Entre Margens

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A banda sonora de uma viagem literária


A playlist das leituras de novembro talvez tenha sido a mais difícil de construir, porque exigiu uma procura aprofundada, para a maioria dos livros. Além disso, é provável que seja a que inclui os temas mais aleatórios e distantes entre si - o que, devo confessar, não é algo que me incomode, até porque aprecio essa diversidade.


lisboa, chão sagrado, ana bárbara pedrosa
Quina da Cama, Pedro Sampaio ▫️ A cama é denominador comum entre as personagens que se cruzam neste livro. Ademais, parece que nenhuma vai dormir sozinha, só não sei se «o que acontece no quartinho fica no quartinho», porque temos acesso a todas as aventuras e interações que procuram, que experienciam, que as moldam. Com muito sexo e funk à mistura, achei que esta seria a combinação ideal.

a noiva judia, nuno nepomuceno
Desolate Beauty, Richard Lacy ▫️ Tive dificuldade a associar uma música a este livro, até que me ocorreu ver o trailer oficial de promoção, porque acreditava que se aproximaria daquilo que o autor também tinha idealizado para a história. E foi assim que cheguei a Richard Lacy e percebi que um tema instrumental era o que mais se enquadrava neste enredo.

ninguém escreve ao coronel, gabriel garcía márquez
Zapatos Nuevos, David Mansfield ▫️ Queria muito uma canção que espelhasse a melancolia e esperança desta narrativa, que se revelou uma das mais bonitas que li do Gabo. No entanto, como não me lembrei logo de uma que fizesse justiça ao seu universo, acabei por me cruzar com o álbum de David Mansfield, El Coronel no Tiene Quien le Escriba, e optei por lhe associar o instrumental cujo título me transporta para uma das cenas mais memoráveis da obra.

paixão, maria teresa horta
O Teu Cheiro, Bispo ▫️ Um dos meus poemas favoritos do livro tem o mesmo título que a música do Bispo, portanto, lembrei-me logo dela. Além disso, como falam ambos de saudade, de memória e de alguém que queremos sempre por perto, achei que combinavam muito bem.

frango com ameixas, marjane satrapi
Le Journée de Nasser, Olivier Bernet ▫️ A novela gráfica da autora iraniana tem como protagonista um famoso músico de tar. Por esse motivo, assumi que o tema para esta nota literária seria um instrumental, só não estava a contar ter tantas dificuldades para selecionar um: em parte, porque não sou a ouvinte mais assídua nesse campo; em parte, porque não me ocorreu qualquer filtro que facilitasse a procura. Quando descobri que a obra foi adaptada ao cinema, pesquisei pela banda sonora e foi assim que cheguei a Le Journée de Nasser. Na realidade, sinto que podia ter escolhido qualquer uma da lista, mas, uma vez que o livro é mesmo sobre os dias de Nasser Ali Khan, fez-me sentido seguir este caminho.

beloved, toni morrison
Carta de Alforria, Plutonio ▫️ Bastou-me ler este nome uma vez no livro para saber que o interligaria com o tema do Plutonio, porque as mensagens cruzam-se e parece existir uma certa continuidade entre a história e a música. Falando ambas de um período histórico conturbado e da noção de liberdade, senti que não valia a pena procurar por outra correspondência, já que tinha encontrado a dupla perfeita.

tocar piano e falar francês, martim sousa tavares
Bebe & Dorme, David Bruno ▫️ Contrariando a tendência desta playlist, ainda não tinha começado o livro do Martim Sousa Tavares e já sabia, pelo menos, qual o artista que lhe associaria. Isto porque, aquando da sua sessão de apresentação na Feira do Livro do Porto, partilhou que uma banda sonora possível para esta obra seria Miramar Confidencial, álbum de David Bruno. E foi assim que cheguei a Bebe & Dorme, que faz referência a uma zona do país com história para a família do maestro.

furriel não é nome de pai, catarina gomes
Filha da Tuga, Irma ▫️ Iniciei a leitura e dei por mim a recordar esta música da Irma: por um lado, por causa da questão dos rótulos e, por outro, pelos versos «Sou branca para os pretos, para os brancos sou preta/Sou a mistura da terra e da descoberta/Um passado angolano, futuro lisboeta». Além disso, o título da canção tem uma identidade muito vincada nesta obra da Catarina Gomes.

depois a louca sou eu, tati bernardi
Listen To Your Heart, Roxette ▫️ A referência feita a esta canção tem um tom catártico, como se fosse um ponto de viragem. Por esse motivo, descartei as outras opções musicais que tinha, já que acredito que a Tati Bernardi, nesta obra, merecia terminar com um embalo ainda mais positivo. Vou seguir o exemplo e aumentar o volume. E dançar!

tu és livre?, ana pessoa & mariana malhão
Liberdade, Sérgio Godinho ▫️ Se é para falar de liberdade, então, vou recuperar uma das músicas que mais me enche as medidas, que mais me inspira a não esquecer a importância de agir, de não dar por garantindo o privilégio de ser livre. E que bem que o livro da Ana Pessoa e da Mariana Malhão se lê ao som de Sérgio Godinho!

