Entre Margens

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A banda sonora de uma viagem literária


Uma playlist semi outonal, que tanto acompanhou a melancolia dos dias, como lhes conferiu alguma vivacidade. Num período em que o que me sabe bem ao chegar a casa é vestir roupa confortável e preparar uma chávena de chá, sinto que reuni aqui um conjunto de temas que embalam bem esse aconchego de final de dia.


o quarto rosa, francisca camelo
Come Back To Earth, Mac Miller ▫️ Os versos «I just need a way out of my head/I'll do anything for a way out of my head» principiam um dos meus poemas favoritos do livro. Por esse motivo, e por considerar que também evidenciam a vulnerabilidade e a viagem intimista que a autora construiu em verso, optei por associar o tema de Mac Miller a toda a obra.

tudo pode ser roubado, giovana madalosso
Absolute Beginners, David Bowie ▫️ A dado momento da narrativa, a protagonista revelou que adora esta música. Por razões óbvias, fui ouvi-la e consegui compreender: não só por causa do ritmo que inebria, mas também pelos versos que dão a entender que não tem muito para oferecer, mas que, mesmo assim, não perde um tom utópico. Se calhar, somos sempre iniciantes, e acho que a personagem do livro se revê nessa imagem.

intermezzo, sally rooney
Timmy’s Prayer, Sampha ▫️ Perdi-me de amores por esta canção, quando a encontrei numa playlist dedicada ao livro de Sally Rooney, e rapidamente percebi que não ia procurar por outra. Acho que a melodia traz algum conforto, mas as palavras do artista pesam tanto como os pontos de vista de Peter e Ivan. Além disso, creio que a letra também nos transporta para a necessidade de serem ouvidos, para a necessidade de encontrarem o seu lugar e para a noção de perda. «Em algum lugar no início tivemos tudo bem», mas essa não é a constante e eles sentiram-no na pele. Revi mesmo muito da história nestes versos.

lunário, al berto
Sharkey’s Day, Laurie Anderson ▫️ Esta música tem uma sonoridade esotérica, que me parece muito alinhada com a energia do livro e a personalidade do grupo representado. Além disso, traz uma carga emocional densa, que também acompanha o estado de espírito das personagens, e os versos «e se eu pudesse lembrar desses sonhos/eu sei que eles estão tentando me contar» são muito fiéis ao que fui lendo. Numa mistura de temas e sensações, acho que esta canção e este livro combinam muito bem.

erosão, gisela casimiro
Erosão, Jasmim ▫️ Por curiosidade, pesquisei pelo título no Spotify e acabei por me cruzar com este tema. Gostei muito da sonoridade leve, e igualmente soturna, a evidenciar o nosso lado melancólico, e da letra que nos vai contando uma história, acompanhando a identidade que Gisela Casimiro deixa transparecer nos seus poemas. Além disso, canção e livro partilham uma viagem de autodescoberta e a liberdade de ir. E nós, enquanto leitores, vamos para onde ambas nos levarem.

criaturas extremamente inteligentes, shelby van pelt
From Eden, Hozier ▫️ A melodia remeteu-me para a energia oscilante dos acontecimentos, mas acho que o que me fez mesmo associar a canção foi o facto de ter reconhecido Tova em muitos dos seus versos. O livro não é apenas sobre ela, mas une várias pontas soltas e, por isso, «há algo de trágico», «há algo de mágico» nela. Além disso, há solidão, familiaridade e a sensação de nos irmos vendo ao espelho.

aqui em volta de mim, francisca camelo
A Próxima Viagem, Cassete Pirata ▫️ Fica sempre muito por dizer quando há tantas histórias partilhadas, tantas memórias de um passado não tão longínquo, que deixa sempre uma porta aberta para o futuro. Todas as mulheres que falaram com Francisca Camelo mostraram as amarras, a tentativa de não ceder, as viagens que ficaram por fazer e a vontade de esperar «outro sol nascer». Há quem gostasse de partir, há quem continue a querer «ficar nesta paragem». Por isso, só podia ser este o tema escolhido.

pequenos mundos, caleb azumah nelson
Sweet Life, Frank Ocean ▫️ Este livro merecia uma playlist só sua, porque transborda música em todas as páginas. Ainda assim, apesar das infinitas referências tentadoras, acabei por escolher o tema de Frank Ocean, porque acho que mistura a serenidade que o protagonista começa a sentir e a constante vontade de dançar - e dançar é o que nos salva. A vida nem sempre foi doce, no entanto, também houve alturas em que foi tudo o que ele imaginou que seria.

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Gatilhos: Luto, Abandono e Referências a Drogas


O livro de Shelby Van Pelt estava no meu radar há muito tempo e estive quase para o comprar na edição anterior da Feira do Livro do Porto, mas acabei por priorizar outras obras e só o adquiri mais tarde, para completar a lista de leituras que queria mesmo fazer em 2024. Ao décimo mês do ano, finalmente, cá estamos a descobrir esta história.


polvos a menos

Criaturas Extremamente Inteligentes leva-nos até Sowell Bay, onde ficamos a conhecer Tova, uma idosa que faz limpezas à noite, no Aquário da cidade, na tentativa de lidar com a dor e o luto, e Marcellus, um polvo-gigante-do-pacífico em exposição. Pouco a pouco, vemos surgir uma amizade improvável entre estas duas figuras e é a partir daqui que a vida de ambos se transforma - só ainda não descobriram a que nível.

