os (a)braços que nos faltam

Fotografia da minha autoria


«quem me dera não chorar/Por nos teus braços um dia não poder deitar»

O mundo que alcanço da janela do meu quarto é bem mais bonito por saber que, mesmo sem as ver ao segundo, as minhas pessoas continuam a estar a uma pequena distância. Mas e quando já não estiverem?

A morte nunca me afligiu por aí além, talvez por ter contactado com ela numa fase precoce da minha existência, talvez por não a trazer tanto para o centro das minhas angústias. Ainda assim, é claro, perder aqueles que amo sempre foi uma preocupação: sei que não o controlo, que é inevitável, que é só a vida a seguir a sua lei natural, mas acho que nunca nos conformamos bem com esta ausência, com a possibilidade de se quebrarem vínculos que queremos eternos. E por mais que acredite na velha máxima de que as pessoas só morrem quando nos esquecemos delas, a verdade é que, em algum momento, terão de partir, de deixar de existir fisicamente. E o fosso emocional abre-se numa ferida que talvez nunca sare na totalidade.

Sempre fui pessoa de abraços e nunca tive qualquer medo de morrer (da forma como isso se processará é que já não é assim). E em que ponto é que estes pólos se cruzam? Na inevitabilidade de perder os (a)braços de quem parece sustentar o meu mundo. E sendo vários os alicerces, compreende-se que a força do embate não será silenciosa.

Não sei o momento em que passei a estar mais consciente deste destino. Ou talvez saiba, mais evite pronunciá-lo por qualquer superstição. Tempos à parte, o certo é que passou a latejar esta noção de finitude, como se tudo em mim se fosse preparando para uma situação de luto. Visão fatalista? Provavelmente. Mas revi-me muito nas palavras que a Rita da Nova e a Maria Francisca trocaram, aquando da conversa de promoção d' A Cicatriz, sobre a necessidade de debater certos temas quase numa postura de prevenção, como se falar sobre eles lhes retirasse peso ou, então, nos permitisse racionalizá-los. Acho que há coisas que, por mais que as tentemos desconstruir, nunca deixarão de magoar e tanto a perda como a ausência encaixam bem aqui. Ainda assim, há mecanismos que se podem adquirir pelas palavras. E, se calhar, esta é a minha maneira de ir guardando em caixas emocionais tudo aquilo que de melhor tenho das minhas pessoas.

A reflexão sobre os (a)braços que faltam surgiu, na realidade, enquanto escutava o tema Mãe, do Edmundo Inácio, porque espelha bem a imagem de, um dia, já não podermos recorrer àquela pessoa. Bastou-me trocar-lhe o destinatário algumas vezes e senti cada palavra na pele. Bastou-me fechar os olhos para sentir o peito a colapsar. Porque, por enquanto, este cenário é hipotético. Mas e quando não for?

A partir dos 4 anos, fiquei sem o colo do meu avô materno (feliz aniversário, estejas onde estiveres). Aos 18, o da minha avó materna. Há uns anos, o da minha madrinha. Nestes lugares que vão faltando à mesa, falta a família e nenhum amigo. E acho muito estranho esta ideia de chorar a perda de um amigo. Talvez por ter crescido ao mesmo tempo que nós e pairar neste crescimento uma certa noção de invencibilidade. Falar sobre isto não me paralisa, não me impede de viver. Como canta a Nena, é o que é. Mas entristece e povoa sempre este terreno emocional de uma certa angústia.

Os braços que já nos faltam são, também, o laço que nos veicula a este lugar. Mas imaginar o mundo sem eles, enfrentado todas as dores sem o seu alento, deixa uma sensação agridoce: porque impulsionaram as nossas raízes, mas não estarão aqui para nos ver voar. Não sei o que nos espera, nem para onde iremos. Mas talvez as minhas palavras sejam as lágrimas que ainda não tenho de chorar.

8 comments

  1. Que bonita reflexão. Gostei imenso e comoveu-me.
    As palavras são sempre uma excelente forma de expressamos a perda. E que bem que o fazes.
    Beijinho grande, minha querida!

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    1. Muito obrigada, minha querida! Sim, também acredito nisso. Acho que são uma catarse que nos ajuda a avançar

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  2. Leste-me a alma mais uma vez... Nem imaginas o quanto me revejo nas tuas palavras...seguimos em frente com as nossas estrelinhas a guiarem o nosso caminho *.*

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  3. Uma bonita reflexão para refletir a falta de um abraço muitas vezes dói, é sempre bom poder receber um abraço bjs Andreia.

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    1. Muito obrigada, Lucimar! Sem dúvida, faz toda a diferença. Muitas vezes, é o colo que precisamos

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