Identidade Cruzada #2

Fotografia retirada do Pinterest


«Insistir ou desistir só depende do que você me faz sentir»



Perdi-me. Deixei de ter qualquer tipo de controlo sobre o meu corpo e a minha vontade. Desde que te foste embora, tenho sido só eu e aquela maldita garrafa de Whisky, que me adormece as memórias. E, principalmente, a dor.

Fui um fraco. Entreguei-me à bebida com o mesmo desejo com que me entreguei a ti. Dizem que a nossa vida está cheia de pessoas tóxicas, a começar por nós. Mas eu não quis acreditar que fossemos capazes de nos agredir daquela forma. Quando me olho ao espelho, a custo, imagino sempre que aquelas mazelas só aconteceram porque entrei em mais um confronto num bar qualquer. Só que não me recordo. E o mais triste é isso, é essa ausência de algo que me permita lembrar. No entanto, quando procuro recriar os meus passos, para colmatar este vazio temporal, ninguém sabe o que se passou - como se fosse tudo inventado. Uma partida do destino. Uma realidade turva da lucidez que me começa a falhar. E aí eu penso que não poderia ter batido mais no fundo.

Vivo numa escuridão profunda. Esta casa transformou-se na minha prisão. E tudo serve como desculpa para encher, novamente, o copo. Aliás, já nem preciso disso. Bebo sem motivo e sem culpa. Os remorsos deixaram de me atormentar. E essa será a minha morte. Foi a nossa, certamente, e eu nada fiz para mudar, apesar de todas as promessas - que escrevi, que gritei, que declamei, que senti. Mas sem grande mestria - e num silêncio tortuoso -, quebrei-as a todas. E nem sequer tive forças para tentar voltar atrás. Não no tempo, mas à minha atitude passiva - poderia ter-te dito para ficares e calei-me. Talvez não fizesse qualquer diferença. Mesmo assim, poderia ter-te demonstrado que ainda existe um pedaço de lar dentro desta casa, praticamente ao abandono. 

Não sei o que será de mim, nem quantas horas me restam. Abro o armário e já só resiste uma única garrafa. E ou sucumbo de vez ao meu final ou ganho coragem para abrir a porta e sair. Seja como for, o desfecho há-de ser similar, porque o mais provável é caminhar até à tasca mais próxima e vir de lá arrastado por alguém. Não é engraçado como a vida nos desampara? Eu acreditei que tu eras o meu mundo. E tu confiaste em mim de olhos fechados. Eu achei que a nossa sorte poderia mudar num casino. E tu quiseste chamar-me à razão. Eu perdi. E tu perdeste também, e foste embora. Neste estado pouco lúcido, sinto que nunca estive tão sóbrio. E, agora, volto a recordar-me que nunca fiz algo que evitasse a tua partida. Nem ouviste da minha boca qualquer tipo de justificação - muito menos uma súplica por perdão. Não sei se foi a bebida que me cegou ou se foi a minha ganância. Mas enquanto a segunda esmoreceu, a primeira passou a tratar-me por tu. E, hoje, somos um só.

Já não vivo. A única coisa que faço é sobreviver à passagem do tempo. Mas há uma voz que me tenta a ir. Vou só encher mais um copo para o caminho. E, por fim, poderei sossegar.



[Diogo, 43 anos, a um sorvo do abismo]

Comentários

  1. Um belo texto e isto é mesmo cair no abismo e com pouca vontade de sair dele.
    Um abraço e bom fim-de-semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

    ResponderEliminar
  2. A bebida acaba por levar muita gente ao abismo, ;))


    Hoje:- Tocar-te-ei, sem limites, qualquer canção .

    Bjos
    Votos de uma óptima Sexta -Feira

    ResponderEliminar
  3. Um texto muito bonito!
    Beijinhos,
    https://chicana.blogs.sapo.pt/

    ResponderEliminar
  4. Tão intenso vestir a pele deste Diogo. Gostei imenso.

    Beijinhos e bom fim-de-semana!

    ResponderEliminar
  5. Quando não vale a pena a melhor solução é mesmo desistir apesar de não ser fácil e todo...
    Bjinhosss minha querida*
    https://matildeferreira.co.uk/

    ResponderEliminar
  6. Não sei se este [Diogo, 43 anos, a um sorvo do abismo] existe realmente.

    Só sei que, infelizmente, há muitos Diogos no mundo.

    Sou amiga dum, inteligente, um pouco mais velho do que o Diogo, divorciado duas vezes, alemão, e com o mesmo problema do português.

    ResponderEliminar
  7. Também já estive à beira do abismo e sobrevivi porque tive uma pessoa que nunca desistiu de mim, espero que essa pessoa também tenha!!!
    xoxo

    marisasclosetblog.com

    ResponderEliminar
  8. Só depende do que lhe faz sentir,
    para, não desistir, poder continuar
    felicidade e alegria fazem sorrir
    não desiste, você tem de acreditar?

    Beber, mas, com moderação,
    quem ama amor sente também
    sempre será sentido no coração
    um Whisky não faz mal a ninguém!

    Tenha uma boa noite de Sexta-feira e um bom fim de semana cara amiga Andreia.
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  9. Esse Diogo existe mesmo linda? é que há tantos por aí, infelizmente :(
    Boa sorte para ele.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  10. Imagino! hehehe! ;D

    "Diogos", homens ou mulheres... Quantos desses encontramos (ou até somos) durante nossas vidas, né?! Triste realidade de muitos!

    Ótimo sábado!

    Beijo! ^^

    ResponderEliminar
  11. Tal e qual :D sou fã de tratar da pele e noto que a maquilhagem fica bem mais bonita quando existe, por detrás, uma rotina de pele minimamente completa :D

    Que texto tão intenso!!! Sem dúvida que há pessoas que se entregam aos vícios pelos males amorosos. Acabam por ser casos muito, muito complicados. Aceitar o fim não é, de todo, um processo fácil. No entanto, e tal como referi no meu último look, é fulcral aceitarmos o fim de um ciclo para iniciarmos outro!! O "para sempre", sempre acaba :/

    NEW #DRESSTOIMPRESS POST | CLEAN LINES ARE THE NEW BLACK :O
    InstagramFacebook Official PageMiguel Gouveia / Blog Pieces Of Me :D

    ResponderEliminar
  12. Este teu texto transportou-me para o universo da "rapariga no comboio". E isso é ótimo. Demonstra a excelente qualidade da tua prosa. Fiquei a querer mais.

    ResponderEliminar
  13. Que talento, Andreia.
    Impossível não sentir um bocadinho da dor do Diogo. Fiquei com vontade de ler mais.
    A tua escrita prende-me sempre!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário