O que li por aí #25


A Ana Ribeiro, do blog Escreviver, partilhou um texto no meu facebook e eu, naturalmente, não poderia deixar de o publicar aqui n' As gavetas da minha casa encantada. O motivo? Logo nas primeiras palavras torna-se óbvio: fala do Porto!


Porto

Então, eu comia o Porto. Ali à beira do Douro, abria a boca e enchia-a com o Porto. Pousava-o sobre a língua e mastigava-o com cuidado, para não causar estragos na Torre dos Clérigos, no Pavilhão Rosa Mota ou na estátua do leão e da águia da Boavista. Os portuenses haviam de acreditar que o céu da minha boca era um dia de outono nublado e continuariam a fazer a sua vida normal, voltariam para casa à hora certa do relógio de pulso e os autocarros continuariam a subir e a descer os Aliados sem perturbação. O momento de engolir o Porto seria sereno para a cidade e, para mim, seria o instante em que a memória do seu gosto se tornaria efectiva. O Porto não saberia a molho de francesinha, muito menos a tripas ou a vinho doce, teria um gosto composto por múltiplo, intenso e contraditório, composto por perífrase, hipérbole e oximoro. Eu fechava os olhos, claro, para sentir analiticamente o gosto do Porto. Passava bastante tempo assim, o silêncio tinha vagar para rodear-me.

Sentia todo o caminho do Porto através da minha garganta. Haveria de lembrar-me de goles de água no verão, o fresco da água a descer por mim como uma onda de temperança. Nesse túnel, o Porto, com os seus estádios, com o mercado do Bolhão, haveria de fluir imperturbável, mais lento e justo do que um rio grande, atravessado por pontes de ferro projectadas por Gustave Eiffel. Eu não haveria de me engasgar com o Porto, nem sequer me lembraria dessa possibilidade, nem sequer a consideraria. Seria capaz de respirar grandes volumes de ar fresco e limpo, seria capaz de respirar uma tarde inteira ou, mesmo uma primavera inteira, uma infância inteira. Para o Porto, esse caminho no interior da minha garganta seria menos do que uma brisa. Talvez alguns portuenses, os mais sensíveis à humidade, subissem a gola do casaco por instantes, talvez quisessem cobrir o pescoço, sentir tecido na pele fina do pescoço. O carros continuariam a parar nos sinais vermelhos e a avançar nos sinais verdes, continuariam a encaracolar-se pelos caminhos do silo de estacionamento ou, na rua, continuariam a seguir as indicações de um arrumador com barba, vestido com casacos sobrepostos.

O Porto chegava-me ao estômago à hora certa do entardecer. A tranquilidade seria inquestionável. Todos os poetas da cidade haveriam de ter um acesso súbito de inspiração. O meu estômago não precisava de se dilatar, barrigada, para ser capaz de acolher toda a cidade num plano horizontal, nivelado ao milímetro pelos desníveis habituais das suas ruas e avenidas. Quem estivesse a descer até à Foz, continuaria passo após passo; quem estivesse a subir até ao Marquês, continuaria passo após passo. As gaivotas planariam voltas perfeitas dentro do meu estômago e, assim, seriam capazes de puxar a noite. Chegaria devagar, ao ritmo intermitente das luzes que se começariam a acender na Baixa.

Por acaso simbólico, a absorção começaria precisamente à hora de jantar. As casas, o ar, as ruas, os viadutos, as montras, os jardins, as pessoas, os carros, as palavras, a pronúncia, os monumentos seriam gradualmente absorvidos pelas paredes do estômago. Atravessá-las-iam como uma sombra que fosse progredindo sobre a cidade, como uma maré de nuvens que fosse tapando a lua e as estrelas, uma a uma. Todos os elementos sólidos e não sólidos da cidade, mesmo os invisíveis, transformar-se-iam em carne, na minha carne, no meu sangue a correr pelas minhas veias e a atravessar-me desde a ponta dos dedos, os mesmos que carregam nestas teclas, até às pequenas artérias que irrigam os meus olhos, o meu cérebro. O Porto seria oxigenado pelos meus pulmões, passaria pelo meu ventrículo esquerdo e, depois, pela aorta. A zona das Antas seria uma extensão da minha pele, a Sé também. Quando eu tocasse alguma coisa, quando segurasse um livro ou ouvisse uma canção, só seria capaz de fazê-lo através do Porto. Na verdade, nem eu próprio seria capaz de distinguir-me do Porto. Seria capaz de dizer "o Porto", seria capaz de dizer "eu", mas apenas o faria por preguiça analítica, por mecanismo desonesto de esquematização. Essa mentira seria fácil de desmascarar em cada palavra dita, escrita, em cada silêncio, porque se eu articulasse um som mínimo, seria o Porto que o estaria a dizer; se eu escrevesse uma letra, seria o Porto a escolhê-la; se eu permanecesse quieto, a olhar para a distância e a pensar em imagens de tempos passados, seria o Porto que existiria no meu lugar, a lembrar-se de dias, passados neste ou noutro século.



