FEIRA DO LIVRO DO PORTO 2023:
AS SESSÕES QUE [OU]VI

Fotografia da minha autoria



«(...) este rosto virado para dentro/de alguma coisa escura que ainda não existe»


A casa é vista como um alicerce. Ao desenhá-la, há uma série de passos que necessitam de ser dados, para que se compreenda a construção e os fios invisíveis que a tornam tão nossa, a definição perfeita de lar. No fundo, porque há memórias que se fragmentam e se transformam e porque há horizontes que nos reinventam.

Consultar a programação da Feira do Livro do Porto é perceber que esta noção de casa se manifesta nos detalhes. E se isso já era notório em edições anteriores, nesta, esteve ainda mais presente. A céu aberto ou no conforto de um espaço interior, percorremos várias divisões, cada uma com a sua história, cada uma com a sua funcionalidade. O mais interessante é que esta experiência também contou com vozes e visões distintas.

Quem recebe a newsletter, já sabe quais foram as sessões que [ou]vi, divididas entre homenagens, conversas e concertos, e as minhas considerações. No entanto, também queria deixá-las assinaladas no Entre Margens.


CERIMÓNIA DE ATRIBUIÇÃO DA TÍLIA DE HOMENAGEM


Foi a primeira vez que consegui assistir ao momento de atribuição da tília ao autor homenageado e achei-o muito bonito. Neste caso, não só por partilharem memórias de Manuel António Pina, mas também por terem estado presentes as filhas do escritor e uma delas ter lido um poema do pai (escolhido pela associação à tília).


PINA GERMANO


A amizade é a mais alta forma de amor, segundo Manuel António Pina. E é com este tema de base que podemos descobrir a exposição Pina Germano, presente no Gabinete Gráfico, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett. A história que aqui se conta recupera memórias, epístolas e documentos de Germano Silva, permitindo-nos conhecer «a amizade que também era como uma casa onde se podia morar». Estes dois portuenses de coração tinham uma ligação extraordinária e ver isso representado neste roteiro é um privilégio.


TERRIVELMENTE TEIMO EM ADORAR A LIBERDADE LIVRE


O ciclo de conversas com a escritora e jornalista Inês Fonseca Santos foi iluminado por esta «afirmação-sangue» de Rimbaud. Ao seu lado, teve autores de diferentes gerações, com quem falou sobre as suas obras, referências literárias e o que é isto de adorar a liberdade livre, que não é uma redundância. Deste ciclo, tive a oportunidade de assistir à conversa com Afonso Cruz e à conversa com Rui Cardoso Martins.

Afonso Cruz, que é um dos meus escritores-casa, tem mesmo poesia nas palavras, até na maneira como se expressa. Ficaria horas a ouvi-lo, porque acho fascinante a construção dos seus pensamentos e para onde escalam as suas observações. Seria excessivo partilhar todas as anotações que tirei, mas deixem-me só partilhar as notas que achei mais interessantes, porque fizeram-me olhar de outra perspetiva.

A certo ponto da conversa, falou sobre a importância de termos limites para compreendermos a liberdade e uma das imagens que utilizou foi a da casa, que sendo um local de constrangimento, continua a ser um dos lugares onde nos sentimos melhor. Depois, achei muito curiosa a ideia de nós pensarmos por metáforas, porque nunca descrevemos a nossa vida do início ao fim, vamos saltando por memórias e vazios. Além disso, focou-se no valor dos pequenos gestos, nas coisas invisíveis que nos salvam a vida. Para finalizar, fiquei presa a uma frase que ele disse e que era mais ou menos assim: procuro escrever livros que não excluam as crianças. É importante que os livros tenham longevidade, que sejam abertos, para que nunca compreendamos todas as suas camadas aquando da primeira leitura. Nunca tinha pensado nisso, mas fez sentido, porque é muito mais estimulante quando, ao voltarmos a certas histórias, conseguimos descobrir detalhes novos.


Outro escritor que estava muito entusiasmada por ouvir era Rui Cardoso Martins. Ainda conheço pouco da sua obra, mas rendi-me a tudo o que li. Nos romances, senti que equilibra muito bem a tragédia com a comédia; nas crónicas, fiquei sem palavras ao ler casos passados em tribunal, porque há situações duras e insólitas.

Para além de conversarem sobre o seu percurso profissional tão diverso, falaram sobre medos, sobre a diferença de trabalhar sozinho e em equipa, sobre o acesso à informação e sobre morte. Tendo em conta que este último ponto é bastante recorrente nas suas histórias, a conversa concentrou-se no suicídio e pareceu-me bastante pertinente, porque falar sobre os assuntos deixa-nos mais conscientes. Talvez o autor não tenha essa responsabilidade social, essa obrigação, mas é mais interessante quando usa o seu lugar de fala para ajudar num serviço público que nos inclui a todos. A ficção pode entreter, mas também pode instruir.


