notas literárias abr'24

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A banda sonora de uma viagem literária


A playlist literária de abril, só para não destoar do que tem sido habitual, é uma autêntica manta de retalhos: não tanto pelos estilos em si, mais pelos nomes que a integram, que são muito diferentes. Além disso, fiquei a conhecer artistas que não me eram familiares e isso é algo que aprecio bastante. Com um tom introspetivo e um pouco interventivo, também fui buscar associações a artistas que já têm aquele abraço a casa.


os crimes do verão de 1985, miguel d’alte
Space Age Love Song, A Flock of Seagulls Numa narrativa pautada por tanta escuridão, prefiro guardar uma das partes mais bonitas: a história de amor que vamos conhecendo em segundo plano. Por isso, e porque este tema marca uma das interações entre as personagens, numa passagem simples, mas que demonstra intimidade (e aquele conforto que só conseguimos perto de quem nos diz tanto), quis associar a música dos A Flock of Seagulls. Quando fui ler a letra, revi as personagens logo nos primeiros versos.

máquina de escrever sentimentos, inês meneses
The Pretty Girls, Ed Harcourt Na entrada 38, a autora recorda-se de um verso desta canção. Não a conhecia, mas só por essa amostra percebi que seria uma associação certeira: por um lado, Inês Meneses sente que lhe falta uma peça vital (e «uma peça pode ser tanto») e, por outro, esta obra é toda ela feita de várias peças, de vários assuntos e emoções. A restante letra foge por completo do que encontramos nestas páginas, mas «I'm a puzzle with a missing piece» descreve-a na perfeição.

devoção, patti smith
Dream Of Life, Patti Smith ▫️ A escrita é uma parte bastante significativa da vida da autora, portanto, achei que esta música se enquadrava no assunto da obra, tão voltada para a escrita e para o processo que a acompanha. Mesmo que Patti Smith tivesse outro destinatário no pensamento, os «I'm with you always/You're ever on my mind/In a light to last a whole life through/Each way I turn/the sense of you surrounds» poderiam muito bem referir-se à sua inspiração e a esta vontade quase obsessiva de estar sempre a escrever. E escrever não deixa de ser o seu sonho de vida.

véspera, carla madeira
Ferida Aberta, Paulo Novaes ▫️ Tive alguma dificuldade em pensar numa música que conseguisse ilustrar a energia desta obra, porque é muito específica, porque cruza pessoas e linhas narrativas distintas. No entanto, ficou a pairar a imagem que encontrei logo na primeira página: a de uma ferida aberta. E foi assim que me cruzei com o tema do Paulo Novaes, cuja letra também tem alguns versos que me remetem para esta história: «Pra esclarecer e esquecer o lado negro» e «Da minha dor/Maior amor/Saudade que doí».

vemo-nos em agosto, gabiel garcía márquez
Siboney, Orquesta Aragón & Omara Portuondo ▫️ Ana Magdalena deixou-se arrastar pela magia desta música e, honestamente, acho que podia muito bem ser a banda sonora de todas as suas viagens à ilha. Com um toque de sensualidade, de expectativa e de um amor aparentemente eterno, mas também fugaz, acho que lhe serve na perfeição.

regras de isolamento, djaimilia pereira de almeida
Grândola, Vila Morena, Zeca Afonso ▫️ A 25 de abril de 2020, esta música «ecoou pelo bairro». Tendo protagonizado um momento comovente, com vizinhos à janela, a estreitar a distância imposta pelo isolamento, pareceu-me a associação musical mais apropriada para embalar esta leitura.

merdas do amor, paulo rodrigues
Essa Saia, Bispo & Ivandro ▫️ A escolha desta música é da inteira responsabilidade do verso «mas sabes bem que essa saia curta não te favorece», em particular da palavra saia, que parece ter sido apropriada pela dupla. Não foi, mas a verdade é que quando a ouço sou logo transportada para o tema em questão. E adoro que, ao redescobrir a letra, contraste com a obra.

quando os rios se cruzam, rita da nova
La Notte, Arisa ▫️ A Rita criou uma playlist para QORSC, o que muito me entusiasmou, porque pude ser embalada ainda mais para o interior - e para a emoção - da narrativa. Ao escutá-la, percebi que a minha associação final seria esta, uma vez que, para além de ser uma canção italiana, é composta por versos que me recordam de passagens e personagens do livro, nomeadamente «Porque carrego uma dor que sobe, que sobe», «E quando chega a noite/E fico sozinha comigo/A cabeça sai para passear/Em busca dos seus porquês» e «A vida pode nos afastar/Mas o amor vai continuar». Além disso, mesmo que a intenção não tenha sido essa, a noite acaba por ser uma espécie de protagonista desta história.

olive kitteridge, elizabeth strout
Hello, Young Lovers, Southside Players ▫️ O motivo desta combinação não é surpreendente: já na reta final do livro, há uma personagem que menciona o tema e, quando o fui ouvir, consegui imaginar-me sentada naquele banco de madeira a ver o rio. Crosby é uma pacata povoação costeira e a melodia serena, sinto, encaixa bem com a paisagem. E visto que cruza tantas vidas, com tantas palavras para serem partilhadas, preferi optar por um instrumental.

utopia, raquel varela & robson vilalba
Tanto Mar, Chico Buarque ▫️ O meu primeiro pensamento foi escolher uma música de Zeca Afonso, até porque uma das cenas mais bonitas deste livro, para mim, passa-se no Festival Vilar de Mouros. Todavia, acabei por seguir a indicação da contracapa, que refere este tema de Chico Buarque. E fez-me mais sentido assim, não só por representar a junção entre os autores (uma portuguesa e um brasileiro), mas também pela própria letra, que refere cravos, festa e a necessidade de continuarmos a navegar (que me parece uma boa metáfora para a luta que travamos diariamente).

ver no escuro, cláudia r. sampaio
Carro, Bárbara Bandeira & Dillaz ▫️ Uma das ideias que ficou a ecoar deste livro foi a sensação de estarmos e fazermos várias coisas pelos outros, mesmo quando eles não notam, não têm noção disso. E qual o melhor tema para o representar? O que junta a Bárbara Bandeira e o Dillaz, porque quando o rapper canta «por ti circulava às 20h na IC19 (…) Mas, querida, tu não tens a noção», facilmente encontro outras representações nos versos da Cláudia R. Sampaio. Embora o livro não se limite a este tema, quis destacá-lo pelo impacto que teve em mim.

o pequeno amigo, donna tartt
Bite The Hand, Julien Baker, Phoebe Bridgers & Lucy Dacus ▫️ Esta narrativa tem um tom ligeiramente sombrio, uma fatalidade iminente, um tom de vingança constante. Mas, depois, também fiquei presa à ideia do «eu não te posso ouvir, estás muito longe» e, sobretudo, «eu vou morder a mão que me alimenta», porque parece que há sempre uma ausência de valores, quando aquilo que se pretende descobrir fala mais alto.

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