A narrativa é contada através de pontos de vista alternados e a escrita é bastante fluída, mas confesso que não me relacionei tanto como estava à espera: se, por um lado, gostei muito da história central, ficando curiosa com a maneira como se interligariam as pontas soltas, por outro, admito que o excesso de detalhes me distanciou, até porque não os achei necessários para compreendermos as diferentes problemáticas. Além disso, senti que Marcellus deveria ter estado mais presente. Percebi que ele seria um fio condutor e não tanto um protagonista, mas acho que fazia sentido se tivesse mais destaque, mais voz, até porque são as suas ações que marcam o curso do enredo.

«Porque será que quero tanto que ela saiba? Não tenho a certeza. Mas o meu próprio fim aproxima-se, juntamente com o tempo dela aqui. Se eles não o perceberem brevemente, todos os envolvidos ficarão com um... espaço vazio»

Apesar de ter sido uma leitura oscilante, por ter demorado a criar uma ligação com  a história e não ter tido o impacto que idealizava, terminou de uma forma muito comovente. E acredito que Criaturas Extremamente Inteligentes possa ser uma boa companhia para quando procuramos um livro terno e de conforto, que diminua a solidão.


🎧 Música para acompanhar: From Eden, Hozier


Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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Os meus pais foram-me dando horizontes e a possibilidade de descobrir novas paisagens, mesmo que nos mantivéssemos dentro do território nacional na maior parte dos passeios em família. E eu nem sempre tive maturidade para reconhecer o privilégio que era não ficar apenas restrita a estas duas margens. Já mais velha, percebi a beleza que é olhar para fora da janela - se calhar, é por isso que, agora, perco tanto tempo a fotografar planos que estão acima da minha cabeça.

As viagens não eram inacessíveis, pelo menos não eram verbalizadas com esse rótulo, mas também não estavam no topo da lista de prioridades, porque existiam outras. Não foi por isso que conhecemos menos, apenas limitamos o raio de deslocação por um meio onde reconhecemos a língua, os costumes e há sempre a sensação de estarmos perto de tudo. Não me recordo de tudo, há lembranças que construo pelas palavras dos meus, mas criei muitas memórias de Norte a Sul de Portugal, sentindo-me em casa em diferentes pontos.

Regressei várias vezes aos mesmos lugares e ainda hoje o faço: pelo apreço, pelas histórias, pelo que ainda poderei viver em cada um deles. Consigo compreender o porquê de dizerem para não voltarmos onde fomos felizes, porque as memórias são calorosas, mas podem não ser completamente fidedignas, podem ter sido revestidas por um traço romantizado que, sem ter sido intencional, alimentamos com o passar do tempo. Nestes reencontros, aquilo que passei a fazer foi um exercício de identificação: o que é que há aqui que não vi antes? Tenho a certeza que é por isso que também adoro reler e reescrever: porque existe sempre um caminho novo para explorar.

No fundo, acredito que aquilo que procuro é a capacidade de me deslumbrar com o que já conheço, embora nunca conheçamos tudo ao detalhe. Há ruas que já podia percorrer de olhos fechados, mas continuo a preferir mantê-los esbugalhados, para me enriquecer, para descobrir diferentes perspetivas.

Viajar ainda é um luxo, por mais que nos vendam outra ideia, mas não tem de ser um sonho impossível. Tenho muitos destinos na lista de embarque, porque sinto que contactar com novas realidades nos expande e nos permite valorizar muitos traços do nosso percurso. Só levantei voo, pela primeira vez, aos 32 e nem foi para muito longe, mas foi longe o suficiente para apreciar essa liberdade, para criar mais memórias e ter uma experiência completamente original. Por isso, hei-de continuar a amealhar para que do luxo possa nascer uma constante.

O mais curioso é que, ao imaginar novos trilhos, permanece o desejo de um regresso, porque sou filha destas margens e a despedida não faz parte da equação. Há dias em que sinto falta de mundo, há dias em que percebo que ganhei raízes.


▪ agosto, 2024

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Uma viagem literária para descobrirmos autores portugueses


O penúltimo mês (do ano e desta viagem literária) combinou mais dois autores. Um deles, curiosamente, li de uma assentada e cheia de vontade de continuar na sua companhia. Já o outro, mesmo sem ler, tive de controlar a vontade audível de adquirir todas as suas obras publicadas, porque só leio críticas maravilhosas. Assim, a proposta é ler Ana Bárbara Pedrosa, enquanto autora para descobrir, e Nuno Nepomuceno, enquanto autor que já li e recomendo.


ana bárbara pedrosa

Natural de Vizela, o seu percurso académico inclui um doutoramento em Ciências Humanas, um mestrado em Estudos Portugueses, Pós-Graduações em Linguística e em Economia e Políticas Públicas e uma licenciatura em Línguas Aplicadas. Esta pluralidade, parece-me, é evidente noutras áreas da sua vida, não só por já ter vivido e estudado em diferentes países, mas também por aquilo que gosta de fazer nos seus tempos livres. Ainda assim, escrevendo para «vários órgãos de imprensa», as palavras acabam por assumir um plano central.