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Gatilhos: Linguagem Gráfica e Explícita


As histórias que não se contam permanecem ocultas, mas não inexistentes. E, se calhar por isso, manifestam-se em circunstâncias inexplicáveis. Toni Morrison, autora que estava desejosa de descobrir, transportou-me para essa realidade, mesmo que a minha leitura se tenha revelado oscilante.


quanto vale a liberdade?

Beloved é inspirado num caso ocorrido no Kentucky, em 1856, expondo «o horror e a insanidade de um passado doloroso», através uma ex-escrava que matou a própria filha, na tentativa de a proteger do «destino indigno e atroz da servidão». Num país ainda a gerir os traumas da escravatura, entretanto abolida, Sethe tentará construir uma vida nova, mas será que, dezoito anos depois de tudo o que aconteceu, se sentirá realmente livre?

Não sei que aura é que pairou sobre este livro, mas a verdade é que, primeiro, não senti grande vontade de pegar nele e, segundo, tive muita dificuldade em entrar na história, já que o narrador explora diferentes pontos de vista quase em simultâneo. Ademais, a escrita intrincada da autora não facilitou o processo. Houve partes em que a achei muito bonita, poética até, mas contribuiu para que a narrativa soasse um pouco confusa, dispersa. Por oposição, quando cheguei a um ponto específico da história parece que todas estas condicionantes se desbloquearam e avancei com outro entusiasmo. Na reta final, porém, voltei à energia do início.

«Se um negro tem pernas, bem que as pode usar. Se ficar demasiado tempo sentado, alguém vai descobrir uma maneira de lhas amarrar»

Quis prosseguir, mesmo assim, porque os temas explanados são de máxima importância, até porque refletem os valores do ser humano, a noção de injustiça, a falta de empatia, o julgamento tão célere, a incapacidade de compreender e aceitar o outro, os preconceitos e a ideia de existirem pessoas cuja vida aparenta valer mais do que a dos seus pares. Por mais que o tempo corra, as consequências da escravatura não se apagam, não se esquecem, nem doem menos. Aliás, esta memória continuará a latejar pela crueldade.

Beloved teve elementos que não funcionaram comigo, pela estranheza, pelo traço paranormal, e por deixar algumas perguntas sem resposta. Admito, também, que posso não o ter lido na melhor fase, porque é um livro exigente, que requer uma disponibilidade mental sem margem para cansaço e desconcentração. Talvez o relei-a noutra altura, porque acho que há dilemas que merecem ser revisitados.


🎧 Música para acompanhar: Carta de Alforria, Plutonio


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Gatilhos: Referência a Doença Oncológica, Relações Disfuncionais, Luto, Negligência, Pensamentos Suicidas


Os interlúdios preenchem vários espaços na nossa vida, como se fossem uma ponte entre tudo o que nos compõe. E sinto que, em relação a Sally Rooney, tive de me socorrer de Sr. Salário para preencher um desses espaços e não acusar a falta que me estava a fazer lê-la. O seu último lançamento foi há três anos, mas não estive esse tempo todo longe das suas histórias, ainda assim, parece que encontrei uma autora completamente nova - e encheu-me as medidas.


um livro que cresce com o tempo

Intermezzo conta-nos a história de dois irmãos: Peter, um advogado de sucesso, de 32 anos, e Ivan, dez anos mais novo, que é um exímio jogador de xadrez. Encontrando-se em pólos opostos de personalidade (e não só), veem-se unidos pela perda. Portanto, assistimos à forma como o luto se agrega à realidade de cada um e como a morte do pai é gerida tendo em conta todos os problemas com que se debatem.

É, no fundo, um drama familiar e fascinou-me logo perceber que a autora se focaria em duas personagens masculinas, mantendo questões políticas como plano de fundo, enquanto a saúde mental tem um destaque maior. Além disso, achei curiosa a evolução que a comunicação tem tido nas suas obras. É um elemento que continua a manifestar fragilidades entre os protagonistas, mas, neste enredo, vemo-los a analisar tudo ao detalhe, a verbalizar o que os apoquenta, a não esconder totalmente o que sentem. Se o fizeram sempre da melhor maneira? Nem por isso, mas nenhum deles é um ser perfeito e eu gosto dessa verdade, da vulnerabilidade e, inclusive, do desconforto que surge em algumas cenas.

A escrita deste livro está diferente: senti-a mais profunda e mais complexa. Por vezes, nem me parecia bem a da Sally Rooney. E entendo a arrogância que é escrever isto, como se a conhecesse, como se soubesse de cor a sua voz e fosse capaz de antecipar os seus passos - é só a ilusão de ter encontrado uma autora que adoro e de quem leria até a lista de compras. No entanto, também a encontrei sempre lá, porque sinto que ninguém constrói dinâmicas intra e interpessoais como Rooney.

