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| Fotografia da minha autoria |
A escrita do João Pinto Coelho criou raízes na minha lista de preferências, no entanto, o último livro que li seu, Os Loucos da Rua Mazur, quebrou-me um pouco o entusiasmo. Não obstante, como era um dos autores do desafio que tenho com a Sofia, parti para a obra que faltava de mente aberta, pronta para ser arrebatada por aquilo que mais me fascina na sua forma de criar narrativas e pela componente humana das personagens.
as estratégias que abraçamos com o mundo do avesso
Um Tempo a Fingir recua até 1937, levando-nos para a Itália de Mussolini: o «burgo de Pitigliano assenta, como um ninho de águia, no cume de um rochedo», mas a cidade, «de túneis e catacumbas, escavada nos seus alicerces» não esconde os segredos que se encontram à superfície. É neste «aperto das suas muralhas» que vemos a protagonista, Annina Bemporad, «uma judia rebelde», a despedir-se da infância «quando acorda a meio da noite com o estampido de um tiro». E é assim que mergulhamos na história.
É impressionante como um cenário de tragédia e desgraça nos consegue envolver com facilidade, mas a verdade é que encaixei de imediato com a forma de narrar, ainda que seja, em tantos momentos, crua, incisiva, sem filtros, quase com a intenção de magoar. E achei interessante que, aqui, tivéssemos acesso a outra localização — a Toscana — e a uma partilha dupla: mais do que encontrarmos duas linhas temporais, encontramos uma narração a duas vozes. A II Guerra volta a ser o mote, mas acredito que a maneira como o autor o abordou trouxe uma perspetiva diferente, alargando o seu impacto.
Conhecermos o que se passa no mundo a partir da vida das personagens acrescenta uma camada intimista, porque nos aproxima das suas dores e, inclusive, da verdade; aproxima-nos do ambiente político, das crenças que se repetem em surdina e do que certas decisões implicam na sociedade, naquilo que pode ou não fazer, daquilo que é considerado correto e do que é condenável, mesmo que, em algum momento, fique a dúvida quanto à veracidade do discurso, das memórias. Sinto mesmo que este jogo de sombras foi um dos aspetos que mais me atraiu no livro, porque também mostra que somos falíveis, que nem sempre é benigno aquilo que nos move e nos mantém de pé.
«se antes não dormia ao pensar nos meus demónios, agora ficava acordada caso me fosse deitar sem os ter visto passar»
Os estilhaços da realidade moldaram todas as personagens com quem nos cruzamos e isso vai-nos puxando o tapete. Adorei a dureza de Annina, a excentricidade de Alessia, a lealdade de Peppino, e adorei como os seus elos foram esticando e encolhendo com o tempo, sem que deixassem de ser figuras presentes nas vidas uns dos outros (cada um à sua maneira). Houve, claro, períodos de vazio, de falta, de ausência, mas fascinou-me a capacidade de se irem resgatando em momentos duros, apesar do orgulho, da dor. E, deste modo, foram construindo sonhos sobre cinzas, oscilando entre o real e a utopia.
Um Tempo a Fingir é feito de violência, de comoção e de vingança. Embora sinta que se estendeu um pouco em certos acontecimentos, não senti a leitura condicionada. Além disso, acredito que é um retrato muito interessante sobre sobrevivência, sobre todas as estratégias que preferimos abraçar quando o mundo se afigura tão virado do avesso.
notas literárias
- Gatilhos: Violência, linguagem gráfica e explícita
- Desafio: 5 autores para 2025
- Lido entre: 9 e 13 de dezembro
- Formato de leitura: Digital
- Género: Romance
- Pontos fortes: A narração dupla, a construção das personagens e a abordagem do tema central
- Personagem favorita: Peppino
- Banda sonora: El Choclo, Julio Iglesias | Alla Turca, Mozart | Youth, Daughter | Je Te Laisserai des Mots, Patrick Wantson | F Major, Hania Rami







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