   

   

nuno nepomuceno

Nascido em 1978, tem um percurso profissional vasto e centrado em áreas muito distintas, uma vez que é escritor, matemático e controlador de tráfego aéreo. Estreou-se no panorama literário com O Espião Português, foi nomeado para vários prémios e, atualmente, é autor de duas séries de ficção bastante aclamadas. Também escreve contos e um dado curioso é que tem podcasts que alimentam a aura misteriosa dos seus livros, criando quase narrativas paralelas, que nos permitem entrar ainda mais no ambiente descrito.

LI E RECOMENDO

      

   

📖 Opinião sobre a Série Afonso Catalão

Outras obras do autor
A Noiva Judia | O Espião Português | A Espia do Oriente | A Hora Solene


O Alma Lusitana tem grupo no Goodreads

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Gatilhos: Referência a Distúrbios Alimentares, Doença Oncológica e Abusos


O livro Ecologia mostrou-me que Joana Bértholo seria uma autora para explorar e A História de Roma reforçou essa certeza/vontade, porque a forma como borda as suas narrativas é versátil e arrebatadora. Uma vez que estava com saudades de a ler, e tinha curiosidade em relação a este retrato da Fundação, alinhei o melhor de dois mundos.


um equilíbrio muito bem desenhado

O Meu Treinador é um ensaio sobre o quotidiano de um desportista, desde os treinos às dores, desde os horários preenchidos às expectativas e à possibilidade de subir ao pódio, através das memórias de uma ex-atleta de natação e triatlo. A autora viveu na primeira pessoa as oscilações de todas essas condicionantes, retratando experiências positivas e negativas, «dos anos 1990 até hoje», onde o eixo de todas elas é o treinador.

Nunca fui uma pessoa atlética. O mais perto que estive dessa designação foi, durante um curto período da minha adolescência, ter integrado um grupo de aeróbica, com treinos semanais, salvo erro, e algumas competições pelo meio. Mas nunca encarei essa modalidade com seriedade, até porque não era um objetivo para o futuro, era apenas o concretizar de algo que me satisfazia: dançar. Por outro lado, sempre adorei basquetebol e não me ter inscrito numa equipa daqui da zona continua a ser um dos meus maiores arrependimentos. Não porque fosse brilhante, não porque tivesse um futuro promissor graças ao meu talento, mas porque era feliz a jogar e porque acredito que os desportos de equipa desenvolvem muitas competências, nomeadamente ao nível da comunicação, da entreajuda, da noção de espaço e de tempo e na formação de caráter. Portanto, parti para este livro não com a intenção de me rever nas suas páginas, mas pela curiosidade de perceber como é que é a dinâmica de um atleta.

Ter acesso a estes testemunhos é valioso, atendendo a que nos fornecem perspetivas novas, nos envolvem no processo, na disciplina e na paixão. Além disso, acho-os de uma enorme generosidade, porque também são feitos de vulnerabilidade e nem sempre é fácil abrir essa porta, sobretudo, a pessoas que não conhecemos - ou será que facilita não sabermos quem está do outro lado? Divagações à parte, foi fascinante compreender as pontes que Joana Bértholo estabeleceu entre o desporto e a escrita e a maneira como articulou as suas vivências com factos histórico-culturais e entrevistas. Há um equilíbrio bem desenhado e creio que isso também é possível por causa da sua escrita: leve, lúcida e com um toque poético. Há uma luz que nos inebria e que nos faz querer continuar a ler, mesmo que o tema em si possa não nos ser assim tão próximo.

«O treino expõe. Mesmo num desporto individual, até solipsista, como pode ser o triatlo - ou talvez por isso -, é essencial ter quem olhe por nós, para nós, brade o nosso nome nos quilómetros que custam mais, de garrafa de água em punho ao chegar, um abraço pronto (...) Eu tive-o e fez toda a diferença. Deu-me chão para além do âmbito desportivo e recursos para a vida»

A base deste livro é, como o nome indica, a figura do treinador, que tanto pode ser o nosso maior aliado, como ser quem mais nos prejudica, mas é impressionante como, a partir do seu papel, consegue estabelecer reflexões pertinentes sobre pertença, sobre cansaço, sobre distúrbios alimentares, sobre privações, sobre a importância da saúde mental e do saber parar; sobre como os apoios são escassos, a instabilidade financeira é uma realidade constante, sobre questões de género e sobre diferentes tipos de abuso e a urgência de denunciar e proteger. É um ensaio extremamente versátil, plural e que nos faz perceber que todas estas partes autónomas constituem um processo maior.

É notória a emoção que ainda a embala a ver as provas, no entanto, não é por destacar o fascínio do Olimpismo que não está ciente das fragilidades que existem e, em demasiados casos, da podridão que se esconde nos pactos de silêncio. Joana Bértholo foi trocando de pista, descobrindo a sua vocação conforme foi crescendo, mas é bonito perceber que há atitudes que adquiriu a treinar que a influenciam na escrita e na criação. Talvez essa seja uma das memórias mais bonitas que se podem guardar.

O Meu Treinador é a prova de que nos aliarmos das pessoas certas faz toda a diferença. E não só no desporto. Aliás, considero que a mensagem deste livro consegue ser transversal, porque todos nós, em algum momento, já tivemos quem nos inspirasse a dar o nosso melhor e quem nos diminuísse de tal maneira que só aumentou o som das nossas inseguranças. Atletas de alto rendimento ou não, acho que esta obra nos agrega e, acima de tudo, nos mostra que a confiança, o respeito e o compromisso são vitais.


