ENTRELINHAS | CRÓNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA

Fotografia da minha autoria


«Uma das obras-primas que consagraram 
definitivamente [o] autor»


A magia da literatura alicerça-se no quanto conseguimos prolongar o desfecho de uma obra. Embora a curiosidade aumente e o peito acelere, nunca queremos pistas óbvias e conclusões rápidas, para desfrutarmos dos contornos imprevisíveis. Quando as respostas são demasiado evidentes, tendemos a perder interesse, porque pouco haverá a acrescentar na narrativa, reavivando o seu fulgor. Porém, quando o autor é Gabriel García Márquez, essa hipótese deixa de ser linear, sendo completamente desconstruída. Apesar de ter sido a minha estreia no autor, foi fácil abraçar essa certeza. Porque tem toque de mestre.

Crónica de Uma Morte Anunciada tem como premissa uma história verídica, vivida numa aldeia colombiana, cuja população cúmplice assistiu a uma vingança premeditada. Portanto, temos um conhecimento imediato da situação e do seu final: Santiago Nasar foi morto. E o seu último dia de vida é relatado 23 anos depois do crime ter acontecido, através de uma estruturação com várias vozes, permitindo-nos preencher eventuais lacunas e compreender todas as camadas do enredo. Atendendo a que reconhecemos o que nos espera, será que vale a pena prosseguir? Naturalmente. Porque, ainda que o autor nos revele os factos principais, o ambiente permanece inesperado. E, inconscientemente, acalentamos um milagre e o desejo de um desenlace alternativo.

A verdade é que teria sido mais simples corresponder a essa vontade do leitor, mas Gabriel García Márquez seguiu o caminho mais difícil. E ainda bem, uma vez que a maneira como desenvolveu a ação é mesmo um dos seus pontos fortes, deixando-nos em suspenso. Incrédulos. E, até, revoltados. Neste autêntico quebra-cabeças, há uma crítica palpável à mentalidade primitiva, à cegueira voluntária e à desresponsabilização social. Além disso, estamos perante um crime de honra, uma urgência de justiça pelas próprias mãos, que potencia um ato cruel e, inclusive, carregado de cobardia. Em simultâneo, faz-nos refletir acerca da inércia que se abate na sociedade, sobretudo, quando os problemas não afetam o seu bem-estar direto. E expõe, ainda, o egoísmo e a sua impotência. Neste ponto, não deixa de ser curiosa a passividade dos acontecimentos, surgindo algumas questões: como é que Santiago não percebeu que corria perigo? Como é que as restantes personagens sabiam e não reagiram? Será que não acreditavam? Será que se sentiam pouco confortáveis e com escassez de recursos para evitar a tragédia? É tudo tão surreal, que as respostas se perdem em infinitas conjeturas.

Crónica de Uma Morte Anunciada fica marcada por uma série de coincidências sinistras - o grito não é ouvido, o aviso é desvalorizado, o recado não é lido. E opõe o estilo jornalístico - objetivo, sem divagações - ao realismo mágico, no qual as premonições e os elementos fantásticos adquirem importância. Com uma escrita acessível e com um toque de humor e ironia, vamos desvendar os passos até ao momento fatal. Vamos descobrir as motivações e as crenças. Vamos constatar as incoerências e a bizarria. E vamos, invariavelmente, analisar a forma como a mulher é vista e as obrigações que lhe estão inerentes antes do casamento. Por todas estas razões, é um contexto fascinante, inquietando os nossos valores. 

Gabriel García Márquez criou uma obra genial, que destaca os comportamentos mais básicos do ser humano: primeiro, a negligência. Depois, os remorsos. E, por fim, o perdão. Numa constante linha de consciencialização, este enredo potencia emoções intensas, sentimentos eternos e complexos estados de alma, transportando-nos numa viagem introspetiva, para um universo nostálgico, surpreendente e intemporal.


