os últimos livros que senti habitar

Fotografia da minha autoria



«É isto um livro,/uma espécie de coração»


A premissa deste desafio para o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor surgiu quando ouvi a conversa entre Valter Hugo Mãe e Rui Maria Pêgo, no Debaixo da Língua. A dado momento, o autor disse algo como «eu tenho para mim que passei por alguns livros como quem habitou alguns livros» e esta imagem ficou a ecoar.

Há histórias que, por tudo o que nos fazem sentir, se tornam numa espécie de extensão da nossa realidade. Por um lado, existem contextos tão credíveis e próximos que nós nos sentimos como uma personagem daquela narrativa, por outro, há enredos que não nos importaríamos de habitar por vários motivos: pelos cenários, pelas experiências, pelo colo, por serem asa, por terem personagens com quem não nos importaríamos de construir uma ligação. E todas essas razões seriam válidas para nos teletransportarmos.

Eu sei que na ponta da língua terei sempre como exemplos Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Afonso Cruz), O Pintassilgo (Donna Tartt), A Sombra do Vento (Carlos Ruiz Zafón), Pessoas Normais (Sally Rooney), Eliete (Dulce Maria Cardoso), O Bairro das Cruzes (Susana Amaro Velho), Capitães da Areia (Jorge Amado), A História de Roma (Joana Bértholo)... e a lista prosseguiria, porque ficaram com o meu coração, porque fizeram morada em mim e porque desejei que aquelas narrativas saíssem do papel. No entanto, para não ficar apenas presa aos títulos de sempre, fui olhar para a estante e ver quais os últimos livros que senti habitar.


 a casa holandesa, ann patchett
A Casa Holandesa é sobre reerguermo-nos dos destroços. É sobre os elos que não nos permitem sucumbir. E é sobre sermos capazes de avançar, mesmo que demore. Como cantaria a Capicua, «bora colar os caquinhos e fazer um Gaudí», porque esta obra é magistral, uma autêntica obra de arte, sem perder credibilidade. E tenho consciência que este livro continuará a crescer em mim. Terminei em lágrimas (opinião completa aqui).

 stoner, john williams
Stoner alberga muitas guerras internas e um novo fôlego. Acompanhando a vida de William desde a infância até à sua morte, esta obra reforçou a minha admiração por histórias sem personagens heroínas. Talvez não seja uma obra que mudará a minha vida, talvez nem me recorde dela pelo enredo em si, embora algumas passagens se tenham colado à minha pele, mas amadurecerá com o tempo. Além disso, houve vários momentos que me deixaram emotiva e a refletir sobre tudo o que poderia ter sido e não foi (opinião completa).

 deus na escuridão, valter hugo mãe
As ilhas contrastam a noção de proximidade com a noção de solidão, como se, longe de tudo o resto, coexistissemos numa grande vizinhança; como se, de repente, por entre rasgos de aproximação, a convivência se tornasse intrusiva, porque as fronteiras nem sempre são claras. Neste livro de Valter Hugo Mãe, deambulamos por esta ilha e por todas as ilhas que nos habitam. Numa narrativa tecida a poesia, com várias passagens que comovem, não vemos só uma ode ao amor materno, mas também ao papel do cuidador e à importância de cuidar. Assistimos a um vínculo familiar fortalecido a cada instante. Mas também ficamos a debater sobre até onde pode (ou deve) ir o nosso amor pelas nossas pessoas. Fui avançando lentamente, para desfrutar da melodia das suas palavras, para descobrir este lugar íngreme onde se exploram as diferenças, o medo, a culpa, a vergonha, a fé e, sobretudo, a lealdade.

 as primas, aurora venturini
As Primas tem uma cadência diferente, por vezes estranha, mas revelou-se uma experiência de leitura memorável. A autora teve a mestria de explorar temas delicados com um certo humor, sem que isso descredibilizasse o assunto. Antes pelo contrário, visto que estabelece uma ponte com os mecanismos de defesa que criamos para gerirmos tudo o que se passa à nossa volta, influenciando-nos (opinião completa).