🎧 Música para acompanhar: Passive Aggressive, Placebo

📖 Outros livros lidos: Ecologia | A História de Roma


Disponibilidade: Wook (Livro | eBook | Audiolivro) | Bertrand (Livro | eBook | Audiolivro)

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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Gatilhos: Álcool, Drogas, Distúrbios Alimentares, Luto, 
Saúde Mental; Linguagem Explícita


O meu primeiro contacto com Dolly Alderton foi através de Estás Aí? (Ghosts, no título original). Gostei tanto da escrita e da forma descontraída como narrou certos pensamentos, que soube, de imediato, que voltaria aos seus livros. Só demorei três anos, mas quem é que está a contar?


sabemos alguma coisa sobre o amor?

Tudo o Que Sei Sobre o Amor é um livro de memórias, focado na adolescência e nos loucos anos vinte da autora. Ao contar-nos vários episódios da sua vida, facilmente percebemos qual é o tema central e, sobretudo, qual a abordagem que pretende pôr em prática. O mais bonito desta obra, para mim, é a escalada e o facto de não ficar apenas restrita ao amor romântico, porque, pelo meio, encontrou uma rede de apoio de seu nome amizade.

As minhas vivências e a forma como encarava o mundo, na mesma idade da Dolly, são muito diferentes, antagónicas até. Não me revi no caos, nas bebedeiras, na necessidade constante de me relacionar com os outros, nem na obsessão pelas festas e pelos engates. A certo ponto, admito, achei uma série de comportamentos excessivos e preocupantes. Ainda assim, acho que a consegui compreender e relacionar-me com o que foi partilhando.

A caminhada até aos trinta é confusa, cheia de altos e baixos, de tentativas, de erros, de verdades que consideramos absolutas e que, mais cedo ou mais tarde, acabaremos por desmistificar. Nesta tentativa de nos tornarmos adultos responsáveis, somos postos à prova e é natural sentirmo-nos perdidos. Dolly Alderton sentiu-se assim muitas vezes, eu também. Ainda hoje, que já passei essa barreira etária. E isso ligou-me à autora: sobretudo, fez-me compreender que esta é a sua história, que as suas experiências são tão válidas como as minhas e que apenas estamos a tentar fazer o melhor que sabemos, com os recursos e aprendizagens que temos.

«Uma recordação de que, independentemente do que possamos perder, por mais incerta e imprevisível que a vida possa ser, algumas pessoas fazem realmente o caminho a teu lado para sempre»

O tom cómico e irónico embala a leitura, enquanto nos vamos questionando sobre a nossa postura nas mesmas situações, mas aquilo que o livro tem de mais valioso é, por um lado, a capacidade extraordinária de tão depressa nos comover e, rapidamente, nos deixar a rir e, por outro, ser uma ode às amizades e às descobertas que se fazem em conjunto - e que são tantas vezes o suporte que precisamos.

Neste retrato com tantas personalidades dentro, percebemos que não temos de encaixar nos mesmos padrões, nem ter as mesmas ambições na vida. Precisamos, isso sim, de estar em paz connosco e de ter relações de amizade que nos façam sentir seguras e amadas. O amor romântico também pode entrar na equação, claro, mas este livro é muito mais do que isso.

Tudo o Que Sei Sobre o Amor é feito de dúvidas, de excessos, de ciúmes, de vícios e de gestão de expectativas. É sobre crescer e aceitar que não temos de saber tudo, em todos os momentos. Posso continuar a não me rever em muito daquilo que Dolly e as suas amigas fizeram, mas descobri-me em vários fragmentos. E a vida é isto: uma constante descoberta. Mesmo que se prometa que nada muda, nada fica como está e isso não deixa de ser fascinante, por mais que nos leve ao tapete. Tudo o Que Sei Sobre o Amor é vulnerável e, acima de tudo, muito honesto.


🎧 Música para acompanhar: All I Want, Joni Mitchell

📖 Outro livro lido: Estás Aí?


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Gatilhos: Linguagem Explícita, Álcool e Drogas


O nosso percurso pode ser feito de passos errantes, mas apenas o descobriremos se optarmos por seguir determinados caminhos. Contando o tempo em cada quarto de lua do ano, o livro de Al Berto mostra-nos que somos feitos de inúmeras tentativas.


histórias dentro de histórias e um tom etéreo

Lunário permite-nos conhecer e acompanhar Beno, «escutando-lhe as narrativas, as paixões efémeras, a vida boémia, as noites de amor e de diálogos secretos». Acima de tudo, senti que nos permite compreender toda a solidão que tantas vezes nos habita.

As diferentes vozes que compõem esta obra aparentam viver num plano quase etéreo, mas somos confrontados por uma solidão profunda - sendo uma personagem extra, pelo peso e pela forma como se manifesta em subtilezas. Inclusive, acredito que a carga emocional do texto sobressai por causa dessa solidão partilhada por todos. E o vazio que os reveste, levando-nos numa espécie de travessia pelo deserto, vai sendo preenchido com álcool, drogas, sexo, paixões intensas, mas fugazes e excentricidades.

Há sempre um tom sombrio, melancólico e de perda a marcar estas memórias, por isso, oscilamos entre a esperança e a tristeza, entre o amor que também lhes impulsiona os passos e os cenários decadentes por onde se movimentam. E, aqui, parece-me que o texto fica um pouco datado, embora não deixe de ser um espelho de uma época não tão longínqua. Assim, à medida que vamos avançando na leitura, vamos percebendo que a liberdade que transparecem não é mais do que um mecanismo de defesa, porque sentem-se perdidos, limitando-se a sobreviver.

