Entrelinhas #79

Fotografia da minha autoria


«Mariana, filha única, tem dez anos quando Rosa nasce»



O meu crescimento foi, em parte, solitário, atendendo à minha qualidade de filha única. Ainda que nenhuma relação tenha o poder de substituir outra, foi nos meus primos que encontrei esse vínculo tão umbilical. Contudo, sem sentir na pele a exigência da partilha e da aceitação de que o amor paternal, os brinquedos, o espaço teriam que ser repartidos - no fim do dia, cada um regressava a um lar independente. Conhecendo-me, hoje, sinto que seria capaz de gerir bem todas estas questões emocionais - até porque queria ter um irmão -, mas a verdade é que não o posso garantir em pleno. Que impacto teria um acontecimento desta magnitude na minha vida?

Rosa, Minha Irmã Rosa sempre teve um nome sonante, tornando-se um título de referência, sem nunca o ter lido. Porque, ao longo dos anos, várias foram as menções à sua história. Embora tenha adiado a sua descoberta, porque outras narrativas se sobrepuseram, revelou-se um testemunho poderoso, reflexivo e de extrema generosidade. Deixar de ser filho único implica mudanças, sobretudo, internas: pela necessidade de compreender que dividir atenção não significa perder importância. E pela necessidade de adequar a dinâmica familiar, de modo a que as ligações existentes não se quebrem, nem fiquei comprometidas. E este processo requer tempo e cuidado, sobretudo, quando envolve crianças numa fase chave do seu desenvolvimento.

Esta obra de Alice Vieira permite-nos acompanhar os medos, as inseguranças e as divagações de uma menina de dez anos, que teme ser esquecida ou colocada de parte com o nascimento da irmã. Por isso, acaba por encará-la como uma intrusa, desenvolvendo sentimentos dicotómicos. Apesar de não ser capaz de me rever no enredo, uma vez que não passei pela mesma experiência da personagem principal, o discurso é tão claro, que sentimos a angustia, as dúvidas e as sucessivas aprendizagens. E este é o lado mais fascinante do texto: a maturidade de Mariana. Porque partilha pensamentos e conclusões pertinentes - que não se limitam à chegada de um novo elemento à família. Naturalmente, nenhum caso é igual. Mas este exemplo é bastante elucidativo das alterações mentais, relacionais e comportamentais que se podem desencadear. Além disso, funciona como alerta para os pais, para que estejam atentos e não descurem os afetos e as conversas. Por muito bem que os filhos aceitem e lidem com a situação, há momentos em que precisam de colo e de sentir que ninguém ocupou os seus lugares. Este apontamento e esta paz são cruciais.

Com temáticas bastante atuais, este livro foca os ciúmes, os dilemas, os conflitos, a perceção de invasão de espaço e, ainda, «a prevalência da mulher como figura central, demarcando a transição após o 25 de abril». Rosa, Minha Irmã Rosa preserva uma mensagem doce e terna, com humor, detalhes maravilhosos e inúmeros aspetos fundamentais nas suas entrelinhas. Além disso, fomenta a sensação de pertença, quebra estereótipos e apela à individualidade, porque há coisas - e pessoas - que necessitamos de manter só para nós - ainda que, mais tarde, consigamos partilhá-las. Porque compreendemos que há algo inesgotável: o amor. Mesmo aquele que achamos impossível - ou, simplesmente, improvável - de vir a sentir por alguém.


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Além disso faltava-me a voz da mãe («vá, dorme, que amanhã tens de te levantar cedo para a escola!»), faltavam-me as suas mãos a aconchegarem-me ao corpo a roupa da cama. Faltava-me saber que ela estava ao pé de mim mesmo que não a visse nem ouvisse» [p:8];

«Esquisito, como todas as pessoas querem ajudar quando não são necessárias, e desaparecem na altura exacta em que precisamos delas...» [p:30];

«E cada vez ela ria mais, até parecia que se engasgava. Como ria a avó Lídia quando contava histórias. E eu comecei a rir com ela» [p:66];

«Se fosse comigo, era assim que eu sentia, mas a gente sabe lá o que pensam estas pessoas crescidas, que às vezes me parecem saber tudo, outras vezes me parecem não saber nada de nada» [p:89];

«Só porque a partir de agora eu já não estou sozinha, e é bom não estar sozinha nunca mais» [p:118].


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Comentários

  1. Alice Vieira é uma autora incontornável da nossa literatura portuguesa. Os seus livros infantis são e sempre foram uma delícia. Devorei-os quando era criança, em parte devido à minha mãe que, também ela uma grande apaixonada por literatura, me passou em jeito de herança os livros que ela tinha lido trinta anos antes.

