Entrelinhas #78

Fotografia da minha autoria


«O pintor Oskar Kokoschka estava tão apaixonado por Alma Mahler que, quando a relação acabou, mandou construir uma boneca, de tamanho real, com todos os pormenores da sua amada»


A minha personalidade de leitora preserva, ainda, muitas gavetas por abrir. E, em cada uma delas, há títulos e há nomes que pretendo conhecer. Pela curiosidade. Pelo desafio. Pela oportunidade de abraçar uma zona externa ao conforto de autores que acompanham os meus passos literários. Quebrar este muro e encurtar a distância transparece um entusiasmo distinto. Nem sempre positivo, mas totalmente necessário e enriquecido de experiências e aprendizagens. É por isso que aprecio tanto desembaraçar os nós e voar pelo desconhecido.

Na lista de escritores que me despertam maior interesse, Afonso Cruz aparecia num lugar de destaque. A dificuldade residia, sobretudo, na escolha da primeira obra, naquela que me estrearia nas suas palavras e nas múltiplas visões dentro de uma narrativa. E numa ocasião pertinente, quando regressava de Vila Real, trouxe comigo A Boneca de Kokoschka: uma história de metáforas e com tanto mundo dentro. Porque o autor, percebi de imediato, tem uma forma maravilhosa de se expressar e de conduzir todo o enredo, tornando-o enigmático, místico, surreal - de tão genial - e labiríntico. Além do mais, há um cruzamento entre a realidade e a ficção, não sendo claros os seus limites, em consequência da referência a outras obras, artistas e intervenientes. Despertando um complexo traço de ligações - inter e intrapessoais -, existe uma espécie de paz e de magia na escrita de Afonso Cruz. Há poesia na sua prosa. Inebriando-nos e enlaçando-nos.

Este livro é uma marioneta, com inúmeros fios interligados. E deve ser lido devagar, para melhor compreendermos os detalhes. Mesmo quando algumas passagens aparentam ser desconexas, tudo faz sentido no seu ritmo certo. Há personagens que podiam ser uma extensão nossa, porque retratam acontecimentos fidedignos [dentro de traços imaginários], facilmente associados ao nosso quotidiano. Por essa razão, podem funcionar como um espelho ou, então, como uma porta para uma nova perceção. Ademais, é uma obra que aborda vários tipos de amor - o que temos pela família, o que nos magoa, o que ansiamos uma vida inteira; é uma obra que conversa connosco sobre a importância do outro, sobre as circunstâncias que moldam a nossa identidade, sobre relações, encontros, desencontros e sobre vulnerabilidade. Em simultâneo, menciona temas como a perseguição aos judeus, a morte, a destruição, a perda, a dor, a guerra e as memórias que permanecem no tempo.

Tenho sempre um receio: não ter sensibilidade suficiente para entender a mensagem subliminar, desconstruindo as entrelinhas. No entanto, lanço-me de peito aberto e analiso os contornos do enredo, mas sem fazê-lo em excesso. Porque sinto que as histórias merecem este cuidado, ainda para mais quando descobrimos o seu lado matriostico, por todas as camadas que o compõem. E eu adoro narrativas mais complexas, precisamente, por nos levarem numa viagem profunda. E nem sempre óbvia. A Boneca de Kokoschka é um livro com um livro dentro, criando uma dinâmica distinta, quase como se existissem dois autores. E é importante referir que, para além de partir de um episódio verídico, a história da boneca - contrariamente ao que o título e a sinopse permitem antever - não é protagonista, mas assume-se como elemento central, uma vez que despoleta a maior parte das situações, estabelecendo a ponte entre as várias realidades e as personagens.