«A "moral" era uma treta que não lhe dizia respeito. Era-lhe alheia, pura e simplesmente alheia. O que sempre o fascinara e seduzira era o amor, a amizade e a paixão que cada ser pode dar como um dom, e receber como uma dádiva»

A história não traz uma visão inovadora, mas é o lado emocional que torna a experiência interessante, até porque nada parece ser suficiente para colmatar a ausência, o abandono, a solidão. Nada é suficiente para que queiram viver de um modo frenético, a um passo do abismo, num ritmo vertiginoso. E essa falta de sonhos e de ambições vai sendo ocultada pelas sensações que os alimentam, pelos engates fáceis, pelas noites que parecem intermináveis e bem regadas para que não haja silêncio. Porque eles pensam muito em tudo e, para conseguirem lidar com a opressão do mundo, preferem entrar num jogo de ilusão, de imaginação, onde o real se perde.

Lunário tem histórias dentro de outras histórias, é poético e tem muitas desventuras. Apesar de ser vívido, ser uma viagem de autodescoberta e de nos fazer refletir sobre a necessidade de procurarmos estabilidade para a nossa vida, confesso que não adorei o tom moralista, como se o presente só pudesse ser uma punição pelas escolhas do passado. Por outro lado, achei fascinante a influência que as pessoas e os lugares têm na construção da nossa identidade e o impacto que a tristeza tem no isolamento.


🎧 Música para acompanhar: Sharkey’s Day, Laurie Anderson


Disponibilidade: Wook | Bertrand

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Gatilhos: Referência a Doenças Terminais


A Sally Rooney tem livro novo, lançado em setembro, e, uma vez que estava com saudades de a ler, aventurei-me primeiro na história que me faltava.


lia a versão alargada

Sr. Salário é a história de Sukie. Quando a mãe faleceu, ela mudou-se para casa de Nathan porque a relação com o pai era problemática. Sem ter outro lugar para onde ir, encontrou em Nathan um cuidador e a serenidade no meio do caos.

A vida de Sukie foi-se organizando e, anos mais tarde, mudou-se para Boston, mas a doença de Frank, o pai, obrigou-a a regressar, o que implicou que voltasse a viver com Nathan. Sendo um homem mais velho, isso levantou algumas questões, mas achei mesmo interessante a maneira como a autora construiu esta relação, tão marcada por dinâmicas antagónicas, onde as palavras não condiziam em pleno com a energia e a vontade de cada um. Não quero desenvolver, para não comprometer a experiência de leitura, mas há muita tensão acumulada.

«Senti que o meu amor por ele era tão total e tão avassalador que muitas vezes me era impossível vê-lo claramente»

Uma vez que é um conto, é natural que não se explorem todas as premissas. Não obstante, acho que tem imenso potencial e lia uma versão alargada desta história, porque dá vontade de os acompanhar por mais tempo.

Sr. Salário lê-se num sopro, mas acredito que possa ser uma excelente porta de entrada para a escrita de Sally Rooney, visto que nos mostra a sua capacidade para criar situações conturbadas e personagens complexas, que nunca comunicam de forma clara, quase como se estivessem num jogo de sombras; personagens imperfeitas e muito humanas.


🎧 Música para acompanhar: Got Weird, Dodie

📖 Outros livros lidos: Pessoas Normais | Conversas Entre Amigos | Mundo Belo, Onde Estás


Disponibilidade: Wook | Bertrand

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A Mariana Cabral, mais conhecida por Bumba na Fofinha, anunciou o seu novo solo de stand up, portanto, preparamo-nos emocionalmente para o campo de batalha que seria a compra de bilhetes. Na altura de Suar do Bigode não tive qualquer hipótese de a ver ao vivo, mas não queria que isso voltasse a acontecer. Felizmente, deu tudo certo.


Sombra, segundo a própria, é «um confessionário de ruindades sobre o nosso lado mais sombrio, mesquinhozinho e egomaníaco no papel de mães, filhas, amigas e amantes». Numa espécie de sessão de psicoterapia de grupo, estivemos uma hora e meia a rir sobre traumas, males, excentricidades e erros que se repetem. Acusei o toque quando falou dos filhos únicos, mas eventualmente acabei por superar essa afronta dolorosa.

Brincadeira à parte, até porque fiquei zero ofendida com o tema, senti que o texto estava mesmo bem construído, com um ótimo ritmo e a mostrar o quanto a Bumba é uma excelente contadora de histórias. Adoro que ela não tenha filtros e que diga as coisas sem receio de ser mal interpretada, e isso talvez seja possível porque há muita verdade na maneira como ela nos faz chegar os seus pensamentos/as suas reflexões.

Agora, precisamos de ser fortes, porque é provável que o que vá dizer a seguir choque: Sombra é um espetáculo de comédia, mas dei por mim a chorar. Duas vezes. E não foi chorar de tanto rir, foi mesmo chorar porque abordou duas situações tristes, deixando todas as minhas emoções à flor da pele: numa delas, por ter vivido algo semelhante de perto; outra, porque poderia ser a minha história. Admito que não estava preparada, no entanto, sei que isso fez com que ficasse ainda mais impressionada com o solo: não só por terem dado um significado mais profundo ao nome, mas também pela maneira como foi capaz de transportar algo tão vulnerável para um lugar mais luminoso.