    "Rosa, minha irmã Rosa" é a sua obra mais conhecida, talvez. Também sinto a tua curiosidade por ser, como tu, filha única. Ainda foi mais solitária no sentido que nem primos tive para brincar quando era miúda, por isso acabava por compensar nos livros e nas histórias que fazia na minha cabeça. Com este teu Entrelinhas deste-me a vontade de regressar à minha infância e aos meus livrinhos de miúda. Gostei muito :)

    Um grande beijinho,
    Sónia Rodrigues Pinto
    By the Library

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    1. Uma das minhas grandes falhas enquanto leitora é ainda não estar familiarizada com as suas obras. E é algo que quero mudar, porque acho que me iria enriquecer imenso *-*
      Isso é maravilhoso! São memórias e associações que aconchegam
      Da minha perspetiva de filha única, foi mesmo interessante acompanhar todas as inseguranças e dúvidas da Mariana. É que não as partilho, precisamente por não ter irmãos, mas é impossível ficar indiferente.
      Oh, que bom, fico mesmo feliz por ler isso ♥

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  2. Adoro a Alice Vieira, perdi emprestados todos os meus livros, mas penso fazer uma nova biblioteca deles se o meu filho continuar a gostar de livros!!

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  3. Curiosamente, ontem ouvi esta Prova Oral, com a Alice Vieira: https://www.rtp.pt/play/p260/e160551/prova-oral
    Deixo-te porque pode ser que te interesse :)
    Um beijinho, minha querida*

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    1. A sério? Há coincidências tão giras *-*
      Obrigada pela partilha, tenho que ir ouvir

      Beijinho grande ♥

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  4. Interessante este livro que ainda não tive o prazer de ler, aproveito para desejar a continuação de uma boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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    1. Se tiver oportunidade, aconselho a leitura :)
      Obrigada e igualmente!

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  5. Também tenho o título super presente de quando era mais nova! mas também nunca li, mas acho que me convenceste!

    THE PINK ELEPHANT SHOE

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    1. Aconteceu-me exatamente o mesmo. Quase que cresci com o nome desta obra, mas nunca o tinha lido. Espero que, se leres, gostes, coração :)

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  6. Que saudades dos textos deste livro da minha escola primária :)
    Tenho a versão dele com ilustrações da Patrícia Furtado no meu carrinho de compras da Wook :)
    Beijinhos
    https://matildeferreira.co.uk

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  7. Tenho uma estima especial por este livro. Foi o primeiro livro com mais texto do que imagens que li e fi-lo aquando o nascimento do meu irmão, por isso identifiquei-me muito.

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    1. Adoro ficar a conhecer estas memórias tão reconfortantes. Obrigada pela partilha ♥

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  8. Também sou filha única e pensei que tu o fosses!!!

    Enquanto que tu amas a tua zona de conforto. Eu fugi dela aos 18 anos, quando fui para Inglaterra. Um choque terrível para a mim mãe. Que eu ficasse para sempre na Alemanha NUNCA me perdoou.

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    1. Só conheço os livros infantis da Alice Vieira.
      Li algumas histórias dela em revistas portuguesas.

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    2. Com imensa pena minha, é verdade, sou filha única

      Há coisas da minha zona de conforto que amo, sem dúvida. E uma delas é o local onde moro. Claro que não sei o dia de amanhã, mas, no que depender de mim, tenciono permanecer por cá

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    3. P.S. É uma falha minha, mas só agora é que me estou a aventurar nos seus livros

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  9. Sempre a conhecer novos livros, mais um que não conhecia
    Beijinhos
    Novo post //Intagram
    Tem post novos todos os dias

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    1. Fico contente por, em certa medida, apresentar coisas novas :)

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  10. Já tinha ouvido falar... Confesso que se tiver a oportunidade vou querer ler!

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram

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  11. É uma autora que nunca li, mas fiquei muito curiosa com este livro por também ser filha única.

    Tenho que ler!

    Beijinhos!❤️

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    1. Também só agora é que me comecei a aventurar na sua obra, mas pretendo continuar. Recomendo, minha querida ♥

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  12. A leitura desse texto,
    convida a ler o livro
    mas, quem sem protesto
    ainda o não leu acredito!

    Tenha uma boa noite Andreia.

