Uma Dúzia de Livros // Fevereiro

Fotografia da minha autoria


Tema: Um livro sobre famílias


A literatura pode ser um refúgio. Tem laços de sangue e de coração. É capaz de ser um pai ou uma mãe, por todos os conselhos que nos transmite com sapiência. Porém, também pode ser aquele familiar que nos diz pouco, mas cuja presença não conseguimos ignorar - por mistério, por respeito, por uma tendência para o abismo. Além disso, tem colo de avós. E amor: de casais, de irmãos, de amigos. É que os livros são tão camaleónicos, que preservam uma analogia semelhante àquela que compõe as famílias. E este é, precisamente, o segundo tema do clube/desafio de leitura Uma Dúzia de Livros.

As famílias podem ser complexas, mas também são o nosso escudo protetor. Mesmo sabendo que, infelizmente, isso não é transversal a todas, acredito que há exemplos que o corroboram, a começar por aquele que tenho mais perto: a minha fortaleza. Portanto, ciente de que não era o assunto central da obra, optei por escolher uma que, indiretamente, nos ajuda a refletir sobre a sua força. Sobre o seu significado. Sobre o impacto que tem no nosso percurso e na formação do nosso caráter. Porque, muitas vezes, a família fica em segundo plano, mas continua a ser o pilar que nos permite não quebrar.

Guerra: E se fosse aqui? apresenta uma premissa bastante pertinente, que procura criar empatia sobre um aspeto ainda tabu. Inicialmente, foi pensada como um ensaio, mas foi célere a sua transição para um livro-passaporte. E o seu conteúdo, importa ressalvar, é sempre adaptado a cada país que o traduz, aproximando o leitor do cenário e do contexto. Este exemplar lê-se num só fôlego, mas é intemporal. Porque expõe uma realidade bem presente. Em consequência, impõe-nos um exercício: imaginar que «a guerra rebentava não num qualquer país longínquo do Médio Oriente, mas no nosso». Como seria? Como reagiríamos, se isso acontecesse? Como suportaríamos - e superaríamos - este terrorismo? Sentimo-nos, ainda, seguros face ao ambiente interno de Portugal,  mas será que estaremos eternamente a salvo? E se fosse connosco? Honestamente, com todo o meu coração, nem quero desconstruir essa hipótese. Porque é assustador só de a ponderar.

Janne Teller inspirou-se na sua história, uma vez que pertence a uma família de refugiados e imigrantes, tendo sempre contactado com a ideia de ver a vida a virar do avesso por culpa de acontecimentos geopolíticos. Assim, esta obra convida-nos a entrar na vida de um refugiado. E a acompanhar a luta pela sobrevivência da sua família: uma família que tem que procurar criar raízes noutro lugar que não o seu - todos os acontecimentos são expostos pelo filho de 14 anos. E é inquietante como o conceito de casa esmorece: onde é que ela fica? Recorrendo a frases curtas e diretas, a narrativa parece carecer da angustia e da brutalidade da situação, quase como se a explorasse de um modo superficial, mas sinto que esta abordagem faz todo o sentido, na medida em que existe uma espécie de dormência. A vida muda tão de repente, que agimos em piloto automático e com uma racionalidade desconcertante. Ademais, o poder das entrelinhas é crucial.

Guerra: E se fosse aqui? tem uma «experiência provocadora», pois leva-nos a rever a conotação negativa atribuída aos refugiados, confrontando-nos com a possibilidade de, um dia, sermos nós desse lado. Por essa razão, é um livro que nos apela a olhar o outro e a refletir sobre a nossa humanidade - será que está no limite?; é um livro que nos confronta com a incerteza do amanhã, com a revolta, com o desrespeito, com a frustração, com os constantes recomeços e com a sensação de que nos foram roubadas oportunidades, estabilidade e anos de existência. E, pior, com a perfeita noção de que comprometeram o nosso direito de sermos cidadãos livres. Em simultâneo, há falta de meios, de proteção e o desenraizamento forçado. Mas regressar a casa e retomar o que se perdeu continua a ser o sonho que acalenta as pessoas, ainda que aparente ser distante ou, até mesmo, inalcançável.

É um livro pequeno [em páginas], que cabe na palma da mão. No entanto, é impressionante e chocante o mundo presente no seu interior. E todos os seus contornos não deixam de ser «uma questão de definição de si mesmo, tanto para os que chegam, como para os que recebem». É um alerta. Um estímulo para vermos para além do nosso umbigo. E para nunca nos esquecermos de «fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem a nós». A que[m] é que nos agarramos quando tudo quebra? À família: à nossa ou, simplesmente, à que nos acolhe de peito aberto, sem nos conhecer, para nos salvar do caos.


