nini, ticas graciosa

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Linguagem Gráfica e Explícita


O impacto da saúde mental na maneira como nos relacionamos connosco e com os outros é visível, deixa marcas e, em inúmeras circunstâncias, pode despoletar traumas. O livro de estreia da Ticas Graciosa centra-se numa dessas ramificações.


viver para perceber

Nini é uma obra de ficção, mas inspirada num acontecimento da vida da autora: a morte dos pais. Nesta história, a protagonista que dá nome ao livro é confrontada, desde a infância, com o pior e o melhor que vive dentro de cada um de nós. Aliás, rapidamente compreende que as pessoas que mais amamos têm a capacidade de nos infligir dor - nem sempre física, nem sempre emocional, muitas vezes ambas. A viver num ambiente violento e preconceituoso, a sua inocência vai-se estilhaçando.

É devastador acompanhar o crescimento de Nini. E por várias questões: pela estrutura familiar frágil e instável, pelo medo, pela imprevisibilidade, pela mentira e por pertencer a um meio que prefere continuar a olhar para o lado, ignorando todas as evidências do caos que habita dentro de quatro paredes. O lugar de onde vimos pode condicionar o nosso futuro, sobretudo quando motivado pela vergonha, pelo poder da opinião de terceiros. E se o meio é pequeno, é inevitável que, primeiro, tudo se saiba e, segundo, que exista sempre falatório e juízos de valor. Portanto, há quem prefira fechar os olhos para proteger os seus, mas até que ponto é que isso é benéfico?

«Há um tempo, e também um espaço, entre não disparar e não ser atingido pelo disparo. E foi nesse espaço que ambas acordaram, silenciosamente, ficar dali para a frente»

Revoltei-me muito com certos comportamentos, mas também admito que não me consegui relacionar em pleno com a narrativa. Houve partes do discurso da protagonista que me pareceram um pouco desfasadas da idade, com uma lucidez e maturidade que não me soaram credíveis, já que os assuntos não eram debatidos abertamente. Percebo que a curiosidade possa ter despertado essa atenção, ainda assim, precisava de uma coerência maior. Além disso, houve saltos temporais que precisava que fossem menos céleres, para sentir o verdadeiro impacto dos acontecimentos na vida de Nini e o quanto a moldaram, quer em relação ao modo como se via, quer em relação à convivência com as pessoas que se foram cruzando no seu caminho. Outro aspeto que me deixou reticente foi a mudança abrupta na atitude de algumas personagens - mas aqui reconheço que possa ser o trauma a ter voz.

Não consigo imaginar o que é crescer dentro de uma mentira tão atroz, mas acredito que a mesma impeça que o luto seja feito de uma forma menos tumultuosa. E acho que isso se foi percebendo em Nini. Embora tenha tido sempre mais curiosidade em compreender do que esconder-se numa espiral de revolta, nota-se a vulnerabilidade e que há feridas que nunca chegaram a sarar por completo. Não obstante, é comovente perceber como o amor pelos pais falou sempre mais alto. No fim, creio que nunca chegou a culpar o progenitor, mas carrega a mágoa pelo auxílio que nunca recebeu.

Tive algumas oscilações com este livro, no entanto, há algo que, para mim, se tornou inegável: a autora foi capaz de dar voz «ao sofrimento de quem não consegue fazer-se ouvir». Por esse motivo é que estes pais não tiveram nome: porque são o retrato de todos aqueles que sofrem às mãos do estigma que ainda paira sobre a saúde mental.


🎧 Música para acompanhar: Saudade, Saudade, Maro


Disponibilidade: Wook | Bertrand

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

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