Entrelinhas #43

Fotografia da minha autoria


«(...) Tendo ficado grávida, um cunhado é encarregado de executar a sentença: regá-la com gasolina e chegar-lhe fogo. Terrivelmente queimada, Souad sobrevive por milagre». 



A Cláudia S. Reis [Marés], quando escrevi sobre o Porto Alternativo, alertou-me para a existência das lojas Cash Converters, que funcionam de uma forma bastante semelhante. Na minha primeira visita à do Porto, aproveitei para trazer, por dois euros, um livro que já tive, emprestei e acabei por oferecer, mas sem nunca o ter chegado a ler: Queimada Viva, que retrata a história de uma mulher que sobreviveu à barbaridade dos crimes de honra.

É essencial contextualizar o enredo culturalmente, porque Souad vivia numa aldeia da Cisjordânia, onde «o amor antes do casamento era sinónimo de morte» e a reputação da família estaria sempre acima da condição de cada um dos seus elementos. Ao longo da narrativa, inevitavelmente, fui obrigada a questionar-me sobre certas práticas. E sobre a nossa perceção daquilo que consideramos correto ou, no mínimo, aceitável e daquilo que sentimos ser um limite intransponível. Consequentemente, dei por mim a pensar em duas perspetivas que, aparentemente opostas, se complementam: até que ponto temos o direito de julgar culturas de outros países [atendendo que não as conhecemos aprofundadamente] e, por outro lado, até que ponto a cultura de um povo é uma justificação plausível para legitimar determinados atos, principalmente quando são um pleno atentado à integridade do ser humano. E, claro, estas divagações assumem proporções muito mais chocantes quando encaramos o sangue frio que uma, suposta, mãe tem que ter para tentar assassinar a própria filha. Em momentos assim, senti-me no limbo, porque é complicado compreender as motivações que desencadeiam estas reações, por mais fundamentadas que sejam. Além disso, estes costumes tão enraizados levaram-me a outras perguntas: até onde é possível ir para salvar o nome da família? Como é que se lida com um crime que «ainda não prescreveu»? Quais é que são, afinal, os verdadeiros valores da sociedade?

Há, naturalmente, poucas respostas quando somos confrontados com atrocidades desta natureza; quando a mulher ainda é tratada com inferioridade, quando se perpetua uma imagem que pensamos não existir [ou queremos acreditar que, em lugar nenhum, pode ser mantida]. Mas é através de exemplos destes que percebemos que o caminho que nos falta percorrer ainda é longo. E ficamos a refletir sobre conceitos como «direitos humanos», «direito à vida», «escolha», «igualdade» e «liberdade». Ainda assim, para além de sofrermos um completo abanão pelas circunstâncias tão negras, não deixamos de sentir alguma esperança, pela incrível superação da protagonista. E agrada-me, particularmente, o facto de não romantizar os acontecimentos. É extremamente doloroso ler algumas passagens, sim, mas acredito que, cada vez mais, precisamos deste choque, para começarmos a mudar, para aprendermos a respeitar a vida e para lutarmos pelas pessoas. Seria sempre melhor se livros como este não precisassem de ser escritos, pois era sinal que este passado estava encerrado. No entanto, continua a ser necessário denunciar. E a literatura tem este poder.

A sobrevivência, aliada ao sofrimento, ao desamparo, à coragem, ao risco, à mudança, transparece um trauma que nunca será esquecido. Porém, no meio de tamanho abandono, há alguém que nos estende a mão e nos salva. Mas também não apaga a memória de todas as mulheres que não tiveram essa "sorte", pelos mais variados motivos. Por isso, este testemunho é tão importante. Porque, apesar de ser duro, cru, angustiante, com uma enorme carga emocional, expõe uma história desumana. E pretende quebrar o silêncio criminoso que a encobre.



Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Na minha aldeia nascer rapariga é uma maldição. O único sonho de liberdade é o casamento. Abandonar a casa do pai em troca da casa do marido e não voltar nunca mais, mesmo que se seja espancada. Quando uma rapariga casada regressa à casa do pai é uma infâmia. Não deve pedir protecção fora da sua própria casa e é dever da família levá-la de novo para o lar» [p:8];

«Presentemente sou realista e compreendi como se passam as coisas no meu país. Sei por que razão matam as raparigas. Sei como tudo se passa. Há uma reunião de família que decide e, no dia fatal, os pais nunca estão presentes. Só aquele que tiver sido designado para matar é que fica com a rapariga» [p:29];

«- A polícia foi a nossa casa falar com a família. Como a família toda. Com o teu pai e o teu irmão, com a tua mãe, com o teu cunhado, com toda a família. Se tu não morreres, o teu irmão terá problemas com a polícia» [p:97];

«Souad é a minha primeira "resgatada" deste tipo, mas o trabalho não terminou. Impedi-la de morrer é uma coisa, ajudá-la a renascer é outra» [p:130];

«Não conheci nenhuma mulher queimada como eu porque não sobreviveram. E continuo a esconder-me, não posso dizer o meu verdadeiro nome, mostrar o meu rosto. Só posso falar, é a única arma que me resta» [p:170].