Seria natural que a energia da sala esmorecesse, mas a Bumba não nos deixou cair, ao ponto de quase nos esquecermos do verdadeiro impacto do que ouvimos. Não imagino tudo o que teve de ultrapassar para estar em palco, mas acredito que este momento também faça parte da sua catarse. Por esse motivo, foi muito bonita a sua partilha.

Sem esquecer que continua a ser um texto humorístico, concentrou-se muito nas questões da maternidade, mas também nos brindou com a experiência na Disney, com peripécias que viveu com os pais e os irmãos e, claro, com uma ode às suas mamas. Não quero desenvolver muito mais, para não comprometer a experiência de quem ainda for ver o espetáculo, mas permitam-me só realçar que ela é incrível e que vale mesmo a pena assistir ao solo, porque encontrou o equilíbrio perfeito entre temas.

É um lugar comum, mas a verdade é que «onde há luz há sombra». Nem sempre será fácil aceitar essa inevitabilidade, mas não significa que não nos possamos rir.

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A Poetria, uma livraria portuense especializada em Poesia e Teatro, tem a sua própria editora, a Fresca, dedicada a novos autores. Graças à sua curadoria eclética, focada em poetas em ascensão, descobri a Francisca Camelo e o seu A Importância do Pequeno-Almoço. O livro impactou-me de tal forma que fiquei cheia de vontade de ler mais.


espaço de aceitação e intimidade

O Quarto Rosa veio morar comigo no meu primeiro dia de Feira do Livro do Porto ‘24, depois de meses a tentar comprar qualquer um dos outros títulos da autora, que estão esgotados em todo o lado. E isso até potenciou um momento engraçado: primeiro, fiz uma procura minuciosa pela zona dos alfarrabistas, sem sucesso; depois, ocorreu-me que a editora do livro também estava na FLP e resolvi tentar a minha sorte. Quando questionei a livreira/voluntária e ela me disse, entusiasmada, que tinham conseguido mais cinco exemplares desta obra, fizemos uma pequena celebração em conjunto.

Memórias à parte, fiquei mesmo feliz porque creio que a voz poética da Francisca Camelo é poderosa e devia ter mais visibilidade. Os seus versos são sempre vívidos, deambulando por vários temas. Aliás, através de episódios simples do quotidiano consegue levar-nos da dor ao deleite em segundos. E achei curioso como o título nos remete para um mundo de conforto, de aconchego, como se vivêssemos numa bolha idílica, mas o conteúdo nos desorganiza por dentro, porque nem tudo é aconchegante.

A escrita da poetisa é muito imagética, transportando-nos para os cenários descritos com facilidade. Mesmo que aquele não seja o nosso lugar, mesmo que aquelas não sejam as nossas angústias, consegue criar uma certa transversalidade ou, pelo menos, despertar empatia. E, assim, vamos transitando entre recordações, entre sonhos, entre medos, entre desejos e entre formas de estar na vida. Independentemente de poderem ou não ser poemas autobiográficos, acompanhamos o seu percurso, a sua existência em construção e vamos refletindo sobre todas as histórias que nos escolhe contar.

«ainda visito o lugar
onde depois de cair muitas vezes
me ensinei a cair melhor
aprendia sobretudo a arte
de deixar abrir
a cloaca / as feridas / a ideia de medo»

Rafael Mantovani, no posfácio da edição brasileira (editado pela Corsário-Satã), realçou algo que me pareceu muito interessante: o facto da poesia da Francisca Camelo ser muito pessoal, mas nada egocêntrica, até porque, parafraseando, o «eu» não é o centro dos poemas, não é o seu objeto, mas sim a lente, o ponto de vista. Além disso, o que achei delicioso de ler, considera que esse «eu» é um ponto de «sensação inescapavelmente atrelado a um corpo com nome, situado num mundo difícil e tentando dar conta dele». Deste modo, acabamos a ter uma conversa sobre solidão e, sobretudo, sobre todas as feridas que nos moldam e que fazem parte da nossa história.

O Quarto Rosa é um espaço de aceitação e de intimidade. Numa frase introdutória, a autora revela que escreve para que existam testemunhas da sua loucura. E eu senti o privilégio de ser uma dessas testemunhas, ainda para mais quando me cruzei com poemas como rosas, o código do pijama, o quarto rosa, a bicicleta universal, swimming e maratona, uma vez que, a partir de algo tão pessoal, há espaço para sermos vulneráveis.


🎧 Música para acompanhar: Come Back to Earth, Mac Miller

📖 Outro livro lido: A Importância do Pequeno-Almoço

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Ler não era uma atividade prioritária. Quando passou a fazer parte dos meus dias, ganhei alguns hábitos: preferir ler à noite, ter um bloco de notas por perto, registar passagens comoventes, tentar não quebrar a lombada, entre outros. Embora alguns tenham mudado com o tempo, riscar os livros nunca foi um deles, apenas por uma questão prática e de reconhecimento visual.

É provável que já tenha olhado para isso como um sacrilégio, como um ato quase criminoso a merecer uma coima imperdoável, contudo, nunca tive vontade de riscar os livros que lia por lazer uma vez que queria que fosse fácil encontrar as frases que me marcaram - atualmente, como vendo os exemplares que não pretendo manter, isso poderia dificultar o processo. Mas, retomando o ponto inicial, se riscasse as passagens que quero guardar, perderia mais tempo a procurá-las e ainda corria o risco de passar por elas sem as identificar. Portanto, abençoado daquele que, num dia igual a tantos outros (creio eu), se lembrou de criar os post-its - aqueles de tiras finas, não dos que têm espaço para escrever uma tese. As anotações eu faço à parte.

