormonas o ditavam, mas porque a poesia o despertava e o transformava»
Apaixonada por palavras desde que aprendi a combinar letras, este livro escalou muito rápido para um lugar especial. Talvez não entre nos favoritos dos favoritos do autor, mas sei que dificilmente esquecerei a paixão com que Bazulaque abraçava os acasos, os pequenos milagres, as coincidências, os pedidos mais inusitados. Porque há, aqui, um sentido de humanidade e comunidade impressionantes, há um cuidado com o outro que comove e que nos mostra que o melhor lado da vida é este que se constrói em laços sociais. Sinto que Afonso Cruz trouxe o ânimo das palavras e a certeza de que a prosa e a poesia fazem muitas perguntas sem terem a obrigação de dar qualquer resposta, porque trazem algo mais importante: mater-nos em movimento constante.
Dieta da Poesia é uma narrativa que se lê num sopro e que se revela encantadora por interligar imaginação, humor e fragmentos para reflexão, porque a literatura condensa todos estes ingredientes e tem o poder de nos transformar por dentro. Ademais, creio que é uma história que nos mostra que nos agarramos sempre ao que nos alimenta, ao que nos dá alento. A vida está cheia de angústias, de vazios e de áreas cinzentas e isso pode ser um excelente gatilho para a escrita, mas a poesia — e a literatura, no geral — também se pode transformar a partir da alegria. Entre a crise e o deslumbramento, é uma obra que evidencia as dualidades do ser humano e a vontade de saciar essa fome.
notas literárias
- Lido a: 8 de novembro
- Formato de leitura: Físico
- Género: Romance
- Pontos fortes: Os detalhes, a construção do livro, a escrita sempre fabulosa
- Banda sonora: Comida, Slow J | Águas de Março, Elis Regina & Tom Jobim | Postcards From Italy, Beirut | Tudo no Amor, Clã | Pode Chover Um Poema, Flor-de-Lis







1 Comments
Que leitura bonita, Andreia.
ResponderEliminarA forma como você
descreve essa “fome pelas palavras” revela exatamente aquilo que a literatura tem de mais íntimo: a capacidade de nos deslocar por dentro. A história do Bazulaque, nas suas mãos, deixa de ser apenas sobre dieta e passa a ser sobre despertar essa mudança silenciosa que nasce de um único instante de espanto. É impossível não reconhecer ali a força transformadora dos livros, esse alimento que não ocupa espaço no corpo, mas reorganiza tudo na alma. Admirável como você traduz esse encanto.
Abraço
Fernanda