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Fotografia da minha autoria |
Gatilhos: Abusos, Referência a Violência e Suicídio; Linguagem Explícita
O meio onde nascemos, nas palavras de Cláudia Araújo Teixeira no seu livro de estreia, é «uma espécie de certificado de origem controlada». Por esse motivo, definir-nos-á para sempre e tornar-se-á inevitável questionar se a nossa vida não poderia ter sido diferente, caso tivéssemos crescido noutro lugar. Será que seremos sempre aquele sítio?
uma sobrelotada mitologia familiar
Uma Vida Assim-Assim cruza a década de 70, cujos traços de modernidade iluminam o país, com a realidade de Cristina Maria, que nasceu num bairro social do Porto. Nesta espécie de microcidade, construída com o propósito de albergar «os desalojados do progresso, compreendemos que há uma dinâmica social própria, autossuficiente, que desfruta de uma economia paralela. E, assim, o Bairro parecia ser o mundo inteiro.
O tom da história é muito português e muito nosso - sim, mesmo não sendo natural da cidade Invicta, hei-de incluir-me sempre no seu regaço. O meu horizonte não é o lote da frente, mas, sem que lhe visse a fachada, senti-me a entrar neste lugar com tanta vida dentro. O recurso ao calão, através de todos os nossos advérbios de intensidade, à música, ao S. João e aos serões a ver novelas brasileiras que tanto nos fizeram sonhar, ajudaram não só a criar este ambiente, mas também a sentirmo-nos parte dele.
«O mundo lá fora é uma abstração, uma espécie de ficção na qual os seus habitantes são meros figurantes. O mundo real é o Bairro. E no Bairro todos são protagonistas»
O bloco da família Fonseca era o onze e viver naquela casa assemelhava-se muito a um jogo de Tetris, tendo em conta a falta de espaço, as dificuldades e a desproporcionalidade. Foram tempos complexos, nem sempre cruéis, nem sempre auspiciosos, e a protagonista foi acalentando o desejo de voar mais alto, de transpor os limites que sentiu serem-lhe impostos. Mesmo que se descobrisse e reinventasse naquele Bairro - e escrevo-o com letra maiúscula porque acredito ter sido uma das personagens centrais deste enredo -, a intenção de Cristina Maria era clara: sair dali.
Acho que é fácil compreendermos a sua ansiedade de abrir as asas. Ainda que não se sentisse verdadeiramente sufocada, aquele lugar era o lembrete constante do quanto almejar uma vida remediada, para muitos, já era o pináculo do privilégio, da sorte, de um futuro melhor. E, por isso, também é fácil compreender que esta história é o espelho de um país desigual, que a vergonha caminha sempre ancorada aos nossos passos, porque o estigma é audível, que são mais os sonhos vedados do que as pontes para a ambição. Há uma da lei da sobrevivência que é um dialeto partilhado por todos.
Uma Vida Assim-Assim dá, igualmente, a entender que, por mais que se chegue a sair de um lugar, aquele lugar nunca sai de nós. O Bairro será sempre da Cristina Maria e das suas pessoas. E vice-versa. Não sabia o que esperar deste romance, mas comovi-me com os seus retratos, revoltei-me com os abusos e os comentários machistas, ri-me com as peculiaridades que contam uma história a tantas vozes. Não sei o que existe para lá dos muros deste Bairro, mas há qualquer coisa que, ali, será sempre familiar.
🎧 Música para acompanhar: Um Dia de Domingo, Tim Maia & Gal Costa
8 Comments
Sinto que vou gostar muito de ler este livro *.*
ResponderEliminarE a minha wishlist da Wook continua a crescer a olhos vistos :D
EliminarAcredito que sim, minha querida. Não só pela narrativa em si, mas também por nos transportar para uma cidade que tanto adoramos!
Eliminar«E a minha wishlist da Wook continua a crescer a olhos vistos» a frase da minha vida ahahah
EliminarNão conhecia o livro e fiquei curiosa para descobrir a narrativa.
ResponderEliminarBeijinho grande, minha querida!
Foi uma bela descoberta! Não há grandes plots, é daquelas histórias sem personagens heroínas (como tanto gosto), mas sinto que fica connosco
EliminarMeu Deus, como é que não conheço nenhum livro que partilhas? 🫣
ResponderEliminarHá vários que também só encontro por causa do Alma 😊
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