Na arte do post-it, nunca tive um método de utilização personalizado. Usava sempre os mais básicos, com aquelas cinco cores padrão. No máximo, evitava usar o rosa, porque detesto a cor - se calhar, é uma palavra forte, mas o rosa há-de aguentar, como eu aguento pagar por cinco cores e só usufruir de quatro. Mas a ciência era apenas seguir a ordem.

Mais tarde, vendo que isto é um negócio em ascensão, perdi-me de encantos pelos tons pastel e passei a apostar nesses conjuntos. Também reparei que saem mais dispendiosos, no entanto, o que é isso comparado com a estética, com a possibilidade de olhar para um exemplar e de o ver com cores lindas e diferentes? Se consigo percebê-lo com os livros arrumados na estante? Não, mas essa não é a questão principal. O importante aqui é que escolher os post-its já se tornou parte do ritual e foi por isso que reparei noutro fenómeno.

Sempre utilizei todas as tiras que vinham em cada conjunto, mas não é que, ultimamente, dei por mim a tentar combiná-las com a capa do livro? Em vez de colar indiscriminadamente as cores, passei a escolher apenas uma. E, caso não tenha aquele tom em específico, aposto no mais próximo ou no que combinar melhor com as tonalidades da capa.

Não sei o que é isto, que pequena obsessão sem nome é que desenvolvi, mas talvez precise de ajuda. Se tiverem conhecimento de um especialista para este problema, enviem um e-mail para aavóchalupou@insanidade.com. Agradeço o cuidado.


▪ julho, 2024

Fotografias da minha autoria



As leituras oscilam, porque nem todos os livros se alinham connosco. E existem vários motivos que o justificam: desde não nos identificarmos com a escrita até não ser o momento ideal para descobrirmos aquela história. Faz tudo parte do processo e estou em paz com isso. Por esse motivo, é natural que me vá cruzando com livros que até são interessantes, com potencial, mas que não me chegam a arrebatar, como é o caso dos quatro exemplares que trago hoje. 

Por um lado, não queria dedicar uma publicação individual a cada um dos livros, mas, por outro, não queria deixar de escrever algumas palavras. Assim, decidi fazer uma compilação de reviews relâmpago - um pouco falhada, devo admitir, porque acabei por desenvolver um pouco mais a minha opinião, mas a essência está lá.


vinil rubro, mário freitas & alice presto

Vinil Rubro lê-se num piscar de olhos, até porque só tem dezasseis páginas. Contudo, parece-me um retrato muito fidedigno da dor e do limbo em que se torna a nossa vida, quando temos de superar uma separação amorosa. Neste processo, é percetível que há pessoas que se colam à nossa pele, quase como se fossem uma extensão de quem somos, tornando difícil esquecê-las, ainda que a rotina nos encaminhe nesse sentido.

Achei a arte gráfica muito mais interessante do que o texto em si, admito, porque as cores, o movimento do desenho e o jogo de luz e de sombra tornam o sofrimento da protagonista quase palpável. As palavras ajudam, claro, mas creio que precisavam de ser mais aprofundadas, para que o equilíbrio fosse maior entre as duas linhas de comunicação. Ademais, as ilustrações permitem-nos preencher o que fica por dizer.

Um outro aspeto que achei curioso foi que, apesar de o tom da narrativa ser mais dramático, mais pesado, há um traço de sedução, que talvez surja pelo impacto da música, pela necessidade de quebrar as amarras e de recuperar as rédeas do presente. No meio de toda a tristeza, de todos os tormentos, assistimos a um grito de libertação, a uma catarse. Não obstante, quando terminei a leitura, fiquei a pensar que a podemos interpretar de perspetivas distintas. Ou seja, nós temos acesso ao que nos é relato pela personagem feminina, mas há mais duas vozes que podemos considerar para o efeito: a razão estará no lado de quem? Será que existe mesmo uma vítima e um culpado?

O enigma começa logo pela capa e rapidamente compreendemos que nos espera uma noite longa, alimentada pela solidão, pelo desejo de um reencontro, pelas incertezas, pelas feridas que continuam abertas, a pesar e pela manipulação. Através de uma canção que marca o ritmo, viajamos ao âmago do ser humano, que tão depressa sucumbe ao abismo da perda e da ausência, como também procura renascer da mágoa.

Vinil Rubro confronta-nos com uma alma atormentada. Não temos um nome, nem sabemos bem o que nos espera, mas talvez por isso nos consigamos identificar. Porque, tendo em conta a realidade descrita, cada leitor terá a sua experiência.

🎧 Música para acompanhar: I’ve Got You Under My Skin, Frank Sinatra



portugal em ruínas, gastão de brito e silva

Portugal em Ruínas é, nas palavras de Vítor Serrão, responsável pelo texto introdutório, uma história cripto-artística do património construído. Na sua dissertação, analisa várias questões que transitam entre a memória, o valor artístico, o esquecimento e a aura perdida. As construções arquitetónicas não fogem à sina do tempo: também envelhecem, definham, por esse motivo, necessitam de condições de preservação. Ainda que isso não inviabilize o desgaste, pelo menos, impede o desaparecimento.

