a cicatriz, maria francisca gama

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Violência, Luto, Linguagem Explícita e Gráfica


O meu primeiro contacto com a obra da Maria Francisca Gama não foi o mais animador, tenho de reconhecer. Adorei a premissa e encontrei pontos interessantes n' A Profeta, mas não me encheu as medidas, uma vez que senti que precisava de amadurecer os temas que procurou explorar. Não obstante, sabia que lhe daria uma nova oportunidade e o mais recente livro da autora foi a desculpa perfeita para isso.


as decisões que nos moldam

A Cicatriz abre-nos a porta para a história de um casal jovem, apaixonado, numa relação estável e saudável. Através da voz da protagonista/narradora, de quem nunca chegamos a saber o nome, acompanhamos as férias no Rio de Janeiro, banhadas de sol, sedução e leveza, e o quanto esperam que sejam dias inesquecíveis. E foram. Só que há um que ficará marcado pelo pior motivo, abalando-os para sempre.

É percetível, desde o começo, um prenúncio de fatalidade e a autora embala-nos num novelo de memórias, revelando-nos os factos no seu momento certo. As descrições da cidade vão camuflando o inevitável, mas o perigo permanece à espreita. E nós, enquanto leitores, percebemos que é mesmo uma questão de tempo até sermos confrontados com a desgraça. Este jogo prende-nos e torna a leitura mais frenética.

Tendo em conta alguns pormenores e a própria conversa que a Maria Francisca Gama teve com a Rita da Nova, construí uma teoria (com duas possibilidades) acerca do que tinha acontecido ao casal. E, por isso, achei que estaria preparada não só para toda a história, mas para aquela cena em específico. Mas não estava. Nem poderia estar: porque é crua, explícita, demasiado vívida, de uma brutalidade tremenda. E está tão bem descrita, que, por instantes, senti-me lá, impotente, a assistir a tudo. A narrativa tem uma identidade muito visual e, ali, isso foi ainda mais notório, ao ponto de sentir o estômago às voltas. Apesar de não ser uma passagem imprevisível, acredito que a experiência de leitura não fica comprometida, porque a escrita é fabulosa.

«Foi a primeira vez que me puseram naquele grupo (...) e nunca me senti tão sozinha ao pertencer a alguma coisa»

Sem querer entrar em comparações, referir que senti uma enorme evolução do livro anterior para este, com um ambiente mais coerente e credível. Além disso, denota um equilíbrio maior entre a descontração e a vulnerabilidade, entre as motivações e a concretização. Fiquei apenas com uma questão pendente, referente ao período pós-férias no Rio, onde é mais evidente o trauma, porque tive dificuldade em compreender o silêncio e a aceitação. No entanto, não belisca o quanto a obra me marcou, porque é mesmo um «relato profundo e duro» sobre tudo aquilo que não controlamos.

A Cicatriz lê-se num piscar de olhos, mas faz-nos pensar no quanto as nossas decisões se revestem de acasos, do quanto apresentam um traço inesperado, atendendo a que nunca sabemos aquilo que nos reservam ao certo. Nesta história, emocionei-me e revoltei-me na mesma medida. E questionei-me sobre como se sobrevive, e se é suposto, quando nos dilaceram por inteiro. Mas, no meio das trevas, também li amor.


🎧 Música para acompanhar: Quem Tem Mossa, Iolanda

📖 Outros livros lidos: A Profeta


Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

8 Comments

  1. Vou começar a semana a guardar mais uma sugestão!
    Isabel Sá
    Brilhos da Moda

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  2. Uma maravilhosa review, bem escrita, como sempre :)
    "A profeta" também não me deslumbrou mas tenho a certeza de que vou gostar muito mais deste

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    1. Muito obrigada, Mariana 😍
      Acredito que sim, até porque tens uma história mais coesa e a escrita está mais madura

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  3. Já ouvi falar muito da autora e deste livro.

    Levo a sugestão, como sempre *.*

    Beijinho grande, minha querida!

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    1. Aconselho muito este, mas faço a ressalva de ter linguagem gráfica e explícita

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  4. Desconhecia completamente. Obrigada pela partilha!

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