ENTRELINHAS // QUANDO O CORAÇÃO NÃO PERDOA

Fotografia da minha autoria


«Eva tinha um desejo: não ser filha única»


Os livros são cordas que nos ligam. Pela empatia de uma vivência. Pela compreensão profunda de um testemunho. Pelo sonho que se manifesta, em cada salto de fé, nas viagens que nos transformam. E, mesmo quando não reconhecemos os contornos de uma determinada história, há sempre um fragmento de sensibilidade a unir-nos. Porque sobressai uma verdade interior, tal como acontece no segundo exemplar da Ana Rita Correia.

«Podia não saber muito sobre o que era amar, mas tinha 
a certeza que não deveria ser assim» [p:20]

Quando o Coração não Perdoa tem um caráter autobiográfico. E eu identifiquei-me, de imediato, com uma das temáticas, visto que nunca quis ser filha única. A questão é que a narrativa, dividida em duas partes centrais, transportou-me para uma realidade que jamais senti na pele e sobre a qual só posso conjeturar a partir de um plano emocional bastante indireto. No entanto, é impossível ficarmos indiferentes à perda, à dor, ao vazio, à brutalidade das despedidas irreversíveis. Em simultâneo, evidencia a importância da nossa família, sobretudo, quando a vida nos vira do avesso e nos retira o tapete sem piedade.

«Ao início eram tão iguais, como é que se 
tornaram tão diferentes?» [p:42]

A autora, com uma escrita fluída e mais madura, até porque o assunto - e a simbiose com o mesmo - assim o exige, desenvolveu um enredo que nos desassossega por dentro, fazendo-nos refletir sobre a nossa reação. Eu não sou mãe - e o mais perto que tenho desse laço umbilical é o meu afilhado -, nem irmã. Por isso, não sou capaz de imaginar o quanto é devastador perder um filho/um irmão. Nem o peso que é, enquanto mulher, gerir um aborto espontâneo. Contudo, creio que o sentimento de culpa deve ser uma constante, pois persistirá uma voz a questionar onde se falhou ou, então, o que se fez de errado. Embora certas passagens merecessem uma descrição mais detalhada, sinto que estas angústias são quase palpáveis. Portanto, há uma mudança inevitável na maneira como nos relacionamos connosco e com os outros, porque é necessário aceitarmos o nosso luto, procurando não sucumbir.

«De repente, tudo desapareceu. Tudo ficou escuro e depois branco. Branco demais para ser real. Ao longe ouviu uma voz chamar pelo seu nome, como se estivesse no fundo de um túnel» [p:65]

Existe, por consequência, um grau de vulnerabilidade que não é fácil de partilhar. Aliás, chega a ser um ato de coragem, uma vez que falar sobre o processo torna-o, num primeiro momento, mais real e doloroso. Depois, compreendemos que é fundamental para não desistirmos, para [nos] perdoarmos e para conseguirmos seguir em frente. Ainda assim, por mais forte e lúcido que seja o coração, há sempre algo que nos atormenta - porque não nos perdoamos em pleno. E aquela ferida, mesmo que deixe de doer com tanta intensidade, nunca desaparece totalmente.

«Podíamos ter aproveitado isso, não? Podíamos ter feito as pazes, podíamos ter sido o pilar uma da outra como outrora fôramos, mas havia demasiadas pessoas à nossa volta, demasiado ruído de fundo» [p:85]

Numa perspetiva paralela, esta obra também nos permite tecer considerações sobre relações tóxicas, sobre os amores e desamores da vida, sobre as amizades que se desenlaçam, sobre o nosso crescimento, sobre maternidade e sobre prioridades. E, inclusive, alerta-nos para a imprevisibilidade do destino, para a urgência de sabermos escutar e para o facto de irmos ter onde somos esperados, ainda que não seja sempre simples aceitar as reviravoltas que nos reservam. E, assim, oscilamos entre a dor e as conquistas; entre a fé e a esperança.

«Pela primeira vez tudo fez sentido e, ao contrário do esperado, 
não tive medo do que poderia vir depois» [p:104]

Quando o Coração não Perdoa tem uma voz inspiradora. Porque, sem esquecer as cartas finais, este livro honesto, profundo e emocional é um manifesto de amor e de superação. E é, ainda, uma sentida homenagem à mãe. À irmã. E a todas as famílias que perderam um dos seus elos.


// Disponibilidade //
Caso estejam interessados em adquirir o livro, entrem em contacto com a autora, de modo a verificarem se ainda tem exemplares disponíveis.

Comentários

  1. Meu Deus...Minha querida, acho que nunca ninguém me tinha dito estas palavras, desta forma. Estou sem palavras. Obrigada por tudo! 🙏🧡

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  2. Adorei a sugestão ❤️ E eu que sempre quis ser filha única e agora adoro os meus irmãos🥰 ai o Variações é que tinha razão 🧡

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  3. Sou filha única, mas nunca pensei, se queria ser filha única ou não.

