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Fotografia da minha autoria |
«Gosto das duas coisas. De ir e voltar»
A pergunta foi construída para a narrativa, mas acertou-me em cheio. Fui avançando no livro Mary John (de Ana Pessoa), mas senti necessidade de parar no momento em que Sónia pergunta à protagonista se, quando faz a viagem até ao seu antigo bairro, sente que está a ir ou a voltar. Tal como Maria João, devolvi a resposta com uma pergunta: «Como assim?». E, de seguida, perdi-me nesse mar que é a diferença entre o ir e o voltar.
Nunca mudei de casa, nunca tive de repensar a minha vida noutro lugar, por isso, fiquei presa a esta dicotomia, a esta sensação fragmentada, que me mostra a liberdade de um gesto e a noção de ser parte de algo - ou de alguém. Se eu vou, por mais que existam elos a ligar-me ao local - ou às pessoas -, sei que, no fim, migro como uma andorinha. O meu propósito, ali, foi cumprido. Por outro lado, se volto, mesmo que saiba que não posso permanecer, sei que há um vínculo de pertença a envolver-me. Sou daquele chão, daquela casa, daquele peito em céu aberto. Mas, depois, abro as asas e sou convidada a partir pela imposição da mudança.
Na vulnerabilidade de uma listagem mental, sempre norteada por um motor sentimental, refleti sobre todos os espaços e abraços para onde fui e para onde voltei. Sem qualquer diminuição dos primeiros, sou muito mais próxima dos segundos, porque, como disse Manuel António Pina, «estão-me justos, estão à minha medida» e, além disso, como canta Carolina Deslandes, são «da minha alma». E houve algo que acabou por florescer.
Um traço de melancolia cobriu-me o peito, uma vez que foi imediata a imagem quebrada de regaços para onde nunca mais voltarei. Há perdas que não se revertem, há perdas que alimentamos pela mágoa, pelo desgosto ou pela noção de podermos seguir caminhos que não partilham as mesmas coordenadas. E acho que aquilo que me pesou nem foi tanto a irreversibilidade que se manifesta em forma de luto, mas a despedida silenciosa de um afastamento. Seja como for, em qualquer um dos cenários, sobrevive-se pelas lembranças, mas a dúvida do que poderia ter sido, caso permanecêssemos num compasso comum, aparenta ser um eco infinito.
Fui compreendo o lugar comum que é a expressão «amar também é deixar ir», porque, de facto, quando amamos, vamos perdendo o lado egoísta dos primeiros tempos, amadurecemos, comunicamos, aprendemos a confiar e vamos percebendo que é tão maior o sentimento, que só queremos que o outro voe o mais longe que conseguir, ainda que isso implique voar para longe de nós. Demorei foi a perceber que a tua bagagem estava pronta para ir a qualquer momento, enquanto a minha, também ela pronta, teria sempre intenções de voltar.
Entendo o argumento de não voltarmos onde fomos felizes, pois podemos quebrar a imagem que construímos. Não sou capaz. É fruto da minha essência este regresso, esta possibilidade de revisitar e de reconstruir; de edificar novas memórias, que nunca substituirão as anteriores. Mesmo que me desiluda, separarei as duas margens e preservarei a inocência do passado. Então, talvez aí perceba que voltar já não se justifica.
Em silêncio, a desfrutar da viagem, verifico que vou voltando cada vez menos a ti. Há uma camada de neblina a pairar nas minhas memórias, a ofuscar o caminho de regresso, embora voltar ao teu abraço fosse sempre um prenúncio de primavera, um raio de esperança. Só que a esse espaço já só vou em pensamento. Vou e não fico. Na realidade, porque não voltei. Fui, contudo, nada me fazia sentir que tinha chegado ao meu lugar.
Tinha(s) todas as coisas maravilhosas que me deixavam em paz, mas foi necessário partir. Nunca tive de repensar a minha vida noutra casa, mas tive de o fazer em relações de amizade - na nossa, sobretudo. Creio que não existe mais mágoa, apenas entendimento. Fiz as pazes com a ausência, no entanto, esta porta ficará entreaberta, enquanto a pergunta da Sónia à Maria João ressoar em mim. Ou, então, quando outra frase de outro livro qualquer me confrontar com idas e voltas, com o vazio de uma despedida que nunca aconteceu. A diferença é que, nessa altura, saberei que, por mais que goste das duas coisas, estou só a ir, não a voltar.
6 Comments
Que boa maneira de iniciar a semana, com uma reflexão tão bonita.
ResponderEliminarGostei imenso. De facto, por vezes, precisamos de ir e voltar.
Boa semana, minha querida.
Beijinho grande.
Muito obrigada, minha querida!
EliminarVerdade. Dependendo das circunstâncias, temos essa necessidade e, depois, vamos ajustando à nossa vontade, aos estímulos que recebemos de fora. Além disso, a noção de irmos e de voltarmos também vai crescendo em nós, consoante o nosso entendimento das coisas e daquilo que sabemos que já não nos serve - ou que servirá eternamente.
Vou e volto *em resposta ao titulo que adoro* :) Quando era miuda adorava ficar a ver o voo das andorinhas sempre com o pensamento de que um dia haveria de migrar como elas e nao é que aconteceu *.* Obrigada por este texto tao inspirador que me deixou a pensar e isto é tao bom :)
ResponderEliminarE fico muito feliz por voltares sempre 🥰
EliminarÉ tão bonito, não só pelo voo em si, mas também pela possibilidade que referes. Mesmo que, para muitos, esse migrar não aconteça, só a certeza de haver mais mundo é inspiradora.
Eu é que agradeço pelo feedback
Oh, tão bom mesmo é começar a nossa semana assim,
ResponderEliminarQue reflexão mais bonita
Beijinhos
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Muito, muito obrigada, Sofia!
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