 supergigante, ana pessoa
A história inverte-se e, desta vez, começamos pelo fim. Afinal, segundo o nosso protagonista, «o fim é o princípio de todas as coisas». Edgar - ou Rígel - está sempre a correr. Só não sei se corre para fugir ou para se encontrar - ou poderá ser ambos? Seja como for, corre e nós corremos com ele, procurando gerir inseguranças, medos, trivialidades e a imensidão do mundo. Além disso, ao corrermos ao seu lado, vamos perceber que há um ponto em que o dia mais triste da sua vida também será o mais feliz. E é nesta dualidade de sentimentos que ele se encontra, sempre em movimento, a tentar organizar as suas emoções e os seus pensamentos. O ritmo da narrativa vai oscilando, fazendo-nos sentir a urgência de chegar a algum lado e a necessidade de abrandar, como se recuperássemos o fôlego. Assim, recuperamos o caos da adolescência, os momentos de maior vulnerabilidade, «a dor que nos estraga por dentro» e os pequenos rasgos de esperança. No mesmo compasso, vemos um Supergigante a descobrir-se e, inevitavelmente, mesmo que já não partilhemos a mesma faixa etária, descobrimo-nos também.

 in memoriam, alice winn
In Memoriam é descrito como uma história de amor entre dois soldados durante a Primeira Guerra Mundial, no entanto, começa quando esse cenário ainda se afigura distante dos protagonistas. Em 1914, com dezassete anos, Henry Gaunt e Sidney Ellwood moravam num colégio interno inglês, protegidos da realidade. E, além de serem amigos, partilhavam um segredo comum, embora não o soubessem: estavam ambos apaixonados um pelo outro. Nesta batalha interior, é quando se alistam no exército que ocorre o verdadeiro teste (opinião).

 a ilha das árvores desaparecidas, elif shafak
As memórias e as feridas podem passar de geração em geração, mesmo quando se tenta manter o passado em silêncio, para que não se revele um fardo, para que não se perpetuem as mágoas. Mas há coisas que não desaparecem. Fiquei rendida a esta narrativa: pela forma como a história se desenrola, pela forma como a figueira é elo e raiz entre várias frentes (humanas, históricas e emocionais), pela forma como o tempo avança, mas a cultura, as crenças e os valores de cada lugar continuam a ter um peso significativo na nossa identidade. Além disso, comoveu-me a relação entre um pai e uma filha que, por vicissitudes da vida, se veem obrigados a descobrir quem são - sozinhos e na relação um com o outro. O cenário de guerra entre turcos e gregos não passa despercebido, nem podia, mas há muito amor nestas páginas. Não se romantiza o cenário de caos, mas também não se oculta o que a humanidade tem de melhor: que é a sua capacidade de olhar para lá das diferenças. Através de vários pontos de vista, e lugares, vamos compreendendo melhor o contexto. Este livro tem um equilíbrio maravilhoso e revelou-se uma história fabulosa sobre tradições e pertença.

 vemo-nos em agosto, gabriel garcía márquez
As mudanças não precisam de vir de fora, nem precisam de ser expressivas, basta que comecem por dentro, de uma forma totalmente silenciosa. É o suficiente para que procuremos alternativas. Ana Magdalena Bach pode ser só uma mulher comum e, ainda assim, a forma como Gabo a desenhou tornou-a memorável. Não sei como é que esta história fluiria, caso a doença não se tivesse intrometido, mas da maneira como está parece-me perfeita: nada é justificado ao detalhe, não se perde tempo a analisar escolhas e comportamentos. É só a vida de uma mulher em movimento, a lidar com o seu luto, com a rotina, com o que conhece e com o que procura descobrir. Gosto como a tornou tão credível e como, através de um ritual, nos mostrou tantas camadas. E o final? Sublime! Viveria mais tempo dentro desta história, mas foi um privilégio lê-la assim.

 quando os rios se cruzam, rita da nova
Itália figura na minha lista de viagens de sonho, mas, admito, Turim não era um cenário prioritário. Descobri-lo através das descrições da personagem principal despertou esse interesse. E, para mim, sem diminuir tudo o resto, é um dos pontos chave da narrativa: porque, mesmo sem ter percorrido aquelas ruas, mesmo sem ter estado sentada no parque, mesmo sem ter entrado nos bares e feito parte das inúmeras saídas do grupo, senti-me lá; se fechasse os olhos, conseguiria ver as fachadas, as paredes, as casa, conseguira ouvi-los, abraça-los e partilhar a energia de cada noite. Quando um autor tem esta capacidade de encurtar distâncias, e de nos fazer sentir próximos de algo que não é a nossa realidade, sou sempre desarmada (opinião completa).

6 comments

  1. Que sensação maravilhosa esta de quando um livro nos alberga *.*

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  2. A melhor sensação do mundo, quando um livro nos preenche.

    Quando há livros que são casa.

    Beijinho grande, minha querida!

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  3. Respostas
    1. Acho muito difícil não estar nos meus favoritos do ano. Que livro incrível *-*

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