«A vida, afinal, não se escapuliu da sua rede. Isso é coisa que não existe, a vida a escapulir-se: a vida é a própria rede, mantendo as pessoas nos lugares, conferindo sentido às coisas»

Demorei um pouco a entrar na história, porque precisava de ser descoberta devagar e não de um modo frenético, para ser capaz de absorver cada camada, para ser capaz de compreender que a energia dos capítulos é um espelho dos seus narradores e da forma como observam e se posicionam no mundo. Sobretudo, para perceber que há muitas mensagens naquilo que não é partilhado, nos silêncios que se interpõem nos diálogos.

Levantaram-se questões interessantes sobre diferenças geracionais, sobre relações não monogâmicas, sobre feminismo e a intervenção masculina nos movimentos que têm surgido e, claro, sobre o luto. Em simultâneo, percebe-se que existem feridas muito profundas a condicionar a vida de Peter e de Ivan, e a intimidade entre ambos. E, atendendo a que as mágoas do passado ainda lhes pesam, é interessante ver como este intervalo se revela uma viagem de (auto)descoberta.

Assim que me alinhei com a dinâmica deste livro, foi mais simples entrar na cabeça dos protagonistas, ao ponto de, por um lado, sentir que havia capítulos em que podia estar mais tranquila, como se estivesse a explorar novas facetas sem consequências de maior, e, por outro, que havia capítulos em que estava em apneia, num fluxo de consciência que me impedia de respirar. Acho que a autora teve um trabalho de escrita exímio para nos fazer sentir esta dicotomia, colocando-nos na pele dos dois irmãos.

Intermezzo é complexo, emocionalmente denso e acredito que é uma história que vai crescendo em nós. Sendo o trabalho mais maduro de Sally Rooney, não deixa de transparecer a sensibilidade que lhe reconhecemos, mostrando-nos a importância de perdoar e o poder da aceitação. É necessário continuar a viver, a conseguir ver para lá do luto, e estas personagens - este livro - vieram fazer morada em mim. Não lhes largarei a mão.


🎧 Música para acompanhar: Timmy's Prayer, Sampha

📖 Outros livros lidos: Pessoas Normais | Mundo Belo, Onde Estás | Conversas Entre Amigos | Sr. Salário


Disponibilidade: Wook | Bertrand

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Um dos livros que veio comigo da edição mais recente da Feira do Livro do Porto foi Giz, de Gisela Casimiro. Queria tanto lê-lo que, na altura, nem refleti sobre as palavras do livreiro da Urutau, quando indicou que este era o segundo. Só mais tarde, e mesmo sabendo que são leituras independentes, é que resolvi adquirir o livro anterior, para ficar com a experiência completa e compreender todas as metamorfoses da autora.


o que se desgasta, o que se regenera

Erosão, por definição, é um desgaste lento e cada um destes poemas transporta-nos para essa imagem, porque nos mostra «o desgaste do corpo, a destruição das relações, a morte, o afastamento, a perda». E vai oscilando entre um tom melancólico e um tom irónico, entre um tom de esperança e um tom de alerta, que nos mantém por perto.

É sempre fascinante regressar à sua escrita, porque Gisela Casimiro tem o dom de tocar nas feridas, expor-nos a alma e tudo o que precisa de ser revisto e, ainda assim, realçar o processo de cicatrização, a catarse, a necessidade de nos redescobrirmos, de nos reinventarmos e de procurarmos e promovermos o nosso bem-estar, os nossos sonhos. A vida é feita de luz e de sombra e, aqui, convivemos com esses dois lados.

«Somos os que dançam demasiado
e demasiado depressa,
os que riem muito e riem demasiado alto,
os que escrevem e escrevem demasiado
sobre o que os desassossega
porque, se pararmos, a vida pode estar
à espera»

Tive alguma dificuldade em escolher poemas favoritos, porque houve sempre algo que me marcou em cada um deles e porque senti que estava numa conversa muito íntima entre o que nos corrói e a mudança que desejamos no pós-caos. Não obstante, tenho de destacar Sábado, Quando for grande, Sardas, O poema é um campo de batalha e Cicatrizes, pelo misto de delicadeza, de crueza e de vulnerabilidade que os caracteriza.

Erosão tão depressa explora problemas sociais como se foca em memórias da autora. Por isso, há versos que parecem ser uma denúncia e há versos que parecem colo. Independentemente da natureza, o certo é que ambos nos fazem refletir: quer em relação aos nossos valores, quer em relação a recordações que nos deixam saudades e contam a nossa história. Nesta travessia emocional, existe uma promessa de futuro.


🎧 Música para acompanhar: Erosão, Jasmim

📖 Outros livros lidos: Estendais | Giz

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Uma viagem literária para descobrirmos autores portugueses


O último mês do ano, os últimos dois escritores a figurar na lista do Alma Lusitana. Sei que cairia num lugar comum, se perguntasse como é possível já termos chegado aqui, mas é algo que não deixa de me surpreender. Mais tarde, talvez faça um rescaldo desta experiência, até porque não renovarei a iniciativa para uma nova edição, em 2025. Enquanto isso não acontece, e tendo em conta que o mais importante são as opções de leitura, quero convidar-vos para acolherem os nomes de dezembro: João Pinto Coelho, enquanto autor para descobrir, e Maria Isaac, enquanto autora que já li e recomendo.


joão pinto coelho

Nascido em 1967, licenciou-se em Arquitetura no meu ano de nascimento (1992). Apesar de ter vivido grande parte da sua vida em Lisboa, também viveu nos Estados Unidos e foi lá que «chegou a trabalhar num teatro profissional». Além disso, «em 2009 e 2011 integrou duas ações do Conselho da Europa que tiveram lugar em Auschwitz», o que acabou por desencadear a criação do projeto Auschwitz in 1st Per-son/A Letter to Meir Berkivich. Os Loucos da Rua Mazur valeu-lhe o prémio Leya, em 2017.

