utopia, raquel varela & robson vilalba

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Morte, Segregação, Linguagem Explícita


A Revolução dos Cravos trouxe mudanças profundas, sendo uma delas a capacidade de sonhar com um mundo diferente, mais justo, mais seguro, mais democrático. E aquilo que, até então, parecia «incrível tornou-se quotidiano». Ainda assim, o pós-25 de abril, à semelhança do pré e do durante, não foi um espaço de felicidade plena: trouxe, igualmente, várias áreas cinzentas e a certeza de ser preciso continuar a lutar. É esta transição que encontramos no livro da Raquel Varela e do Robson Vilalba.


 cooperar e não competir

Utopia é narrado por José, um jovem da periferia de Lisboa, a viver em plena década 1960. Por isso, direta ou indiretamente, acaba por vivenciar os finais do Estado Novo, o impacto do embarque para a guerra de África, as cheias de 1967, a clandestinidade e o desabrochar para questões políticas e culturais. Nestes submundos que se interligam, vai moldando a sua personalidade e os valores que procura que o movam.

Gostei, particularmente, das ilustrações: a preto, semi esbatidas, que nos transportam não só para a noção de terem sido períodos conturbados, pouco lineares, mas também para a certeza de terem sido transversais a vários elementos da população. Portanto, é quase indiferente que se distinga um rosto ou um lugar em concreto, porque a narrativa foi semelhante a muitos outros. Saber isto também nos faz refletir sobre o sentido de comunidade e sobre a força de um coletivo unido pela mudança.

Neste livro, abordam-se várias questões, algumas nem sempre exploradas a fundo (o que compreendo, até pelo facto de ser uma novela gráfica), mas é impossível ignorar o cenário geral. Entre a lista de temas que mais me impactaram, encontro, sem qualquer dúvida, a mortalidade infantil e a saúde materna, porque são exemplos gritantes da precariedade do nosso país. Por outro lado, a segregação e as gestões familiares que ficam comprometidas por um suposto bem maior são um espelho das narrativas que se construíam para ludibriar, são um espelho do medo que era usado como gatilho.

«Numa revolução que traz grandes mudanças, alteram-se também os pilares sobre os quais assentam a sociedade e as instituições»

A opressão, claro, é um dialeto muito presente, mas achei interessante que se focasse o papel da música de intervenção - e uma das páginas mais bonitas, para mim, prende-se com o festival de Vilar de Mouros. O José é a figura principal da obra, porque é através dele que unimos cada uma das suas camadas, mas também temos Jaime e todos aqueles que «participaram em greves [e] manifestações», porque descobriram «necessidades que não sabiam que tinham». É com todos ele que acabamos, ainda, por pensar sobre radicalismo, desobediência, amizade, pertença e participação ativa.

Queria ter encontrado um livro mais vívido emocionalmente, porque sinto que algumas partes ficaram apenas pela apresentação de tópicos, no entanto, acho que há mensagens que ficam claras, tais como a vontade de viver em cooperação e não em concorrência, a sensação de existir sempre uma alternativa e a certeza de ser possível mudar a vida do país se nos formos transformando individualmente. Em simultâneo, é notório que nada é garantido e que há crises profundas que podem comprometer a emancipação. Não sei para onde vamos, mas continuo a acreditar que, por maiores que sejam as encruzilhadas que nos esperam, é possível não vivermos numa utopia.


🎧 Música para acompanhar: Tanto Mar, Chico Buarque


Disponibilidade: Wook | Bertrand

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

10 comments

  1. Fiquei curiosa com este livro, principalmente porque nunca li livros sobre o 25 de Abril. O primeiro contacto foi com o livro Anatomia dos Mártires do João Tordo.

    Beijinho grande, minha querida ♥️

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    1. Acho que este está muito interessante. Gostava que algumas fossem um nadinha mais exploradas, mas aconselho!

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  2. Estou bastante curiosa com este livro *.*

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  3. Vamos lá guardar mais esta sugestão. Bom fim-de-semana!
    Isabel Sá
    Brilhos da Moda

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  4. Mais uma bela sugestão de leitura~
    https://retromaggie.blogspot.com/

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  5. Muito interessante o livro é sempre bom conhecer bons livros, Andreia bjs.

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