DAR CORDA À PALAVRA

   

A programação da Feira do Livro do Porto também incluiu concertos e eu aproveitei essa oferta para ver dois artistas que gosto, mas que nunca tinha visto ao vivo: JP Simões e Samuel Úria.

O concerto de JP Simões ocorreu no Auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, o que potenciou um ambiente mais intimista, alinhado com o reportório que o artista foi versando. Com músicas em inglês e em português, partilhou pequenas memórias com graça e sarcasmo à mistura.

Samuel Úria atuou na Concha Acústica, em céu aberto, com casa bem cheia. Até S. Pedro decidiu contribuir para o momento, brindando-nos com um fim de tarde agradável. Se fosse possível, acho que deviam ter um concerto do Úria todos os dias, mesmo depois de a feira acabar, porque tem uma energia contagiante. Vou-me abster de mencionar a qualidade das canções, mas não posso deixar de destacar a narrativa que construiu naquele palco. O humor também lhe é algo natural, por isso, houve espaço para partilhas engraçadas.


A POESIA É FEITA CONTRA TODOS


«A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só» é o título de um artigo de Herberto Helder e serviu de mote para o ciclo de conversas impulsionado pela atriz e dramaturga Teresa Coutinho. Para começar bem o mês de setembro, fui com a Sofia assistir à conversa que Teresa teve com Martim Sousa Tavares.

Naturalmente, falaram sobre o seu percurso enquanto maestro e compositor, sobre a sua formação que passou por Lisboa, Itália e Estados Unidos e sobre os seus projetos, incluindo a Orquestra Sem Fronteiras, com sede em Idanha-a-Nova, que procura promover a participação cultural no interior (descentralizando a oferta).

Aquilo que senti é que, para além de ser uma pessoa fascinante, não se leva nada a sério, mas tem um enorme respeito por aquilo em que se envolve - e por aqueles com quem trabalha. De tudo o que foi partilhado, apetece-me destacar a sua missão de fazer diferente, de tornar acessível algo que se apregoa ser de elite, como é o caso da música clássica, porque, se é para fazer, então vamos fazer com originalidade, com propósito, com voz própria. Num universo onde o que importa é acontecer (e não quem faz acontecer), ele não queria ser só mais um, por isso, contra todas as probabilidades, contra a ideia de estar a retroceder, regressou a Portugal para criar algo que tem impacto. Outro, no seu lugar, talvez aproveitasse a exposição que conquistava em Chicago para colocar o seu nome na história. Ele, com este gesto de coragem, de ousadia, gravou-o na história da maneira mais bonita que existe: a incendiar a chama e não a cuidar das cinzas.


RAP DÁ EXPLICAÇÕES DE MAP

Ricardo Araújo Pereira, em 2011, publicou uma crónica sobre as crónicas de Manuel António Pina, à qual atribuiu o título «Poeta dá explicações de quotidiano (por 0,90€ ao dia)». Volvidos doze anos, foi convidado a estar na Feira do Livro, para regressar à obra do poeta e para nos explicar Manuel António Pina ao detalhe.

Queria muito assistir a esta sessão, mas sabia que tal não seria possível, por causa do meu horário de trabalho. Num daqueles momentos em que parece que os astros se alinham, a organização optou por transmitir a sessão no canal portoponto e, assim, já pude ver esta homenagem e, sobretudo, compreender ainda melhor a forma como Pina observava o mundo. Com um olhar muito atento, era capaz de utilizar as associações mais improváveis: quem diria que Salvador Dali seria um meio tão lógico para explicar os gastos de instituições hospitalares. Este é apenas um exemplo breve de como brincava com as palavras e com os seus pontos de vista. Ricardo Araújo Pereira, sempre genial, mostrou isso na perfeição e, além do mais, também mostrou como poesia e humor caminham, tantas vezes, no mesmo compasso.

Comentários

  1. Que momentos incríveis. Para o ano tenho mesmo de ir desfrutar da Feira do Livro *.*
    Beijinho grande, minha querida!

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    1. Fico a torcer para que consigas, minha querida. Acho que ias desfrutar imenso da programação

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  2. Que experiencias tao bonitas *.* Como eu gostava de ter la estado :)

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  3. Que experiências bonitas! :)

    www.amarcadamarta.pt

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  4. Que deve ter sido uma experiência bastante boa, como é tão bom ter momentos assim
    Beijinhos
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