   

   

maria isaac

Natural das Terras de Antuã, formou-se em Marketing, estudou no IMD e, atualmente, dedica-se à área da fotografia e imagem. Não obstante, é na escrita que também encontra o seu rumo e, por isso, em 2017, iniciou «a série de livros Odisseia das Pequenas Coisas». A autora é, ainda, responsável pelo podcast Palavra, desde 2020.

LI E RECOMENDO

      
   
Outra obra da autora
O Sono Delas (em co-autoria com Filipa Fonseca Silva, Iris Bravo, Helena Magalhães e Susana Amaro Velho)


O Alma Lusitana tem grupo no Goodreads

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Gatilhos: Linguagem Gráfica e Explícita


Os livros de Nuno Nepomuceno foram-me sugeridos com bastante entusiasmo e, em 2021, acabei por mergulhar na série Afonso Catalão, lendo os cinco primeiros volumes de seguida. Três anos (e vários meses) depois, voltei a esse universo para descobrir o seu tão aguardado desfecho. Só não estava a contar com uma experiência tão diferente.


uma sensação agridoce

A Noiva Judia é um thriller psicológico, construído a partir dos «cinco elementos de um filme». Além disso, é inspirado no homicídio do poeta, maestro e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, combinando informações de outras histórias reais. Desta maneira, cruzamo-nos com linhas narrativas distintas, ficando a dúvida: estarão interligadas?

Na tentativa de unirmos as pontas soltas, viajaremos até Cambridge, Amesterdão e Veneza, uma vez que cada uma destas cidades esconde dados importantes para os crimes descritos no enredo. O corpo de um escritor famoso é encontrado numa praia deserta, brutalmente agredido, e surgem teorias acerca do culpado, porque, embora um jovem tenha confessado a autoria do crime, existem provas que apontam para a sua inocência. Por outro lado, a noiva da vítima, uma conhecida colecionadora de arte, decidi vir a público, o que levanta algumas questões sobre a relação e sobre o facto de poder estar implicada no sucedido. Para adensar o mistério, é descoberto o corpo de uma mulher. Terá sido apenas um caso isolado ou será mais uma camada desta teia?

A premissa intrigou-me desde o início, não só pela estrutura, pela complexidade dos detalhes e por se debruçar em várias frentes, mas também pelas motivações que nos fazem questionar acerca da humanidade das personagens. Ademais, sendo o final de uma série literária que me tinha marcado tanto, estava à espera de encontrar mais certezas do que dúvidas. O problema é que senti tudo demasiado inconstante.

Perdoem-me se revelo mais do que devia, mas achei os saltos temporais confusos. Por norma, não é algo que me condicione, aliás, até aprecio quando a narrativa é pouco linear, no entanto, neste enredo, sinto que acabou por prejudicar, até porque foram introduzidas informações pouco relevantes para a história (no meu entender, claro). Num policial/thriller, anseio que o autor nos tente ludibriar e desviar do caminho certo, mas não me parece que tenha sido esse o caso. Acredito que um trabalho de edição diferente pudesse limar essas arestas, tornando a leitura menos labiríntica.

«- É quando os nossos inimigos dormem, que devemos preparar-nos para os surpreender»

A certo ponto, confesso, senti-me desmotivada, chegando mesmo a questionar a imagem que criei dos exemplares anteriores, porque houve fragilidades neste livro que não me pareceram isoladas. Será que, quando os li, estava numa bolha de críticas tão positivas que influenciaram a minha perceção? Isto diz mais sobre mim do que sobre este livro, reconheço, mas a verdade é que cheguei ao fim com uma sensação agridoce.

Houve aspetos que não funcionaram muito bem comigo, nomeadamente a relação do título com toda a obra e o aparecimento de algumas personagens secundárias. Além disso, considero que teria sido mais benéfico se começasse a atar as pontas soltas mais cedo, para não passar a sensação de um desenlace célere. Por oposição, não posso deixar de destacar o trabalho de pesquisa do autor, que se nota ser meticuloso, bem fundamentado, conferindo maior movimento às cenas e despertando diferentes impressões, como se fizéssemos parte de todo este universo cheio de intrigas.

Creio que a escrita do Nuno Nepomuceno tem imenso potencial e gosto da maneira como cruza política e religião e como consegue que os enredos se mantenham independentes, mas ganhem outro fulgor quando lidos pela ordem de lançamento - este talvez seja o único que não aconselhe a ler sem conhecerem os anteriores. Em simultâneo, acho valioso e importante que esta obra nos permita refletir e debater sobre homofobia, transfobia, pedofilia, ciúmes, violência contra mulheres e relações extraconjugais. Perante tudo isto, não havia necessidade de complicar a fórmula.