A obra tem tanto de amor, como de obsessão. Tem tanto de ligação febril, como de insanidade. E mostra-nos o impacto que podemos ter nos outros e eles em nós, ao ponto de haver um certo descontrolo emocional. Para além dessa questão, somos confrontados pela negligência, pela violência, pela cruel rejeição. Por vezes, oferecemos tanto de nós a quem não merece. E, pior, que nos maltrata. E isso desgasta-nos, não só física, mas emocional e psicologicamente também, podendo saturar o nosso discernimento. Neste enredo de lembranças, sentidos e sentimentos, percebemos o quanto a nossa história é influenciada por terceiros, independentemente de o detetarmos ou não. Assim, há perguntas em suspenso: será que somos tão diferentes de um ser inanimado? Até que ponto as interações predominam? Será o contexto um motivo e uma justificação?

A abordagem tão visual de Afonso Cruz inquieta-nos. E, através da boneca, apresenta uma curiosa definição de liberdade. É que todos temos gaiolas - impostas por nós ou pelos outros. E é nesta travessia do passado para o presente que o conceito de gaiola interior nos obriga a parar. E a refletir. Porque nos demonstra que, talvez, a liberdade seja uma utopia, na medida em que estamos sempre presos a algo ou a alguém - ainda que a porta esteja aberta e possamos sair e seguir, a qualquer momento, «para conquistar um pouco de céu».


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«(...) os afetos magoam muito. Os outros morrem, mas quem sofre somos nós» [p:32];

«O inimigo vive dentro da nossa casa e aquilo que mais tememos, que mais nos ameaça, é precisamente aquilo que está mais perto de nós» [p:38];

«Mas, no fundo, não há grande diferença entre um coveiro e um agricultor. Ambos colocam a sua esperança na terra, uns deitam a semente, outros o cadáver, mas ambos esperam que, do que se enterra, um dia brote vida» [p:62];

«- Eu, quando fecho os olhos, vejo luzes. Se está escuro, de onde vêm essas luzes? Quando sonho está tudo iluminado, ou então não se veria nada. De onde vem essa luz, Isaac, de onde vem essa luz?» [p:97];

«- Não seja ridículo, Sr. Tóth. Não sou cristão.
- E essa cruz que traz pendurada ao peito?
- Todos nós carregamos uma cruz. Se eu a carrego no peito, não lhe diz respeito» [p:184]


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Comentários

  1. Li e gostei, aliás gosto quase de todos os livros do Afonso Cruz, aproveito para desejar a continuação de uma boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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    1. Quero muito aventurar-me em mais livros da sua autoria! Entretanto, já tive a oportunidade de ler Os livros que devoraram o meu pai e amei *-*
      Obrigada e igualmente!

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  2. Nao conhecia o autor mas adoro historias com metaforas cheias de mundos dentro delas :)
    Beijinhos
    https://matildeferreira.co.uk/

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  3. Não li o livro de Afonso Cruz, mas conheço bem a personalidade da austríaca ALMA MARGARETHA MARIA SCHINDLER. Uma mulher talentosa, emancipada, livre de preconceitos. Uma mulher fatal.
    Casada com Gustav Mahler, Walter Gropius, Franz Werfel e amante de diversos homens famosos, entre eles, Oskar Kokoschka, que nunca lhe perdoou a sua infielidade. Um diabo 😈 de saias que foi sempre infiel aos maridos e aos amantes. Uma mulher absolutamente interessante. Tão inspiradora que escrevi um trabalho sobre ela.

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    1. Confesso que só tomei conhecimento de tal personalidade quando li este livro, mas ainda não pesquisei a fundo :)

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Confesso que não conhecia, mas parece-me uma boa aposta :)
    Essa definição de liberdade está tão certa, a meu ver.

    R: Eu já tentei, mas não sei mexer no lightroom ahah e o VSCO é mesmo o meu melhor amigo :p

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    1. É um livro com tanta mundo dentro! Aconselho muito, minha querida *-*

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    2. P.S. Qualquer dia tenho que experimentar o VSCO!

