Entrelinhas #38

Fotografia da minha autoria

«Um livro em formato de álbum»

A literatura Fantástica é um mundo em aberto. E praticamente desconhecido para mim. Embora aprecie o misticismo que lhe é inerente, este género nunca resulta numa primeira escolha. Porém, há obras que nos fazem querer arriscar. Quando estive no Porto Book Stock Fair, deparei-me com o livro de Beatriz Pacheco Pereira. E, assim que li a sua breve sinopse, percebi que não o podia deixar para trás.

Bianca e o Dragão tem o Porto como cenário principal e «uma história tirada do Fantástico e da Imaginação». E é acompanhado por pinturas maravilhosas de Agostinho Santos. A abrir a narrativa, encontramos o Preâmbulo, onde ficamos a conhecer as 18 Regras do Dragão, que funcionam como chave para a interpretação deste romance. Esta figura mitológica é associada às forças negativas, existindo uma constante oposição a Deus. De seguida, entramos no Prólogo, que assume um caráter mais especulativo acerca de um acontecimento que determina o destino das personagens. Intuitivamente, compreendemos que parte de uma memória que, mais tarde, terá impacto nas suas vidas.

O enredo divide-se entre situações misteriosas e estranhas, com destaque para o oculto, o além e o sobrenatural [tão próprio do género literário em questão]. Aliás, é fortemente marcado por contrastes: o bem vs o mal; a inocência da infância vs a vida adulta; o passado vs o presente; os anjos vs os demónios. E, como tantas vezes acontece, nem tudo é o que aparenta ser. Uma particularidade interessante, o próprio nome da personagem principal não foi escolhido ao acaso. Bianca [variante italiana do nome Branca] remete-nos para um estado de pureza, brancura, luminosidade, como se se tratasse de uma representação angelical, o que entra imediatamente em confronto com o significado maléfico atribuído ao Dragão. Portanto, torna-se inegável a simbologia presente na obra. Simultaneamente, reconhecemos o paralelismo com a condição humana e a sua incoerência, bem como as justificações explanadas alegoricamente, principalmente nas regras, para validar a dimensão do mal.

O realismo urbano permite-nos situar as personagens e acompanhá-las no decorrer da ação, o que estabelece um vinculo entre a componente escrita e o leitor. Em paralelo, a história aguça-nos a curiosidade, pelos acontecimentos insólitos e por todos os mistérios que, aparentemente, ficam sem resposta. O Dragão consegue assumir diversas formas. Espera. E destrói sem aviso. Enquanto isso, Bianca vê-se perante o inesperado e uma série de questões enigmáticas. Ao lidar com todas estas mudanças, há identidades que se revelam e um passado que se descobre. Consequentemente, aprende-se a lidar com a loucura, a solidão, a tragédia e a morte. Com a certeza, porém, de que existem memórias que nos acompanharão para sempre. 

É curioso como a nossa vida dá tantas voltas, ao ponto de pormenores com pouca importância adquirirem contornos significativos. Sinto que este livro é uma viagem pela alma humana, com causas e consequências que nem sempre são claras, mas que acabarão por se tornar visíveis, e que nos coloca alerta e em constante reflexão!

Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Vemos uma coisa e o que vemos, não é o que lá está na realidade. Mas se não vemos o que lá está, como poderemos, alguma vez, conhecer a verdade?» (p:9);

«Luís era a companhia que cortava o silêncio e a escuridão. Os olhos dele, contudo, estavam cada vez mais sombrios, como se estivessem sempre a pensar em algo que não chegava, como se, por dentro, uma dor o roesse, como se, ao olhar para ele e para a casa, perdesse a alegria que Bianca tanto estimava» (p:91);

«Na penumbra, a mãe disse-lhe, olhando as próprias mãos e depois o rosto da filha "Bianca, hoje reconciliei-me contigo, com a vida"» (p:74);

«Há momentos assim na vida, em que se fica suspenso de uma ideia, de uma impressão, de um rasgo de coragem ou de fraqueza» (p:79);

«Ora, este anjo que veio ao Porto, regressou um dia, sim, mas pediu a Deus para voltar de novo, à mesma mulher, ao mesmo sítio, à mesma vida. Deus nunca o permitia. Isso era manter-lhes a memória do humano após o regresso aos céus. Mas Deus compreendeu-o. Era o Amor que o fazia querer regressar. E Deus libertou-o por uns tempos, por reconhecer a força do sentimento do anjo» (p:113).