A Noiva Judia, sendo uma despedida de Afonso Catalão, parece-me deixar portas entreabertas, o que me fez pensar na possibilidade de, mais tarde, vermos outras personagens a assumirem protagonismo, explorando narrativas paralelas. Ainda que não tenha correspondido às minhas expectativas, há uma aura sombria a pairar e somos sempre confrontados pelos segredos do passado, pelas meias-verdades e pelo desejo de vingança. Enquanto leitores, funcionamos como peões de um jogo perverso.


🎧 Música para acompanhar: Desolate Beauty, Richard Lacy

📖 Outros livros lidos: A Célula Adormecida | Pecados Santos | A Última Ceia | A Morte do Papa | O Cardeal (opinião completa sobre todos os livros da série Afonso Catalão)


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«Put me in your supermarket list»


A vida é feita de ironias: embora tivesse a referência, não cresci próxima de Silence 4. Excluindo um tema ou outro, não era o grupo musical que enchia a casa. Mais tarde, numa carreira a solo, David Fonseca também não me despertou essa atenção e passei muito tempo sem escutar as suas canções. Honestamente, não vos sei explicar o que me afastava do seu registo, apenas sei que não era um artista que procurasse incluir na minha banda sonora. Só que neste processo de descobrir a minha identidade, em todas as camadas que a compõem, percebi que foi um nome que foi conquistando o seu espaço. Por isso, foi com zero surpresa que acabei no Coliseu do Porto a assistir ao seu concerto.


Still 25 marca o regresso de David Fonseca, para uma travessia «pela sua carreira de 25 anos», através de uma abordagem original, que «cruza música, performance e cinema». No fundo, interliga diferentes formas de contar esta história tão rica em pormenores, segmentos e memórias. Além disso, convida-nos a descobrir referências, «a sua visão artística» e o processo criativo, sempre de um modo intimista e muito relacionável.

Eu sei que não teria esse termo de comparação, caso não tivesse ido, mas, agora, tenho a certeza de que me arrependeria se o tivesse perdido, porque foi uma noite belíssima e emocional. Posso ou não ter-me comovido em alguns temas (é evidente que lágrimas foram choradas, quem é que quero enganar?): não só pela intensidade dos mesmos, mas também pela envolvência da sala, pela emoção de quem vibrou em cada segundo.


Não me recordo da última vez que estive no Coliseu a assistir a um espetáculo (e o mais provável é ter sido algum festival de tunas), portanto, já não tinha presente a acústica do espaço. E este foi, para mim, o ponto menos positivo, embora o artista não tenha culpa, porque houve partes que não se perceberam tão bem (sobretudo, aquelas em que falou) e a visibilidade ficou comprometida em algumas zonas. No lugar onde ficamos, excluindo momentos muito pontuais, tivemos alguma sorte nesse aspeto.

Tendo em conta a construção do concerto, creio que a experiência teria sido mais uniforme se tivesse acontecido numa sala com outra estrutura. Por oposição, uma das coisas que mais adoro no Coliseu é mesmo a proximidade que se cria entre o público, como se estivesse numa pequena bolha. E sei que me arrepiei em determinados temas, precisamente, por sentir a força daquelas pessoas todas a cantarem em uníssono.


Independentemente do que referi antes, é inegável que este concerto foi uma viagem inacreditável, pensada ao detalhe e com um equilíbrio perfeito entre música, presente e nostalgia. Ademais, tenho de referir o dinamismo do espetáculo, com uma narrativa psicadélica, interativa e futurista, provocando uma onda de energia contagiante. Se soubesse que não comprometeria a visibilidade de quem estava na fila atrás da minha, tinha ficado em pé durante a maior parte do concerto, porque convidava-nos a dançar.

O David Fonseca transbordou naquela palco: não só pelo talento e pelas coreografias originais, mas também pelo humor sempre presente nas suas interações/partilhas. E fê-lo durante duas horas e vinte, sem qualquer quebra de ritmo e generosidade. Still 25 foi tudo o que eu não sabia que precisava de ouvir, contudo, arrebatou-me em cada batida. Que venham muitos mais vinte e cinco. A partir daqui, já não lhe largo a mão.

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Gatilhos: Referência a Violência e a Aborto


A Francisca Camelo foi convidada a inaugurar a Caminhos da Casa, uma residência artística integrada no Kulverão (semana da juventude da Nespereira), «com foco nas gentes e tradições» desta vila portuguesa. Quando questionada sobre o que gostaria de fazer, a resposta foi imediata: «conhecer mulheres de diferentes gerações» que habitassem na Nespereira. E o resultado da residência assumiu a forma de um livrete.


a poesia a interligar várias vozes

Aqui em Volta de Mim é um trabalho de poesia documental, onde aliou a sua área de formação, a psicologia, porque lhe fornece as ferramentas necessárias «na recolha de informação sensível através de conversas atentas». Esta dinâmica não é uma novidade para a poeta, uma vez que já tinha realizado trabalhos semelhantes «com a população dos pescadores de Esposende (…) e com a população de Ílhavo», mas, como a própria referiu no quase-prefácio, faltava-lhe um ponto verde «neste mapa de Portugal profundo» e encontrou-o aqui. Além disso, como viveu a maior parte da sua vida na cidade, interessou-lhe descobrir e perceber o que é, foi e será para estas mulheres viver num lugar isolado, onde as tradições permanecem tão enraizadas em cada um.