O discurso é eloquente, mas nem sempre me pareceu o mais acessível, perdendo-se em reflexões que, para mim, não acrescentaram assim tanto à leitura. Ademais, senti falta de uma partilha mais detalhada acerca das razões que levaram ao abandono de certos edifícios/certas estruturas, para não ficar algo tão generalizado, mas também compreendo que essa informação possa não estar disponível. Não obstante, acredito que traz para o centro da discussão o papel dos historiadores de arte e dos técnicos do património cultural, que terão uma voz ativa na valorização das construções, a urgência de criar medidas de salvaguarda e as «valências qualificantes» que se esgotam, quando estas unidades perdem utilidade e parecem transformar-se em pó.

Posteriormente, embarcamos naquela que é a figura central deste livro: as fotografias de Gastão de Brito e Silva, divididas em quatro partes: Património Eclesiástico, Património Militar, Património Civil e Património Industrial. Esta curadoria ficou à responsabilidade de Ângela Camila Castelo-Branco, cuja seleção não só comprova a versatilidade das obras, como também nos mostra que o panorama é mais extenso.

Parece-me que Portugal em Ruínas é mais um ponto de partida do que o espelho de toda a situação. Ainda assim, não deixa de ser um alerta valioso, não deixa de nos consciencializar para a necessidade de inverter a narrativa. Com um tom ora crítico, ora nostálgico, reforça o quanto o património é uma extensão da nossa identidade.

🎧 Música para acompanhar: Terra Ardida, Diabo na Cruz



esquerda e direita: guia histórico para o século xxi, rui tavares

Esquerda e Direita: Guia Histórico para o Século XXI nasceu de duas conversas: a primeira, realizada «a convite do eurodeputado Carlos Coelho na Universidade de Verão da organização de juventude do seu partido»; a segunda, realizada «na Universidade de Coimbra, a convite dos estudantes da Faculdade de Direito». Apesar de ter existido alguma polémica em relação aos dois debates, o certo é que importa compreender os argumentos que procuram apelar «à superação» desta divisão.

Começo por assumir, antes de tudo, a minha lacuna nesta ciência. Embora tenha conhecimentos básicos, nunca me escudei o suficiente para conseguir manter uma conversa aprofundada, para conseguir discutir com um teor mais técnico, se é que posso colocar as coisas nestes termos. Portanto, as minhas observações são sempre de um ponto de vista mais leigo, mais sustentado naquilo que é, para mim, o senso comum e os valores que defendo. Por oposição (ou talvez não), compreendi cedo que me posiciono e me revejo muito mais à esquerda. Neste sentido, achei que a obra do Rui Tavares poderia ser uma forma interessante de colmatar algumas falhas pessoais.

Seria impensável terminar esta leitura a achar que estaria pronta para um debate político, nem era esse o suposto, mas sinto que foi um bom ponto de partida, porque nos contextualiza em relação à origem e porque nos permite compreender os parâmetros em que esquerda e direita se cruzam e se distanciam. Além disso, achei interessante que Rui Tavares começasse o seu discurso de um modo neutro, mas sem esconder que, a dado momento, o encaminharia para a sua ideologia política.

Explanando cenários tão pertinentes como «o ar de família», os erros do século XX, o futuro progressista e o próprio poder da sociedade, achei curioso como uma aparente casualidade foi capaz de mudar tanta coisa. Ainda assim, talvez pelo formato conciso, Esquerda e Direita: Guia Histórico para o Século XXI nem sempre apresenta o tom mais acessível, mas é daqueles livros que nos acrescentam e aos quais podemos regressar.

🎧 Música para acompanhar: Inquietação, José Mário Branco



os anos, annie ernaux

Os Anos estende-se «por um período que vai de 1941 a 2006» e cruza não só os anos de vida de uma mulher, mas também os de um país, unindo-os fotografias, canções, filmes, objetos e eventos históricos. Portanto, a autora apresenta aqui uma autobiografia desconstruída e acho que foi isso que me atraiu tanto.

Infelizmente, este livro não funcionou comigo, talvez por estar à espera de encontrar outra abordagem. Estava consciente que Annie Ernaux poderia não ser o centro destas memórias, mas achei que a sua voz estivesse mais presente nas recomendações, na maneira como determinados acontecimentos a marcaram. Verifiquei isso em algumas entradas - e, nessas, conseguiu deslumbrar-me -, mas contava que essa visão intimista se revelasse transversal.

Há tópicos interessantes e uma certa nostalgia, até porque este período de mais de sessenta anos foi palco de inúmeras mudanças, mas confesso que desmotivei um pouco durante a leitura. Se, por um lado, surpreendeu-me a sua capacidade de olhar para experiências pessoais como se estivesse de longe, fora do seu corpo, por outro, não me senti próxima do tom um pouco altivo e cínico que senti em algumas reflexões, nem das generalizações. Isso fez-me oscilar quase como se estivesse a ler uma obra com diferentes autores.

Os Anos traça um retrato com várias referências culturais e históricas, mas fiquei com a impressão que apenas queria listar coisas. E eu gostava que mergulhasse nelas.

🎧 Música para acompanhar: Mambo Italiano, Dario Moreno

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andreia morais

andreia morais

O meu peito pensa em verso. Escrevo a Portugalid[Arte]. E é provável que me encontrem sempre na companhia de um livro, de um caderno e de uma chávena de chá


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