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Não há resposta para o onde. A tua família agora não passa de um número. Cinco! Nenhum país quer mais cinco refugiados» [p:14];

«Habituas-te a vender bolinhos. Habituas-te à pobreza. E habituas-te ao calor extremo. Nunca te habituas a ser olhado como um cidadão de terceira» [p:36];

«Contudo, sentes-te estrangeiro.
Só pensas em quando poderás voltar a casa.
Casa, onde?» [p:51]


Nota: O blogue é afiliado da Wook. Ao adquirem o[s] artigo[s] através dos links disponibilizados, estão a contribuir para o seu crescimento literário. Obrigada ♥

Comentários

  1. Respostas
    1. Não conhecia mas deve ser bem interessante, fico com a sugestão para uma futura leitura, aproveito para desejar a continuação de uma boa semana.

      Andarilhar
      Dedais de Francisco e Idalisa
      O prazer dos livros

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    2. Aconselho! É um livro que se lê muito rápido, mas que acaba por nos desconcertar, até porque se foca em temas muito pertinentes

      Obrigada e igualmente :)

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  2. Também vi aqui à dias um episódio de " Testemunha Silenciosa " sobre refugiados, e mexeu muito comigo. E aqui falaste de algo que foi mesmo o que senti... são números... muitas vezes são só números e notas... A nossa perda de humanidade está a criar barreiras mesmo sem os ditos muros e fronteiras.

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    1. Testemunha Silenciosa não conhecia, mas vou pesquisar. Obrigada pela dica :)
      Infelizmente, ainda há uma grande descriminação em relação aos refugiados, porque as pessoas esquecem-se de se colocarem no lugar dos outros. Nem era preciso ir muito longe, bastava pensarem «e se fosse comigo?». Que tipo de tratamento gostariam de receber?
      «A nossa perda de humanidade está a criar barreiras mesmo sem os ditos muros e fronteiras», não diria melhor, minha querida

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  3. Olá Andreia
    Esse livro é desconcertante, eu nem quero imaginar, apesar de já ter feito esse exercício de horror.
    Não sei se conseguiria ler esse livro.
    Xoxo

    marisasclosetblog.com

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    1. Acho que conseguirias, porque não partilha informações muito chocantes. Ainda assim, a verdade é que nos revolta por dentro :/

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  4. Caramba, eu tneho mesmo de ler este livro pois vai de encontro aos meus receios sobre este assunto... ponho-me tanto no lugar destas pessoas... alias neste momento vivemos em estado de apreensao e ansiedade pois nao sabemos como esta novela do Brexit vai terminar... :/
    Beijinhos
    https://matildeferreira.co.uk/

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    1. É um livro que, sem aprofundar muito o tema, consegue focar todos os pontos chave da questão e desarmar-nos! Vale mesmo a pena a leitura
      Pois, compreendo, é mesmo angustiante :/

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  5. Parece ser um livro interessante pela excelente descrição que li.
    Andreia, continuação de boa semana.
    Beijo.

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  6. a leitura com certeza pode ser um refugio, adorei seu texto e conhecer esse livro que parece mt interessante!

    www.tofucolorido.com.br
    www.facebook.com/blogtofucolorido

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  7. Um livro que me parece bem interessante :))

    Hoje:- Os meus desígnios

    Bjos
    Votos de uma óptima Quinta - Feira.

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  8. Fogo mais um que nunca ouvi falar, mas parece ser bastante bom para ler
    Beijinhos
    Novo post //Intagram
    Tem post novos todos os dias

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  9. Não conheço o autor, mas fiquei curiosa com o enredo.

    Beijinhos, querida!

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    1. Também não conhecia a autora, mas, confesso, fiquei cheia de vontade de ler mais obras suas. Esta, em particular, vale muito a pena!

      Beijinhos ♥

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  10. Não conhecia este livro, nem o autor!
    r: Muito obrigada pela força querida ♥

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    1. Foi uma estreia para mim, mas adorei o livro e a visão da autora!

      Beijinho grande, minha querida ♥

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  11. Tenho esse livro aqui ao lado mas acho que só chego a ele em Março, de qualquer das formas fiquei com mais vontade de o ler depois da tua opinião.

    https://www.sonhamasrealiza.pt/

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    1. Se tiveres oportunidade, aconselho mesmo a leitura :)
      Muito obrigada!

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  12. Fiquei bastante curiosa com o livro, parece ser realmente muito interessante!

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram

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  13. Guerra não, paz sim,
    se a vida é complexa
    na terra onde começa
    e na terra terá fim?

    Fiquei algo curioso,
    para ler esse livro
    se lê num só fôlego
    palavra sua acredito!

    Tenha uma boa noite Andreia.

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    1. A paz é fundamental! Pena que nem todas as pessoas consigam perpetuá-la.
      É um livro que vale muito a pena

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    2. P.S. Obrigada e continuação de boa semana

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  14. Fiquei curiosa, eu tal como muita gente, não sabemos como é a realidade destas pessoas e este livro parece ser muito elucidativo.
    Beijinhos
    http://virginiaferreira91.blogspot.com/

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    1. Somos uns privilegiados por não a sentirmos na pele, mas nem sempre o valorizamos. Acho que este livro também nos ajuda a sermos mais gratos

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  15. Olá, Andreia!