À conversa com seis mulheres, dos 15 aos 95 anos, há cinco temas centrais nos poemas: a mãe, a fome, a alegria, a violência e a terra. E o que achei mais fascinante, para além da escrita da Francisca que nos confronta sempre com o que o ser humano tem de mais íntimo, foi a forma como todas estas vozes se interligaram, como, ainda que existam sinais, não conseguimos bem balizar a que geração pertencem aquelas palavras. Acho que isso demonstra o quanto a comunidade preserva visões comuns e o quanto há assuntos que são transversais, como se fossem uma espécie de legado.

Há contrastes, naturalmente: enquanto as mais velhas trazem a bagagem de um passado ora nostálgico, ora ciente da carência de direitos, as mais novas trazem um sentido de futuro sustentado no ato de preservar. A unir estes dois pólos temos um presente com desafios, com memórias, com partilhas que edificam os costumes que ainda hoje preenchem as ruas, as casas, as vivências dos seus habitantes. Por esse motivo, somos convidados a ouvir as cantigas, a participar nos bailes e na desfolhada. Como pano de fundo, encontramos outro contraste: o afastamento e a paz que «as montanhas provocam» na Nespereira, num misto de leveza e de melancolia.

«em nespereira
cada casa é cada casa
mas as mulheres fazem o mesmo trabalho que eles
e não são respeitadas da mesma maneira»

É visível a precariedade, a violência estrutural, a crise económica, as desigualdades de género e a dificuldade provocada pelo isolamento geográfico. Por oposição, é visível o cuidado e o carinho em relação aos seus e em relação à terra. Sinto que não existe qualquer mágoa espelhada nestes versos, talvez por virem já de um lugar de catarse. Não quer dizer que estas realidades não lhes pesem, ainda hoje e até ao final dos dias, no entanto, a maneira como preferem olhar para cada um dos tópicos mencionados é benigna. Crítica, sempre, mas sem sinais de ataque: apenas com o propósito de espelhar para que o futuro se construa com outros alicerces, com outros costumes.

Aqui em Volta de Mim lê-se num sopro, mas fica em nós, acredito, até porque nos deixa com vontade de conhecer mais histórias destas mulheres - e de tantas outras que habitem em cenários semelhantes. Há coisas que, com toda a certeza, são muito próprias desta vila, mas todas as vozes participantes acabam a mostrar-nos que talvez consigamos rever-nos em muitos detalhes ou que seremos capazes de os adaptar à nossa identidade. Acima de tudo, acho que esta obra encurta vários tipos de distância.


🎧 Música para acompanhar: A Próxima Viagem, Cassete Pirata

📖 Outros livros lidos: A Importância do Pequeno-Almoço | O Quarto Rosa

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Gatilhos: Linguagem Explícita


A lista de autores que quero descobrir continua a aumentar e um dos nomes presentes era o da Giovana Madalosso. Como uma das suas obras foi livro do dia na Feira do Livro do Porto, encarei isso como o sinal para deixar de adiar esse encontro. E ainda bem que o fiz.


sarcástico, visual e relacionável

Tudo Pode Ser Roubado permite-nos conhecer uma empregada de restaurante, cujo nome nunca chegamos a descobrir, mas esse dado não é assim tão relevante, até porque o que nos chama logo à atenção é a sua faceta criminosa.

Esta mulher atua de um modo subtil e nunca com a intenção de ser perigosa. Aliás, são pequenos furtos que em nada comprometem os lesados, mas que para ela são a diferença entre ter ou não ter dinheiro para dar entrada para um apartamento. A sua moralidade permanece intacta, no entanto, achei curioso que houvesse um lugar onde seria impensável roubar, já que traça muito bem os limites. E, criminosa ou não, há valores que não se quebram.

A forma como observa o mundo e como decide levar a vida não deixa de ser fascinante, sobretudo quando recebe uma proposta que a desarma. Sinto que a partir desse momento a protagonista começa a descobrir novas camadas da sua identidade e esse jogo inebria-nos. Ademais, é a partir do pedido que lhe é feito que passamos a refletir mais a sério sobre aquilo que é importante e sobre até onde estamos dispostos a ir: por algo ou por alguém.

«Porque, no final, a verdade sobre uma cidade é esta: o que sobra de cada um depois que as luzes dos escritórios se apagam. E aqui, como todo mundo sabe, o que sobra é pouco, um emocional talhado pelos excessos, um terreno propício para as patologias se instalarem. Mas eu ainda preferia ver as pessoas assim, na sua face mais combalida, do que projetando virtudes de curriculum vitae à luz do dia»

Fiquei rendida à escrita, sempre crítica e sarcástica, sempre muito visual, ao ponto de nos sentirmos parte da ação. E adorei que Giovana Madalosso construísse uma personagem tão imperfeita, tão cómica, tão verosímil. Dei muitas vezes por mim a questionar qual seria a minha postura caso estivesse no seu lugar e acho que isso também demonstra o quanto conseguiu criar uma história relacionável.