José Luís Peixoto, in Abraço

Comentários

  1. Fantástico este belo texto sobre o Porto do José Luís Peixoto está muito bem escrito, como não podia ser de outra maneira devido à categoria do autor.
    Um abraço e bom fim de semana.

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  2. Tão bom! E eu que não conheço o Porto? Uma vergonha!

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  3. Adorei e o Porto é a melhor cidade *_*

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  4. Que lindo! Se eu já era apaixonada pelo Porto então agora ainda estou mais e nem sabia que era possível! Quero mesmo muito voltar a essa cidade e se fosse possível para ficar!

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    Respostas
    1. Já estou bem sim querida :) pronta para outra (mas ansiando para que não chegue xD) :p ahah pois, foi uma sorte, se estivesse a treinar com ela ainda era eu que tinha de o amparar :p

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  5. Adoro os textos deste senhor, qual deles o melhor. Não consigo resistir às suas palavras. Inspira-me sempre.

    Para além desse texto, há também um pequeno poema dedicado à cidade, aqui fica:

    O Porto é uma menina a falar-me de outra idade.
    Quando olho para o Porto sinto que já não sou capaz
    de entender a sua voz delicada e, só por ouvir, sou
    um monstro que destrói. Mas os meus dedos são capazes
    de tocar-lhe nos ombros, de afastar-lhe os cabelos.
    Entre mim e o Porto, existem milímetros que são
    muito maiores do que quilómetros, mesmo quando
    os nossos lábios se tocam, sobretudo quando os nossos
    lábios se tocam. De que poderíamos falar, eu e o Porto,
    deitados na cama, a respirar, transpirados e nus?
    Eis uma pergunta que nunca terá resposta.

    José Luís Peixoto

    R: Também estou curiosa :P

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  6. Adorei o texto e, apesar de ser de Lisboa, gosto muito do Porto, acho que tem muito encanto.

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  7. Apaixonante... tanto que eu gosto dessa linda cidade chamada Porto. Cada vez tenho mais certezas de que nasci no sítio errado ahah hei de pôr isto no meu blog também

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  8. O Porto é uma cidade bonita!

    Isabel Sá
    http://brilhos-da-moda.blogspot.pt

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  9. Muito bom texto! Nunca tive a oportunidade de conhecer muito dessa cidade tão adorada. Espero poder um dia :p

    r: Muito obrigada querida! :D

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  10. Muita vontade de conhecer o Porto.
    Cadinho RoCo

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  11. Olá, relativamente ao concurso para ganhar a capa de telemóvel, por favor envia uma mensagem para a página das meninas para que elas saibam qual o teu Facebook.

    https://www.facebook.com/casesforoccasions

    Só assim, poderão escolher o vencedor.

    Obrigada. Beijinhos.

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  12. Bem escrito entendi,
    o saber não ocupa lugar
    se é que também percebi
    que o talento prestigiar!

    Tenha uma boa sexta-feira,
    e seja muito feliz menina Andreia,

    um abraço.

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  13. Porto. O meu Porto. Não diria melhor!
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  14. Qué lindo.
    Tenho vontade de voltar visitar Porto (só estive dia e meio), mas nao sei se va a dar certo
    mas se eu voltara a gente tem que se conhecer, né?'

    Beijinhos linda

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  15. Não me vinguei não :P Não houve vagas e mesmo que houvesse não conseguia ir, fomos uns 20 min à aula do Cross Training andámos para morrer as duas...Mas foi brutal a aula.

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  16. Não conheço o Porto ainda mas quando tiver um tempo ou de férias é uma das cidades que quero conhecer :)
    http://retromaggie.blogspot.pt/

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  17. A leitura deste magnífico texto desperta no leitor deste lado do oceano o desejo de conhecer tão belo rincão
    Beijos minha amiga

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  18. Que texto maravilhoso. Que vontade de visitar o Porto!

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