    O coração que não perdoa, não é um bom coração.

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    1. Desde miúda que sempre quis ter um irmão, mas não se proporcionou. No entanto, tenho os meus primos, que são quase como irmãos *-*

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  4. Já li este livro da Rita e gostei imenso. É um murro no estômago, louvo-lhe a coragem de ter exposto assim desta forma um tema tão sensível *.*

    Beijinho grande!

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    1. Não é mesmo nada fácil falar sobre um assunto tão delicado!

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  5. Não conhecia o livro, mas de alguma forma não sendo, acabo por ser filha única.
    Lembrei-me também de várias amigas que passaram pelo processo descrito (aborto espontâneo mas também a perca de um filho) e é preciso uma coragem imensa transportar isso para um livro!

    Beijos e abraços.
    Sandra C.
    Bluestrass

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    1. Não consigo mesmo imaginar a dor que todo esse processo envolve :(
      Sim, sem dúvida!

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  6. Não conhecia mesmo de todo o livro, mas parece ser bastante interessante

    Beijinhos
    Novo post
    Tem post novos todos os dias

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  7. Gostei desta sugestão de leitura.
    E gostei muito (gosto sempre) da introdução.
    Continuação de boa semana, querida amiga Andreia.
    Beijo.

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    1. Fico muito feliz por ler isso, Jaime! Muito obrigada *-*

      Continuação de boa semana

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  8. É complicado, mais adorei o que você postou ! que sirva de lição para todos nós. beijos
    segredosdamarii.blogspot.com

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  9. Parece-me interessante, pois também sou filha única.

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    1. Enquanto filhos únicos, sinto que nos conseguimos rever em inúmeros aspetos. Mas, depois, estende-se para uma realidade que não deixa de ser um murro no estômago

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  10. Já li o livro da Rita e identifiquei-me imenso. Quando tinha 6 anos a minha mãe teve um aborto espontâneo (estava de 5 meses e era um menino) e embora na altura não me tivessem dito o que se tinha passado, apercebi-me muito rápido de que o sonho de não ser sozinha, jamais se concretizaria. Vi os meus primos terem irmãos e apeguei-me imenso a eles, cuidei deles como se fossem meus irmãos. O irmão que perdi faz-me falta. Este ano, está a fazer-me ainda mais falta (sem que me aperceba o porquê de estar tão fragilizada quanto a esse assunto). Fico muitas vezes a pensar o que estaríamos a fazer agora, com 14 anos, o que me podia pedir, onde iríamos juntos, se teríamos um espaço só nosso. E custa. Podem passar 20, 30, 40 anos e a dor vai ser sempre a mesma. Jamais saberei o que é ter um irmão, e é por isso que me apego muitos aos meus amigos que tanto me fazem lembrar um irmão, que sempre está lá para o que preciso, e principalmente, para me abrir os olhos e também irritar (faz parte 😅). Dói muito e ler as palavras da Rita fez-me ver o quanto gostaria meeeesmo de o ter aqui, ao meu lado. Tanto lhe diria, tanto faríamos. Não importava de perder tudo o que tenho, se isso o fizesse estar aqui, mas a vida não funciona assim. Resta-me escolher a estrela mais bonita do céu e acreditar que é ele que ainda olha por mim. 😞

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    1. Obrigada por partilhares comigo ❤️
      Não sabendo os reais contornos dessa dor, acredito que fica sempre entreaberta aquele «e se ele/ela estivesse aqui?» ou, então, «e se nada disto tivesse acontecido?». E, embora inevitável, não deixam de ser pensamentos que mantêm a ferida permanente.
      «Resta-me escolher a estrela mais bonita do céu e acreditar que é ele que ainda olha por mim», sim, faz isso. Ele há-de estar sempre a caminhar ao teu lado!

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    2. Obrigada eu, por leres. ❤️
      Haverão sempre perguntas às quais não vamos ter respostas. Essas perguntas são das tais que jamais saberemos responder.
      Acredito que sim. E divido sempre as minhas conquistas com ele. Sempre penso: olha, vês? Conseguimos mais isto!
      É pena não ter um sítio onde o visitar (como a minha avó que sei que está “naquele sítio”, onde posso la ir e sentir-me menos sozinha), mas sei que estará sempre em mim. Quando não esquecemos as pessoas, elas estão sempre presentes. 🙏🏼

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    3. Acredito que não haver esse sítio seja ainda mais difícil. Iria magoar de igual forma, mas, por outro lado, quando as saudades apertassem com mais força, poderias sempre ir até lá.
      Sim, sem dúvida, partilho desse pensamento!

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  11. Querer ser ou não ser filho único. Isso não depende da vontade de cada um. Mas, sim, eu penso e acredito que depende do destino. Gostei das sugestões e do que li.

    Tenha uma boa noite Andreia.

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    1. É daqueles assuntos que acabam por nos ultrapassar um bocadinho

      Igualmente, Edumanes

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