as invisíveis, rita pereira carvalho

Fotografia da minha autoria


O mundo parece uma manta de retalhos bordada em linhas finas, interligadas desde a raiz, embora existam peças que insistimos não ver — muitos, talvez, por distração, por andarem tão fechados nas suas bolhas; demasiados por, silenciosamente, perpetuarem o preconceito e a crença de que há profissões menores. No Retrato da Fundação deste mês, fui ler histórias sobre o trabalho de limpeza escritas pela Rita Pereira Carvalho.


 a angústia da invisibilidade

As Invisíveis compila relatos de trezes mulheres e um homem que têm um emprego em comum: as limpezas industriais. Todos eles «viajam quando a cidade dorme. Entram cedo e saem tarde. Estão em todo o lado, porque é raro o edifício, público ou privado, que [os] dispense». Para além destes fatores, ainda lhes é transversal a discriminação, porque muitas destas pessoas são imigrantes. E como «o que fazem não produz nada de material», isso aparenta ser uma porta escancarada para que se ignore que existem.

A sensação de invisibilidade é angustiante por si só, no entanto, sobe de tom quando percebemos todos os comportamentos que se revelam como causa e consequência e quando percebemos que as dificuldades, os direitos e a dignidade são quase sempre diminuídos, ignorados. Ver a maneira como a sociedade trata aqueles que assumem funções ditas menores diz muito sobre os valores que estamos a promover e cada uma destas partilhas não só nos confronta com problemas concretos, como também nos faz pensar acerca dos sacrifícios que fazem, todos os dias, para não faltarem com nada.

Lidarem com condições de trabalho precárias e incertas não é fácil e, pelo meio, ainda lhes falham com aquilo que deveria ser o mínimo da decência humana: o respeito pelo outro. Este livro, escrito com sensibilidade e consideração, dá voz a essa realidade, ao mesmo tempo que deixa claro que trabalhar nas limpezas não é sinónimo de poucos estudos e ambição. Em muitos casos, só não tiveram acesso a outras oportunidades e, por isso, viram-se obrigados a enveredar por esta alternativa. Além disso, permitir-nos conhecer a história de um homem também ajuda a desmistificar esta ideia de que só as mulheres estão «aptas» para essa função, embora sejam mais os rostos femininos.

«E respeito é uma valência que não vem incluída em todas as pessoas»

A história do Ismário recordou-me do meu estágio em creche, durante o mestrado. Na altura, foi necessário fazer alterações na equipa educativa e veio um auxiliar para a nossa sala — no Brasil, era Educador de Infância, mas, cá, não lhe tinha sido dada essa equivalência. Sempre que comentávamos que tínhamos um auxiliar, os olhares eram de espanto, porque não era comum (e ainda continua a não ser) e isso é uma prova do estigma associado a cada profissão. Ismário, numa área diferente, também é um rosto dessa estereotipagem. Creio que o livro da Rita é uma ferramenta fundamental para termos consciência da quantidade de camadas que as desigualdades podem assumir.

As Invisíveis tem um papel completamente oposto ao título, atendendo a que coloca em evidência uma classe trabalhadora específica e preponderante. Existem alturas em que a nossa presença não ser notada é excelente, uma vez que é sinal de que o trabalho foi tão bem feito que não precisa de reparos. No entanto, é diferente quando essa atitude vem alicerçada a princípios de desvalorização, sobranceria e marginalização, como se os outros não tivessem valor. É o segundo cenário que temos de continuar a combater.


 notas literárias
  • Lido entre: 15 e 16 de novembro
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Não ficção
  • Pontos fortes: A abordagem sobre o tema central, sempre com um toque sensível e humano
  • Banda sonora: Maria da Vila Matilde, Elza Soares | Mulheres, Mart'nália | Hands Clean, Alanis Morissette

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