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    3. Eu acho que fazes muito bem, é mesmo simples e tens também uma liberdade incrível no que toca a edição :)

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    4. Convenceste-me, tenho mesmo que me aventurar :D

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  6. Parece uma leitura doce, mas ao mesmo tempo perturbadora pelo carácter obsessivo. Confesso que fiquei mega curiosa coração!

    THE PINK ELEPHANT SHOE

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    1. É daquelas leituras que nos exigem inteiros, porque há uma viagem fabulosa! Aconselho, coração *-*

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  7. Nunca li nada deste autor mas o livro despertou-me a curiosidade.

    Beijinhos! :*

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    1. Ainda só tive a oportunidade de ler dois livros de Afonso Cruz, mas vale bem a pena *-*

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  8. Posso dizer que não conhecia esse livro que falaste
    Beijinhos
    Novo post //Intagram
    Tem post novos todos os dias

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  9. A minha admiração para a tua publicação!
    =)
    Bjinho
    Por aqui com; Olhares e Deslumbres

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  10. Acho que nunca li nada dele..

    https://www.sonhamasrealiza.pt

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  11. Digo porque é verdade,
    o autor não desconheço
    com toda a sinceridade
    esse livro não conheço!

    Tenha uma boa tarde Andreia.

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  12. Muito interessante :)

    r: por isso é que fiquei a adorar esta app.

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  13. Não li este livro, mas pela descrição parece valer a pena.
    Obrigado pela sugestão.
    E parabéns pela foto, gostei imenso.
    Andreia, continuação de boa semana.
    Beijo.

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    1. Sou suspeita, mas vale mesmo :)
      Eu é que agradeço!

      Obrigada e igualmente

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  14. Confesso que não conhecia mas fiquei curiosa, parece ser uma ótima leitura.
    Beijinhos
    http://virginiaferreira91.blogspot.com/

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  15. Ainda não li...

    https://checkinonline.blogspot.com/

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  16. Acho mesmo que ia gostar! :D
    beijinhos

    www.amarcadamarta.pt

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  17. Ainda não li mas vou ler, a minha amiga Clara estar a ler depois passa para mim.
    Bjs

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    1. Espero que goste! Depois diga-me o que achou do livro :)

      Beijinho grande

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  18. Conheço alguma obra do autor, mas ainda não li esse livro.
    Tenho lido críticas muito positivas acerca dele.
    Beijinho

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    1. Ainda estou a descobrir Afonso Cruz, mas tenho gostado imenso *-*

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  19. Respostas
    1. Recomendo! Depois deste, que adorei, li Os livros que devoraram o meu pai e rendi-me ainda mais *-*

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  20. Olá, Andreia!

    Não conheço o autor e muito menos o livro, mas pareceu-me ser bastante interessante. Tenho é de admitir que fiquei um bocado triste quando li que a história da boneca não é o principal do livro, porque fiquei bastante curiosa assim que li a sinopse.

    Beijinhos! :)

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    1. A sinopse, neste caso, engana bastante, ao ponto de várias pessoas aconselharem a sua não leitura. Ainda assim, é um livro fabuloso, porque a forma como a história da boneca despoleta tudo o resto é inquietante :)

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  21. Bem curiosa que acabei de ficar com esse livro! Beijinhos*

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  22. Para mim, uma prova de amor e paixão, para outros, "é um doente mental, um 'freak', um psicopata..."Deve ser um belo livro. Vou caçá-lo ...
    Abraços.

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  23. Triste, é sempre quando a relação acaba! Porém se não somos eternos e nem podemos subjugar alguém, a solidão é a saudade do que se foi e permanece em nós! Grande abraço! Laerte.

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  24. Afonso Cruz é, desde o meu Secundário, uma das personalidades que mais admiro!
    E este livro tem de ser lido também por mim *.*

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    1. Era um dos nomes que tinha em lista de prioridades e fiquei absolutamente rendida. Entretanto, li Os livros que devoraram o meu pai, que aumentou a minha vontade de descobrir ainda mais obras suas

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