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| Fotografia da minha autoria |
A lista para a Feira do Livro do Porto foi-se compondo e estava praticamente fechada, até ver que haveria um livro de Júlio Machado Vaz como livro do dia. Sendo uma das vozes que tento escutar com uma certa regularidade, estava curiosa para descobrir a sua escrita. Outonecer continua a chamar por mim, mas senti que seria a oportunidade perfeita para recuar um pouco mais no tempo e aproximar-me da sua prática clínica.
a importância de ouvir o outro
À Escuta dos Amantes é o resultado daquilo que o médico psiquiatra aprendeu com os seus pacientes, ao longo de «quarenta anos passados num consultório médico à escuta de histórias de dilemas e desesperos, paixões e reencontros». No entanto, esse foi só o ponto de partida para refletir «sobre si mesmo e sobre a medicina que pratica, ensina e sonha», através de um discurso sempre franco e cheio de ramificações, como a vida.
A estrutura não é propriamente linear, atendendo a que se sustenta no pensamento caleidoscópico do autor. Se, por um lado, pode tornar a leitura algo confusa, porque nunca deciframos o caminho para onde nos deslocamos, por outro, creio, essa é uma das maiores belezas desta obra, porque é como se o ouvíssemos a pensar em voz alta. Além disso, sendo a escuta uma das premissas, sinto que nos convida mesmo a ouvir, a interiorizar, a parar para interpretar o que acabou de ser dito. Nós vamos saltando de fragmento em fragmento, avançando e recuando sempre que necessário, até sabermos que cada palavra vem de um lugar muito íntimo. E, por isso, pode ser oscilante, mas é, também, maravilhoso presenciar este exercício em que se entrega sem qualquer filtro.
O tom de Júlio Machado Vaz é benigno, no sentido em que as suas análises não são feitas para ferirem, para diminuírem, muito menos para nos fazerem acreditar que há só uma forma de observar o mundo. Antes pelo contrário, partindo da sua experiência e, por vezes, das suas falhas e indecisões, mostra-nos que vamos construindo a nossa identidade na partilha, na capacidade de reconhecermos que não sabemos tudo e que não detemos a verdade. A sua jornada foi feita de tentativas, de áreas que encontraram uma forma de se complementarem e de vários amigos que se tornaram âncoras neste processo de autodescoberta. Sinto que a sua lucidez também vem do modo como os abraçou ao longo da vida e como permitiu que cada uma das suas pessoas o moldasse.
«Tinha razão, a árvore de Cantelães apenas simbolicamente permitirá que as nossas cinzas se abracem. Mas a saudade, essa, ainda arde»
O autor vai oscilando nas memórias e eu sei que me fui aproximando por isso mesmo. De repente, a sensação predominante era a de que nos conhecíamos há anos e este era só mais um momento em que privávamos e colocávamos o outro a par da nossa vida — é uma das falácias mais belas da literatura, para mim. Assim, embora coloque a tónica nas relações interpessoais, não deixou de ter espaço para falar sobre o romance que foi adiando e sobre a sua digressão poética. E tão depressa me fez rir, como me comoveu.
À Escuta dos Amantes tem passagens que gostava de eternizar pela beleza e, sobretudo, pela pertinência. Ao mostrar que o «silêncio não é sinónimo de vazio», mas, antes, «o colo em que se instala a voz do Outro», alerta-nos para a importância de aguçarmos os ouvidos, porque só dessa forma conseguiremos compreender aqueles que nos rodeiam.
notas literárias
- Gatilhos: Linguagem Explícita
- Lido entre: 21 e 22 de outubro
- Formato de leitura: Físico
- Género: Não Ficção
- Pontos fortes: O tom próximo, franco, sem receio de ser vulnerável; as divagações tão pertinentes
- Banda sonora: Yellow Submarine, The Beatles | Forever Young, Alphaville | Private Investigations, Dire Straits | Down By The River, Neil Young & Crazy Horse | Olhos nos Olhos, Maria Bethânia | The Dark Side Of The Moon, Pink Floyd







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