    Não conhecia nem o livro nem a autora, mas fiquei bastante interessada em ler. Talvez seja uma leitura futura. Gosto quando os livros nos deixam a pensar assim...

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    1. Recomendo :)
      A temática não é desenvolvida a fundo, até porque é um livro com poucas páginas, mas os pontos em que se foca são essenciais

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  16. Sem dúvida, meu bem :D

    Não conhecia, de todo, mas fiquei com a pulga atrás da orelha. Parece-me um livro muito, muito interessante. Sou fã de livros compactos mas com histórias bem afincadas! Além disso, a capa é mega apelativa.

    NEW PERSONAL POST | 6TH BLOGIVERSARY: AND THE MAGIC CONTINUES TO GROW!
    InstagramFacebook Official PageMiguel Gouveia / Blog Pieces Of Me :D

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  17. Como sabes, nossa língua portuguesa (que é, para mim, uma das línguas mais bonitas que existem, pela sonoridade, inclusive) se originou a partir do latim, mas sabias que o termo "família", derivado do latim "famulus", significa "escravo doméstico"? Às vezes convém, penso eu, nos atermos às origens das coisas, sejam elas quais forem, inclusive das palavras, pois, sim, elas têm um valor que nos acompanha e nos molda - mesmo que às vezes não saibamos -, desde suas origens. Famílias são nossas raízes, como costumam dizer, e as raízes, como nas árvores, servem para, entre outras coisas, nossa nutrição, nossa base, firmamento ou, como escreveste aí em teu texto, "o pilar que nos permite não quebrar". Mas é preciso ter cuidado para que não nos tornemos escravos, de alguma forma, da família ou de outros símbolos que usamos, subjetivamente, como nossos familiares. Há muitos pais e mães que esperam, por exemplo, que seus filhos sejam uma espécie de continuação deles, dos pais, que tenham os mesmos gostos, por exemplo, e até as mesmas profissões, e há muitos filhos que, consequentemente, seguem essa lógica, que se inicia, muitas vezes, e como em uma tentativa de querer agradar apenas, quase que desde a origem, do nascimento. Somos, sim, de modo figurado, e também fisicamente, uma espécie de continuação daqueles que nos geraram, mas não podemos esquecer que somos indivíduos com nossas peculiaridades. Hilda Hilst, por exemplo, a escritora/ poeta brasileira, que eu admiro muito, disse em uma entrevista que, na verdade, tornou-se poeta porque queria de algum modo agradar seu pai, que também era poeta. Era, de certa forma, escrava (no significado latino) desse desejo. Nossa ligação com nossas famílias é, sem dúvida, o elo mais forte que há, mesmo com toda a complexidade que pode haver nisso desde sua origem. Mas nosso sangue às vezes até os mosquitos podem ter, o que significa que, no meu entendimento, o que nos torna familiar de alguém é, acima de tudo, uma convivência em que haja respeito pela liberdade e singularidade de cada um. Não conheço o livro citado por ti, mas, pela tua descrição, despertou minha curiosidade. Um abraço!

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    1. Um comentário cinco estrelas 🌟🌟🌟🌟🌟

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    2. De facto, não sabia do significado de base, mas é interessante essa desconstrução, até porque nos permite ter outra perspetiva.
      Concordo, é importantíssimo não nos escravizarmos, porque, ainda que possamos ser uma extensão dos nossos familiares, somos seres individuais, com gostos, com sonhos, com características próprias.
      Muito obrigada pela partilha!

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    3. Os comentários do Ulisses são sempre assim :)

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  18. Não leio livros, nem vejo filmes com o tema GUERRA.
    As crianças são quem mais sofre com as guerras.

    A família, embora enervante, é uma parte importante da minha vida 🐦

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    1. Ainda que não seja o meu foco predileto, acabo por ver/ler alguns
      Infelizmente, é bem verdade
      As famílias deveriam ser sempre uma parte importante

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  19. Este comentário foi removido pelo autor.

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  20. Excelente review, Andreia. Começando pela intro e prosseguindo.
    Como te compreendo quando dizes que não queres desconstruir essa hipótese, a Guerra é deveras assustadora, principalmente, quando nos imaginamos a pôr no lugar de quem a vê todos os dias.
    Parece-me uma grande obra, na medida em que nos permite uma reflexão tão profunda. Apontado :)

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    1. Muito, muito obrigada ♥
      É uma angustia tremenda só de saber de todos os ataques e ver as imagens na televisão. Viver isso na pele... Nem há palavras!
      Fiquei impressionada, até porque, não aprofundando certas questões ao detalhe, tudo o que expõe toca-nos imenso.

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  21. Nunca tinha ouvido falar desse livro, mas uau agora estou interessada!
    A leitura é mesmo mágico!

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    1. Foi uma descoberta recente, mas que me conquistou por completo!
      Sem dúvida, minha querida *-*

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  22. Deve ser muito interessante mesmo.

    Another Lovely Blog!, https://letrad.blogspot.com/

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