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  13. O livro é excelente assim como a continuação da história em Lote 12,2o Frente.
    Também sou filha única.
    Beijinho

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    1. Tenho mesmo que ler a continuação :)
      Team filhos únicos ahahah

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  14. Adoro a Alice Vieira e adoro essa "colecção" antiga da Caminho, muitos autores e muitos livros maravilhosos eu li na adolescência. São livros fantásticos.
    Nessa altura a Caminho publicava muitos livros para adolescentes, incluindo os "Uma Aventura" entre outros.
    Não sei se já leste, mas sugeria-te que lesses "A Malta do 2°C" da Catarina Fonseca, lês dum trago numa hora, e é hilariante e tão "nós" na adolescência 😁
    Penso que fizeram há pouco tempo uma reedição, mas se tiveres dificuldade em arranjar diz que empresto-te o meu.
    A Catarina Fonseca é uma autora fantástica, cheia de imaginação, e merecia muito mérito em Portugal...
    Obrigada por falares nesse livro 😉😘
    Beijinho

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    1. Não sei se estou a confundir com outro, mas acho que sou capaz de ter A Malta do 2ºC cá em casa. Tenho que verificar :)
      Oh, que querida, muito obrigada! Vou procurar e, caso não encontre, digo-te alguma coisa.
      Pois, infelizmente, há autores que não têm o reconhecimento merecido.
      Eu é que agradeço o retorno ♥

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  15. É um livro maravilhoso com uma história que as vezes acontece de fato, Andréia bjs.

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  16. O enredo parece belíssimo e os elementos que resaltaste que ensina são importantíssimos. Abraços.

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    1. Rendi-me por completo ao livro, por isso, só posso tecer elogios :)

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  17. Sem dúvida alguma, meu bem. Ainda para mais quando distam 5 horas de viagem entre Lamego-Lisboa e vice-versa! É muito tempo ganho em pensamentos aleatórios :P
    Obrigado, obrigado <3

    Identifico-me muito com a tua primeira parte e creio que já havíamos debatido sobre o assunto. Na altura, não fazia, de todo, sentido ter irmãos. Contudo e, olhando para trás, hoje sinto falta. Talvez por os meus primos terem crescido e já termos seguido rumos diferentes. O encontro ocasional com eles faz-me ficar nostálgico por tudo quanto vivemos.
    Deixaste-me muito curioso por ler o livro, até porque acho interessante perceber o outro lado... o lado de quem não concebe a partilha de atenção, no fundo!
    Ótima book review, meu doce!

    NEW REVIEW POST | NYX: THE BEST PRIMER EVER?
    InstagramFacebook Official PageMiguel Gouveia / Blog Pieces Of Me :D

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    1. Pois é, dá tempo suficiente para todas essas divagações :)

      Tenho ideia que sim, meu anjo!
      Mesmo tendo uma relação tão forte com os meus primos - que se mantém até hoje -, sempre quis ter um irmão. Porque sinto que o vínculo é totalmente diferente. Já para não falar que há toda uma dinâmica familiar e relacional que se modifica.
      Imagino que sim. Afinal, há muitas memórias associadas. E, quando reencontramos as pessoas, regressam todas.
      Recomendo imenso o livro. A história é muito agradável de acompanhar, precisamente pelo caráter proximal que a personagem principal consegue transmitir

      Muito obrigada ♥

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  18. R:obrigada Andreia!❤️ Opá é tão bom...

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  19. Já ouvi falar muito deste livro, mas nunca li.
    Eu acho que o tema central é mesmo interessante, pois há quem menospreze a ideia do que pode afetar uma criança com a chegada de um irmão.
    Há muitas crianças que, felizmente, aceitam super bem, como foi o meu caso, ainda assim, também senti ciúme. Mas acho que acaba por ser normal, afinal é toda uma mudança nova, fui única até aos 5 anos, habituada a ter toda a atenção dos pais e de repente essa atenção é partilhada. Claro que falo daquele ciúme inicial, aquela habituação.
    O nascimento de um irmão é um momento crucial na nossa vida e é claro que existem mudanças, cabe aos pais, como referes, não descurarem os outros filhos, porque continuarão a precisar de colo e de atenção. No meu caso, nunca senti que fosse posta de lado e tenho noção que graças aos meus pais e a ela, aumentei toda a minha noção de partilha e isso é fantástico :)

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    1. Sinto que ainda há pessoas a desvalorização as angustias e os sentimentos das crianças, unicamente, por serem crianças. E isso não pode acontecer, até porque estamos a comprometer o seu desenvolvimento saudável.
      Nunca passei por essa experiência, mas acho o mesmo. É perfeitamente natural que exista esse ciúme inicial, porque, lá está, estavas habituada a uma determinada rotina e a determinadas pessoas. De repente, percebes que tens que dividir espaço, atenção, brinquedos, afetos... com um elemento novo. E o acompanhamento, principalmente, dos pais pode ser crucial ou limitador nesta transição.
      Isso é maravilhoso *-*

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