o último avô, afonso reis cabral

Fotografia da minha autoria


A minha relação com os livros de Afonso Reis Cabral tem sido irregular: por um lado, adorei a sensibilidade de O Meu Irmão, mas, por outro, fiquei desiludida com o tom de Pão de Açúcar. E fui adiando o reencontro, até que o mais recente chamou por mim.


 abrir o quarto trancado

O Último Avô centra a sua ação num prestigiado escritor português, Augusto Campelo. Quando este decide «queima[r] o manuscrito no qual trabalhou durante anos», não só deixa uma aura de mistério a pairar, como também abre a porta a feridas antigas, até porque o neto, «herdeiro do nome e da memória familiar», assume a missão de tentar descobrir a verdade, quer em relação à «experiência traumática da Guerra Colonial», quer em relação às motivações que deram origem a este gesto tão definitivo do avô.

As perguntas sucedem-se, quase em simultâneo, de uma assentada, como se houvesse a necessidade de preencher silêncios e vazios com urgência, porque as dúvidas vão-se tornando maiores à medida que o neto cresce e entende as ausências, querendo atar os nós de uma história que, para ele, permanece por contar. Sendo essa dor visível, oscila entre a imagem que construiu do avô e aquela que se vai revelando conforme descobre quem foi Augusto: na guerra, nas conversas com a filha, nos segredos que não contou a mais ninguém, na escrita e na identidade que foi cimentado, talvez, para se proteger.

Palmilhar este terreno pantanoso abriu «um quarto trancado na casa», atravessando a «intimidade de três gerações». O mais fascinante é que, vivendo em tempos distintos e tendo acesso a diferentes partes da mesma pessoa, avô, filha e neto sofrem todos com a ausência, com a complexidade das relações, com o peso de escolhas exteriores a si — sobretudo a filha e o neto. Aliás, é curioso acompanhar o narrador a traçar o retrato da mãe, cuja presença lhe foi negada precocemente, através das memórias e perceber que Campelo tem o mesmo comportamento: um fâ-lo pelas saudades, enquanto o outro o faz pelas saudades e pelo sentimento de culpa. Portanto, pouco a pouco, há camadas a serem desbravadas neste caminho curvilíneo, surpreendente e de emoções ambíguas.

«O enamoramento é primeiro uma libertação, uma fuga. Já não queria guardar-me dentro de mim mesmo. Como é bom fugir de mim para ela, pensei»

Mais do que a história em si, sinto que a magia deste livro passa pelas personagens e, também, pela linha ténue que separa a cobardia da coragem, a realidade daquilo que é implantado para se alcançar um pouco de dignidade. E, por esse motivo, oscilamos em relação à verdadeira identidade deste avô; e, por esse motivo, vemos um neto a tentar conciliar a figura de um génio literário com o homem que era dentro de casa: como é que consegue ser as duas versões? Como é que somos capazes de amar aquela pessoa na mesma medida em que a odiamos? Como é que aceitamos esta herança agridoce?

O Último Avô insere-nos num plano familiar para nos fazer refletir acerca da ideia de perfeição com que revestimos aqueles que nos são próximos, até porque, dependendo do vínculo afetivo, temos a tendência de os colocarmos num pedestal — lugar de onde não serão retirados, a menos que algo abale essa convicção. Sinto que o autor nos puxa para a realidade, ainda que essa realidade sirva a ficção em inúmeras circunstâncias, e que nos faz pensar sobre a dificuldade que é saber quando insistir e quando desistir. Com passagens bordadas com cuidado, comoção e amor, descobrir a verdade pode ser sombrio, porque «há solidões onde o amor não entra», mas pode trazer alguma clareza.


 notas literárias
  • Gatilhos: Luto, linguagem explícita
  • Lido entre: 28 e 31 de outubro
  • Formato de leitura: Digital
  • Género: Romance
  • Pontos fortes: O lado emocional, a complexidade das personagens, os limbos
  • Banda sonora: Este Seu Olhar, Nara Leão | No Teu Poema, Simone de Oliveira | Reza, Rita Lee & Roberto de Carvalho | Obá, Lá Vem Ela, Jorge Ben Jor & Trio Mocoto

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