Comentários

  1. Um relato de uma barbaridade sem limites, como é possível que coisas destas ainda aconteçam.
    Um abraço e bom fim-de-semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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  2. Um livro que me comoveu imenso, foram lágrimas do principio ao fim!
    Beijinhos,
    http://chicana.blogs.sapo.pt/

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  3. Já ouvi falar muito bem desse livro, depois do teu review tenho mesmo de o ler...cada vez fico mais impressionada com as barbariedades q a humanidade faz a si mesma :’( triste realidade... vão acabar por se matar uns aos outros...
    Sim, aqui também há cash converters :) antes de abrir pra cá abriu uma na esquina da rua da alegria com a Fernandes Tomás :)
    Bjinhosss
    https://matildeferreira.co.uk/

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  4. Imagino ser um livro interessante: :))

    Hoje:- Endiabrados, desejos que me atormentam

    Bjos
    Votos de uma boa Sexta-Feira

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  5. Eu também uso muito a Cash Converters, e agora quando for iniciar a colecção de DVDs infantis, faço o mesmo!

    Eu ainda não fui para esses livros pesados, passo mal, mas é uma realidade da qual não podemos fugir, ou fazer de conta que não existe!

    Beijinhos
    https://titicadeia.blogspot.pt/

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  6. Já tinha ouvido falar do livro mas nunca o li talvez por ser uma história um pouco pesada. No entanto, pare ser um livro bastante interessante.

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  7. É uma realidade tão negra e sofocada e no entanto são tantas as mulheres a passar por esta tristeza...

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  8. Custa-me um pouco a entender o exagerado culto dessas pessoas à religião, as leis e cultura desses países. Para além da forma como vêem a mulher que leva a esse tipo de atitudes.

    Um livro que tenho a certeza que vou gostar de ler.

    Beijinhos e bom fim-de-semana! =)

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  9. Parece-me um livro bastante interessante. As reflexões que fazes lembram-me o caminho que nós, Ocidente, fizemos na evolução e afastamento dos valores humanos. Estará relacionado com a religião? Sem dúvida alguma. No entanto temos o Oriente que se mantém agarrado a crenças que interferem sobretudo com os valores humanos, no sentido da desigualdade de género acima de tudo.
    Estamos de facto muito longe de evoluir humanamente no seu sentido literal. Excelente post!

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  10. Queimada viva é dos melhores livros que "para aí anda"!

    r: Tenho mais batons do que devia, acredita que não está sozinha nesta luta ahah

    O Diogo sabe o quanto vale para nós, pelo menos devia saber, e isso é o mais importante!

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  11. A tua escrita inspira-me bastante , tens de escrever um livro :)

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  12. Sobreviveu à morte dolorosa,
    uma mulher queimada viva
    gostei de ler a sua prosa
    como sempre bem escrita!

    Tenha uma boa tarde de sexta-feira Andreia.

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  13. uma pessoa da minha turma do secundário uma vez apresentou esse livro na aula de português e estavamos todos super atentos a ouvir! espero um dia conseguir ler!

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  14. Love your post dear! If you want check out my blog.I write about fashion,beauty and lifestyle.Maybe we can follow each other and be great blogger friends!

    http://herecomesajla.blogspot.ba/

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  15. devorei esse livro em 2 dias, enquanto o estava a ler só pensava que tudo aquilo é verdadeiramente horrível e bárbaro mas depois fui pesquisar um pouco e encontrei várias pessoas que acusam a autora de ter inventado a história... de qualquer forma não duvido que existam muitos casos do género.
    beijinhos :) https://ratsonthemoon.blogspot.pt/

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  16. Já me contaram a história por algo fiquei curiosa com o enredo
    https://retromaggie.blogspot.pt

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  17. A cash converter foi a única que ainda não visitei (mas quero ver se tenho oportunidade). Achares esse livro a esse preço foi um verdadeiro achado. Por acaso já ouvi falar muito dele mas ainda não tive estômago para o adquirir. Talvez um dia ganhe coragem para lê-lo.

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  18. Já tinha ouvido falar deste livro, mas ainda não tive oportunidade para ler.
    Deve ter realmente bastantes passagens pesadas e uma enorme carga emocional.
    " (...) até que ponto a cultura de um povo é uma justificação plausível para legitimar determinados atos, principalmente quando são um pleno atentado à integridade do ser humano." - ora aqui está uma bela questão e embora não conheça a fundo certas culturas, do que sei, já sinto algum nojo.
    Ainda há bastante caminho a percorrer para alcançarmos o respeito que merecemos e serem reconhecidos os nossos direitos.

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  19. É um livro que sempre que o encontro na livraria tenho a tentação de trazê-lo comigo, mas depois a história que nele consiste arrepia-me um pouco. Afinal, há coisas que nos tempos anteriores, faziam às mulheres que não tem pés nem cabeça. É uma história dura. Bem dura e chocante. Tenho de ganhar coragem (risos). Adorei a review! Beijinhos <3

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