quando os rios se cruzam, rita da nova

Fotografia da minha autoria



Gatilhos: Manipulação, Linguagem Explícita


O ser humano é feito de inúmeras versões e é curioso como, dependendo dos lugares, das pessoas e das circunstâncias, vão sobressaindo aspetos distintos de cada uma delas. Talvez alguns estejam demasiado ancorados à sua identidade, ao ponto de nunca sucumbirem, talvez outros deles precisem de uma rutura, para que se reconheça. Mas nada nesta travessia é linear e o mais recente livro da Rita da Nova mostra-nos isso.


 sermos diferentes versões, em diferentes lugares

Quando os Rios se Cruzam tem muitas histórias dentro, como se a combinação de várias polaroids criasse um único quadro. Por um lado, temos a história de Leonor, que encontra em Erasmus o impulso perfeito para se libertar de uma mãe controladora e para encontrar «o balão de oxigénio» que lhe tem faltado. Por outro, temos a história da cidade onde se desenrola a ação, Turim, que descobrimos através dos passos e observações da protagonista. Além disso, temos a história de como estes pólos se interligam e de como aquilo que não conhecemos é capaz de despertar narrativas em nós que não nos eram familiares - mas que nos habitam.

Itália figura na minha lista de viagens de sonho, mas, admito, Turim não era um cenário prioritário. Descobri-lo através das descrições da personagem principal despertou esse interesse. E, para mim, sem diminuir tudo o resto, é um dos pontos chave da narrativa: porque, mesmo sem ter percorrido aquelas ruas, mesmo sem ter estado sentada no parque, mesmo sem ter entrado nos bares e feito parte das inúmeras saídas do grupo, senti-me lá; se fechasse os olhos, conseguiria ver as fachadas, as paredes, as casa, conseguira ouvi-los, abraça-los e partilhar a energia de cada noite. Quando um autor tem esta capacidade de encurtar distâncias, e de nos fazer sentir próximos de algo que não é a nossa realidade, sou sempre desarmada.

O tom é mais sombrio e nota-se que a Leonor tem muitas questões pendentes, até pelo próprio discurso que mantém: mais explicativo, como se tivesse necessidade de processar cada detalhe. Ademais, achei interessante que tentasse ser coerente na partilha, mas que nunca escondesse a sua vulnerabilidade e que nos deixasse sempre com a sensação de existir uma certa culpa a pairar, a queimar nas suas memórias.

«Bem sei que pode não parecer muito, mas, na altura, o sentimento de pertença enraizou-se pela primeira vez em Turim, foi a âncora de que precisava para começar a sentir que tinha chegado a casa»

Revi-me bastante na Leonor, sobretudo na ponderação, no facto de não querer incomodar e de não esperar que sejam os outros a cuidar dela (os motivos é que divergem, porque o passado pesa). Em simultâneo, fui sentindo na pele todos os conflitos que foi travando internamente e acredito que isso só foi possível porque, uma vez mais, a Rita construiu uma personagem muito credível. Eu sei que a Leonor pertence a estas páginas ficcionais, mas via-a facilmente a transpô-las, até porque a maneira como nos vai apresentando os factos, como brinca com as recordações, como nos deixa na dúvida, contribuem para esta sensação. E eu gosto mesmo de ler histórias que, não sendo de alguém em concreto, poderiam acontecer exatamente daquela maneira. E, aqui, não houve algo que considerasse impossível de sair do papel. 

Um dos pontos centrais desta história é a ideia de sermos quem quisermos num lugar onde ninguém nos conhece. E eu acho este exercício muito estimulante, porque, por um lado, traz entusiasmo e, por outro, uma espécie de impunidade, atendendo a que, independentemente do que possamos fazer, há um término à vista, um prazo de validade, portanto, podemos transformar-nos e sermos quem nunca fomos. Quem é que nos poderá julgar? Quem é que nos cobrará essa mudança comportamental? Em princípio, ninguém, uma vez que, para todos os efeitos, nada indica que não pudéssemos ser aquela pessoa. Leonor desfrutou dessa liberdade, sentiu a adrenalina de explorar novas identidades, mas também sofreu as consequências das suas decisões.

Quando os Rios se Cruzam, fazendo justiça ao nome, cruza vários elementos e houve um em particular que me fez oscilar: seria uma metáfora ou literal? Este jogo prendeu-me ainda mais à cidade, à protagonista, à travessia entre o passado e o presente. Sendo uma viagem permanente, deixou-me a pensar não só no impacto das amizades femininas (outra das minhas partes favoritas) e nos desafios que enfrentamos quando estamos longe do que conhecemos, mas também nesta possibilidade de descobrirmos coisas sobre nós que pareciam escondidas - será que uma decisão diferente nos impediria de as vermos? Há uma parte de quem somos que é fruto das escolhas que fazemos, mas há outras que dependem do que não controlamos. Num livro em que as dinâmicas familiares estão muito presentes, também fiquei a refletir se, ao procurarmos dar espaço a partes de nós mais silenciosas, nos conseguimos realmente libertar do que sempre esteve ali, agregado a quem julgamos ser.


🎧 Música para acompanhar: La Notte, Arisa

📖 Outros livros lidos: Terapia de Casal (com Guilherme Fonseca) | As Coisas Que Faltam


Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

6 comments

  1. *Casualmente vendendo tudo para ir em excursão para Turim.*

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  2. Não conhecia. Obrigada pela partilha!
    Isabel Sá
    Brilhos da Moda

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  3. Parece-me ser um livro com várias sensações dentro.

    Foi através de ti que ouvi falar da Rita da Nova.

    Mais um livro para guardar, fiquei com vontade de ler.

    Beijinho grande, minha querida!

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    Respostas
    1. Espero que tenhas oportunidade de a ler 🥺
      Sei bem que sou suspeita, porque adoro a escrita da Rita, mas acho que cria histórias muito relacionais. E, nesta, ainda temos o bónus de viajar até Turim

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