ALMA LUSITANA ◾ TRILOGIA PATERNIDADES FALHADAS, VALÉRIO ROMÃO

Fotografias da minha autoria



«Três temas ligados à família»


O meu primeiro contacto com Valério Romão foi através de uma partilha no Instagram: escreveram sobre Autismo e a minha atenção foi logo conquistada. Por esse motivo, e tendo em conta as palavras elogiosas, revolvi lê-lo e a verdade é que a escrita e a narrativa deixaram-me com vontade de descobrir mais deste autor.

Corta para o momento em que construí a lista do Alma Lusitana, para a edição deste ano, porque pareceu-me a oportunidade ideal para completar a trilogia Paternidades Falhadas, composta por Autismo, O da Joana e Cair Para Dentro. As histórias são independentes, no entanto, há fios invisíveis a uni-las, seja pela sensação de falha, seja pelos contextos que acabam por se relacionar. E há, em todos elas, uma grande vulnerabilidade.


AUTISMO


Gatilhos: Referência a Droga, Pensamentos Suicidas, Abandono; Linguagem Explícita


A história que inicia esta trilogia tem um tom autobiográfico, atendendo a que parte da experiência pessoal e familiar de Valério Romão. Através de Marta e Rogério, acompanhamos um casal a partir do momento em que este «nota as diferenças comportamentais e de desenvolvimento do filho» Henrique.

«Numa empatia magnética, caíram nos braços um do outro e deixaram-se levar pelas lágrimas»

Entre a ansiedade de um diagnóstico, a procura por terapia e os tratamentos, há uma carga emocional que influencia não só a relação entre pais e filho, mas também entre o casal. São momentos de desespero e as forças tornam-se débeis, sendo evidente o sentimento de culpa e a noção de abismo. Além disso, experienciam a solidão e um debate interno constante: por um lado, vemos uma mãe dedicada, por outro, vemos um pai incapaz de aceitar o filho. Nesta dualidade, há uma pergunta a pairar: e se Henrique não existisse?

«(...) porque as palavras têm um peso distinto quando há testemunhas, adquirem outra violência»

Autismo é um livro doloroso, que nos tira de qualquer zona de conforto, uma vez que nos impulsiona a refletir sobre escolhas, sobre expectativas e sobre aquilo que seríamos nós a fazer, caso estivéssemos no contexto dos protagonistas. Com uma escrita frenética e crua, chega a sufocar, a afligir pelo desnorte, pela falta de respostas e pela sensação de estarmos a falhar num papel específico - e, aqui, refiro-me a um nós pelo simples facto de nos sentirmos parte deste enredo. Colocando o espectro do autismo como peça central, ficamos mais conscientes dos seus condicionantes, ao mesmo tempo que somos convidados a reconsiderar tudo aquilo que implica em quem o sente na pele, nos pais, no casal, na família, porque as repercussões afetam um todo, diariamente, ainda que em graus distintos. Acho que continuo a processar o final.


O DA JOANA


Gatilhos: Saúde Mental, Violência Obstétrica, Morte, Luto, Cenas/Linguagem Explícitas


O da Joana é o segundo volume da trilogia e centra-se num casal à espera do primeiro filho. Entre a ansiedade que antecede o momento e todas as mudanças necessárias para acolher uma nova vida nas suas dinâmicas e na casa que têm em comum, há algo que se altera aos sete meses, «quando rebentam as águas de Joana». Apesar de Jorge pensar que há males que vêm por bem, não imaginam os dramas que os esperam.

«(...) e Joana, ainda parcialmente povoada do sonho, treme, por pensar que pode ter trazido, 
do outro lado do sono, mais do que a incorporeidade de um grito»

É um sofrimento que vem de dentro, que nos deixa quase em apneia, porque é aflitiva a forma como a história se desenrola, como o caos e o desrespeito imperam num ambiente que deveria ser seguro. Foi de uma brutalidade imensa perceber que, talvez, este retrato não esteja assim tão longe da realidade e que sejam mais as «Joanas» desamparadas, diminuídas e violentadas num momento de extrema fragilidade. Há, ainda, uma atitude de desumanização e isso, em parte, também se deve a uma «organização fabril da maternidade», como se as mulheres deixassem de ser pessoas e passassem a ser só a imagem de um produto, de uma tarefa.

«(...) e os dois dizem estas coisas olhos nos olhos, o veículo pelo qual a verdade ou a mentira navegam mais depressa»

No meio da tragédia, simulam uma normalidade que não existe, mostrando-nos que é ténue a linha que nos separa da loucura. Por isso, embarcamos numa viagem intimista, que nos faz questionar a moralidade dos intervenientes e que nos mostra uma tentativa de inverter uma situação traumática, embora o desespero fique cravado na pele para sempre. O final, confesso, é que me parece algo desfasado de tudo o que aconteceu.


CAIR PARA DENTRO


Gatilhos: Abandono, Doença Degenerativa


O ciclo fecha-se com uma história desarmante, espelho da condição humana e de todas as suas contradições.

«as pessoas gostam de promessas, dona Virgínia, e não parecem importar-se muito com o facto de 
poderem estar desligadas da realidade que as sustenta»

Cair Para Dentro divide-se entre Virgínia e Eugénia: Virgínia é a antiga Presidente da Junta de Freguesia, Eugénia é Professora Universitária. A uni-las têm o vínculo de mãe e filha e uma doença degenerativa, que as condiciona a ambas. Ainda assim, é a filha Eugénia que sente o impacto maior desta situação clínica.

«Os primeiros tempos fora da junta custaram-me muito, não ter horário, não ter motivo para sair de casa»

O livro é duro, mas tem poesia dentro. É feito de pessoas, de visões/vozes distintas, que nos mostram diferentes partes da mesma história, e das suas dores. Através de uma relação familiar fragmentada, partimos para vários lugares: o peso do passado, a sensação de abandono, a monoparentalidade, a impotência, as consequências do Alzheimer cada vez mais expressivo, a dependência emocional, a frustração, o sufoco, as dificuldades económicas e o futuro incerto. Para culminar, há uma solidão que se torna desesperante.

«(...) é esta sensação atroz de vê-la cair cada vez mais fundo naquele poço de onde cada vez menos frequentemente volta»

Senti, por vezes, o ritmo oscilante, mas fui sempre embalada pelos desencontros destas personagens, destas vidas. Além disso, achei muito interessante ver como os papéis se invertem, como a angústia e a incapacidade são quase uma terceira entidade e como é que num espaço que deveria ser de afeto se nega um lar.

Comentários

  1. Fiquei mesmo curiosa com esta trilogia, principalmente com o livro sobre o autismo.
    Vou levar a sugestão para ler.
    Obrigada pela partilha, minha querida.
    Beijinho grande.

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    1. É duro, mas fascinante. Se leres algum deles, diz-me o que achaste :)

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  2. Não conhecia. Obrigada pela partilha 🤍

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  3. Valério Romão é um excelente escritor, já li os livros dele e recomendo.
    Um abraço e boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    Livros-Autografados

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    1. É mesmo, Francisco. Quero muito continuar a descobrir a sua obra
      Obrigada e igualmente

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  4. Excelentes sugestoes, todos os temas sao de extrema importancia. O da Joana e Cair para Dentro dizem-me muito. Muito obrigada pela partilha *.*

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  5. Que me parece ser uma boa opção para se conhecer ler, mas ainda não tinha ouvido falar
    Beijinhos
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    Tem Post Novo Diariamente

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