Para mim, a única fragilidade de Tudo Pode Ser Roubado é o final. Compreendo o propósito, mas gostava que não fosse tão célere, porque há perguntas a merecer uma resposta. Não obstante, adorei perceber como o título se reproduz e justifica em subtilezas - e como quase consegue ser uma dúvida e uma arma poderosa.


🎧 Música para acompanhar: Absolute Beginners, David Bowie


Disponibilidade: Wook | Bertrand

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Gatilhos: Conteúdo Sensível


A imagem que vemos refletida no espelho parece desfasada da realidade, uma vez que não nos vemos a nós: vemos os padrões dos outros, vemos aquilo que achamos que precisamos de ser ou, pelo contrário, aquilo que foge da norma, como se fossemos seres estranhos. E o mundo vai esmorecendo por dentro, porque tentamos preencher necessidades que não são as nossas, mas que nos impõem de inúmeras maneiras.

Desassossego, uma aposta da RTP Lab, centra-se em três protagonistas: Laura, uma influencer a acusar a pressão do universo construído nas redes sociais, procurando afastar-se dele; Ana, uma adolescente com complexos em relação ao seu corpo, ao seu peso, a tentar corresponder a uma imagem idílica; e Vasco, um ator desempregado, a fazer um part-time enquanto entregador de pizzas, a tentar juntar dinheiro para sobreviver. Aparentemente, são três histórias distintas, mas acabam por se cruzar.

A linguagem, as imagens e as temáticas podem ser consideradas perturbadoras, ferindo a sensibilidade dos espectadores, uma vez que é uma série focada em distúrbios alimentares, ansiedade, suicídio, luto e problemas financeiros, sem haver filtros, por isso, há um aviso prévio para que os episódios não sejam vistos por um público mais jovem sem acompanhamento parental. Neste sentido, estendo a ressalva a qualquer pessoa que não se encontre num lugar bom, já que pode ser um gatilho.

Achei Desassossego muito interessante e credível, atendendo a que espelha a solidão mascarada pela quantidade de seguidores, o recurso a soluções rápidas que se revelam ainda mais prejudiciais, as ligações que se quebram depois de uma perda dilacerante, o vazio, o desencanto, a culpa, a vergonha e os limites que se ultrapassam em prol de um objetivo maior, quando não parece existir mais nenhuma saída. Laura, Ana e Vasco sentem na pele as dificuldades do caminho que escolheram, daquilo que a sociedade lhes exige e das oportunidades que aparentam escassear para cada um.

Expondo o que os deixa vulneráveis, mostra o impacto de não se sentirem confortáveis na sua pele, as consequências de estarem deslumbrados ou a suportar vazios e serve de alerta para a necessidade de saber pedir ajuda, sobretudo, dos profissionais certos, porque os amigos são um colo ótimo, mas há limitações que não conseguirão transpor - nem têm de o fazer. Acho que há pontos que poderiam ter sido melhor explorados, mas é um excelente ponto de partida para abordar temas tão atuais e urgentes, até porque condicionam a forma como nos observamos e como pretendemos viver.

Fotografia da minha autoria


Gatilhos: Linguagem Explícita; Referência a Aborto


O livro de Ana Bárbara Pedrosa foi a minha companhia no feriado - e durante parte da tarde de sábado. Da lista de 24 autores que selecionei para o Alma Lusitana, era um dos nomes que mais queria descobrir: por um lado, pelas críticas pouco consensuais com que me fui cruzando e, por outro, pela imagem que construí acerca da sua escrita. Em relação a esta última parte, encontrei um registo diferente do que estava à espera.


carnal e muito íntimo

Lisboa, Chão Sagrado cruza vários cantos do mundo, levando-nos da capital portuguesa até ao Rio de Janeiro, do interior da Bahia à Palestina, e cinco personagens: Eduardo, Mariana, Noé, Matias e Dulcineia são os eixos desta narrativa e é interessante como, tendo histórias individuais, existe um ponto em que se interligam sem o prevermos. Além disso, parece haver um denominador comum a todos eles: as relações carnais.

A cama é, nesta lógica, o ponto de encontro para explorarem fantasias e anseios, para resolverem o tédio, a tristeza e a falta de amor. Num misto de urgência e decadência, vemos a autora a explorar muitos conflitos emocionais e materiais sem qualquer filtro.

Devo confessar que achei o início da obra um pouco confuso, por nos confrontar com dinâmicas tão distintas (e distantes), mas também gostei que abrisse essa porta e que nos transportasse para realidades e perspetivas muito íntimas, ao mesmo tempo que nos mostra as várias facetas do mesmo problema. No final, acabei por sentir que esse jogo ajudou a compreender a complexidade das relações. As personagens aparentam estar a tentar preencher vazios, no entanto, é como se só vissem aumentar o desnorte.