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Aconselhou-o a levar um guarda-chuva, mas ele deu-lhe um adeus com a mão e saiu do quarto. Foi a última vez que o viu» [p:13];

«Parecia ter fios de comunicação secreta com a outra gente da vila, sobretudo com as pessoas da sua idade e, às vezes, surpreendia-nos com notícias antecipadas que não podia ter conhecido senão por artes de adivinhação. Naquela manhã, porém, não sentiu o palpitar da tragédia que estava a gerar-se desde as três da madrugada» [p:23];

«Tinha mais saúde do que qualquer de nós, mas quando a gente o auscultava sentia borbotar as lágrimas dentro do coração» [p:37];

«Comer sem medida foi sempre o seu único modo de chorar, e eu nunca a tinha visto fazê-lo com tanta mágoa» [p:71];

«Trazia a mala da roupa para ficar, e outra mala igual com quase duas mil cartas que ela lhe escrevera. Estavam arrumadas por datas, em maços atados com fitas às cores, e todas por abrir» [p:86].


// Disponibilidade //
Wook: Livro | eBook [Português do Brasil]
Bertrand: Livro | eBook [Português do Brasil]

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Comentários

  1. Bom dia. Não li esse livro mas já ouvi falar ( bem) muito dele. Pode ser que um dia o leia.

    Abraço

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  2. Concordo com a tua análise literária, Andreia‼

    Um livro que mexeu tanto com as minhas entranhas, que após a leitura o ofereci à minha amiga Beatriz. Não suportava tê-lo na minha biblioteca‼‼

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    1. Fico contente por ler isso :)

      O seu desenvolvimento parece simples, mas a verdade é que toda a mensagem nos inquieta. Quando começamos a analisar cada condicionante, é surreal. Foi um dos melhores livros que li até hoje

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  3. Nunca li nada dele, mas acho que esse livro seria bem interessante para mim.

    Beijinho grande no coração
    danielasilva-oficial.blogspot.pt

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  4. Ainda não li, mas vou procurar na Amazon.

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  5. Mais um que ainda não conhecia, mas também não estou dentro das novidades de livros
    Beijinhos
    Novo post
    Tem post novos todos os dias

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    1. Este já não é recente, mas tem uma qualidade surpreendente!

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  6. thanks for recommend!
    HAPPY WEEK
    xoxo
    https://stylishpatterns.blogspot.com

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  7. Quero muito ler e o teu review está excelente:)
    Beijinhos

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    1. Muito obrigada, minha querida! Quando leres, diz-me o que achaste :)

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  8. Nunca li nada do autor, mas já vi o filme "Amor em tempos de cólera". Mais um livro a acrescentar à lista.

    Beijinho grande!

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  9. Só li dois livros deste senhor. Ninguém Escreve ao Coronel, mais acessível e Cem Anos de Solidão que, confesso, antes do meio do livro, já tinha uma confusão na cabeça que não sabia quem era quem.
    Limitações minhas... lol

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    1. Cem Anos de Solidão também quero muito ler! Vou adicionar Ninguém Escreve ao Coronel à minha lista :)

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  10. Tens que ler Cem anos de solidão, imperdível.

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  11. Parece ser muito bom! daqueles que "prendem" a leitura até ao fim :)
    Beijinho linda.

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  12. eu sou muito fã do Gabo, esse é um livro que tenho aqui ha algum tempo, mas ainda nao li, já adorei ter lembrado dele, com certeza preciso ler

    www.tofucolorido.com.br
    www.facebook.com/blogtofucolorido

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    1. Foi o primeiro livro que li do autor, mas já fiquei rendida. Agora quero aventurar-me em mais obras da sua autoria *-*
      Acho que vais amar!

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  13. Nunca li, do autor recordo-me de ler apenas alguns excertos de textos.
    Mas gostei do que li nas linhas que escreveste..

    Beijinhos.
    Sandra C.
    bluestrass.blogspot.com

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  14. Tal como já te disse, este é o meu livro preferido e, por isso, tenho sempre medo de ler as opiniões das pessoas sobre ele. No entanto, apesar de ter começado a ler esta publicação a medo - não tivesses dito alguma coisa má -, fiquei de coração cheio no final. Agora só tens de ler mais obras do grande García Márquez!



    A Sofia World

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    1. Só podia escrever uma opinião positiva, porque esta obra está mesmo extraordinária! Adorei a dinâmica e a forma como se superou. Porque não é fácil partir desta premissa tão clara e, mesmo assim, prender o leitor à narrativa.
      Tenho mesmo *-*

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