«Não sabia como explicar-lhe que entendia a farsa e não lhe competia apaparicar-lhe o ego. Não cabia a mulher nenhuma ser o bem-estar de um homem»

A linguagem é crua e faz-nos sentir a oscilação dos protagonistas, que passam do fascínio à desilusão, que investem na sedução, mas que também têm necessidade de lamber as feridas do desgosto, do que se quebra, do que se procura e está inacessível. Eduarda, Mariana, Noé, Matias e Dulcineia lutam contra os seus fantasmas, tabus e preconceitos e improvisam numa dança de corpos ofegantes e perdidos, à procura de um sentido, à procura de calar desamores e um futuro tão incerto, onde se veem sós.

Não vou desenvolver muito mais sobre o enredo, para não comprometer a experiência, mas não podia deixar de destacar dois aspetos: a abordagem sobre as dificuldades da língua (partilhamos o português, mas há diferenças que erguem muros e provocam desentendimentos) e o facto de não ser um romance heteronormativo (sem que isso seja anunciado, já que acredito que parte da aceitação também passa por abordarmos as questões sem lhe colocarmos esse holofote). Gostava, ainda assim, que alguns acontecimentos fossem menos céleres e algumas descrições menos estereotipadas.

Lisboa, Chão Sagrado, creio, é um retrato do que procuramos nos outros, quase como se estivéssemos à espera que nos concertassem ou que trouxessem aquilo que sentimos estar em falta. E isso, quase sempre, desenvolve frustrações, mal entendidos e uma pressão desleal. Por outro lado, sinto que espelha o que julgamos merecer e o perigo de construirmos a nossa vida em função de uma só pessoa. Com um tom impulsivo, visceral, a autora também nos mostra que a casualidade expõe as nossas fragilidades.


🎧 Música para acompanhar: Quina da Cama, Pedro Sampaio


Disponibilidade: Wook (Livro | eBook) | Bertrand (Livro | eBook)

Nota: Esta publicação contém links de afiliada da Wook e da Bertrand

Fotografia da minha autoria



Estava a limpar a minha mochila, para a substituir por outra, e deparei-me com um papel dobrado em quatro. Embora ande sempre com blocos e canetas atrás de mim, não costumo armazenar papéis não identificados, por isso, aquele intrigou-me.

Estava ali perdido numa divisória de organização, completamente esquecido, sem que lhe conseguisse atribuir uma data de nascimento. Mas não por muito tempo, porque, assim que desfiz a primeira dobragem, percebi o que era: uma justificação de falta.

Eu sabia que não ia precisar, mas pedi-a mesmo assim. Quando o meu tio faleceu, fiquei a observar o armador a escrever o meu nome e o grau de parentesco que nos unia. Não a mim e a ele, mas a mim e à pessoa que tinha acabado de perder. Eu sabia que não ia precisar da justificação, mas pedi-a na mesma, como se fosse uma prova irrefutável de que era sobrinha do meu tio, como se aquele pedaço de papel fosse a cola que me manteria intacta, quando toda eu continuava a ser lágrimas, um grito abafado no peito e uma infinidade de palavras que não conseguia dizer. Queria ser colo, mas precisava que me amparassem. E aquele papel foi só mais uma maneira de abrir a ferida.

Aquelas letras, que cumprem um mero procedimento, não falam sobre os conhecimentos que tinhas, a quantidade de vezes que apoiaste a minha escrita, as horas que me ouviste a contar as histórias que eu inventava, os manjericos que trazias no dia de S. João (um para a minha avó, outra para a minha mãe e outro para mim; depois só para a minha mãe e para mim); não falam sobre os «inté», as provocações futebolísticas, os passeios em Bragança, as dicas de fotografia e o facto de seres o tio das barbas. Sobretudo, não falam da culpa que sinto por ter adiado o telefonema e do amor que te tenho. Cuidas de mim onde estiveres?

Agarrada ao papel, fiquei a pensar na quantidade de coisas que guardamos sem nos virem à memória com regularidade ou que guardamos sem sabermos o que lhes fazer a seguir. E lembrei-me, por exemplo, dos números de telemóvel que ainda não consegui apagar - e que talvez nunca venha a conseguir. Talvez não faça sentido, mas é como se estivesse a deitar fora uma parte tão importante de quem sou.

Há dias em que me pesa já não ser capaz de me recordar das vozes de quem partiu. Se for eliminando estes dados, o que é que sobra? Sei que não há algo que possa fazer com eles, sei que não posso ligar e concertar o que se quebrou cá dentro, mas há uma espécie de conforto por continuarem onde estão. É ilusório, bem sei, mas é como se algo permanecesse igual e a sensação de estar em falta fosse menos audível.

Eu sabia que não ia precisar daquela justificação. Quatro meses depois, continua a não ser útil. Mas, pelo sim, pelo não, vou só mantê-la ali mais um pouco.


▪ outubro, 2024

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andreia morais

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O meu peito pensa em verso. Escrevo a Portugalid[Arte]. E é provável que me encontrem sempre na companhia de um livro, de um caderno e de uma chávena de chá


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