UMA DÚZIA DE LIVROS // OUTUBRO

Fotografia da minha autoria


Tema: Um livro com animais


A nossa caminhada necessita de uma componente solitária, porque há batalhas que só dependem do nosso compromisso. No entanto, o percurso é muito mais gratificante quando partilhado. E a companhia pode ser provável ou, então, distanciar-se desse lado previsível, até porque não nos podemos esquecer dos fiéis amigos patudos, que nos proporcionam histórias memoráveis, luz e amor. Por isso, são os protagonistas do tema mais recente de Uma Dúzia de Livros.

A Vida de Pi foi a minha escolha e desencadeou, dentro do meu peito, um misto de sentimentos. Embora não me tenha arrebatado - e, confesso, era o expectável -, reconheço-lhe um enredo interessante e uma premissa que nos abre a porta para uma reflexão mais intensa. Piscine cresceu rodeado de animais, uma vez que o pai era administrador de um Jardim Zoológico. Portanto, conheceu-lhes os traços, as manias, as necessidades e as personalidades. E estava sensibilizado para comportamentos, questões de habitat e de alimentação. Porém, nenhum conhecimento enciclopédico é suficiente quando estamos perante uma catástrofe e somos obrigados a dividir o espaço que nos sobra com espécies imprevisíveis e, aparentemente, pouco empáticas com os humanos. Mas tudo nesta viagem é uma surpresa. E acabamos por redobrar as expectativas - e a vontade de descobrir a próxima consequência.

O vínculo entre as pessoas e os animais não é, ainda assim, o mais evidente neste contexto. Aliás, há uma desconfiança permanente e mútua. Não obstante, as entrelinhas do que não é feito são, para mim, muito mais reveladoras destas relações, no fundo, impostas. O autor, através de uma linguagem descomplicada, conseguiu transmitir essas dicotomias e acalentar o desassossego emocional por estarmos a deslumbrar um ecossistema desconcertante, num local tão reduzido. Em simultâneo, orientou-nos para problemáticas essenciais, como a liberdade, o respeito, a dinâmica familiar, a morte e a religião. E, neste último ponto, tenho que realçar o quanto a fé foi retratada com delicadeza, porque, partindo das convicções do protagonista, quebrou-se o muro que divide as diferentes religiões, aproximando-as. Porque é que só nos podemos identificar com uma? Porque é que não podemos aproveitar o melhor de todas elas? Quando se trata de uma crença - e de estarmos em paz -, não deveríamos ser obrigados a escolher, pois há energias que nos ultrapassam; que são maiores que nós.

Este clássico de sobrevivência divide-se em três partes: 1) infância e adolescência de Pi; 2) o naufrágio e toda a luta inerente; 3) a chegada a terra e a partilha do que aconteceu. Pessoalmente, esta fase final da narrativa foi a mais emocionante, pois reforça a nossa resiliência em situações de adversidade e expõe muito daquilo que somos enquanto sociedade, enquanto seres pensantes e enquanto pessoas com determinadas perceções do mundo. Para além da oposição entre ciência e religião, existe um contraste profundo entre razão e emoção, sendo mesmo colocada em causa a veracidade dos factos. O que também nos leva a repensar aquilo que rejeitamos por não acreditarmos, por considerarmos surreal e nada exequível. Será correto duvidarmos, apenas por não o termos vivenciado? Neste livro podemos decidir se cremos ou não, oscilando entre a fé e o ceticismo.

A Vida de Pi deixa-nos perplexos. Vigilantes. E com a sensação de estarmos em constante perigo. Ao mesmo tempo, proporciona-nos circunstâncias introspetivas. E mostra-nos quem é o nosso adversário mais poderoso: o medo. Sinto que o texto teria um impacto maior se Yann Martel não se demorasse tanto em passagens secundárias e evitasse algumas repetições, aproveitando para explorar melhor detalhes que tornou céleres. Apesar disso, graças à sua forte componente reflexiva, é uma obra que derruba preconceitos e que nos permite compreender que não devemos ser rápidos no julgamento que fazemos de terceiros - primeiro, precisamos de calçar os seus sapatos, para depois sermos capazes de afirmar que não tomaríamos certas decisões. Porque, quando a nossa vida depende disso, podemos habituar-nos a tudo, «até a matar». É assustador equacionar esta hipótese, mas a verdade é que, numa situação de privação, somos pouco conscientes dos nossos limites.

No meio do caos, sentimos a dor de uma despedida falhada, o estado de gratidão e a cordialidade entre um homem e um tigre, observando, ainda, uma inversão de papéis, como se o homem «se tornasse selvagem e o animal se humanizasse». Somos, então, muito mais semelhantes do que estamos dispostos a reconhecer - até sermos colocados à prova. Interligando física e metafísica, este romance, que é um testemunho astuto e espantoso, encerra em si uma mensagem preciosa de esperança.


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Ele tornou-se o meu professor preferido no Petit Séminaire e a razão que me levou a estudar zoologia na Universidade de Toronto. Sentia uma afinidade com ele. Foi para mim a primeira indicação de que os ateus são meus irmãos e irmãs de uma fé diferente, e cada palavra que eles dizem fala de fé. Tal como eu, vão até onde as pernas da razão os levem - e depois saltam» [p:44];

«Porque é que as pessoas se mudam? O que é que as faz desenraizarem-se e deixar tudo aquilo que conheciam por um grande desconhecido para lá do horizonte?» [p:90];

«Decidi que devia descobrir o que havia exactamente na arca do tesouro que estava à minha frente» [p:154].


Disponibilidade: Wook // Bertrand

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Comentários

  1. Já o li à uns anos e gostei desta muito original história, aproveito para desejar a continuação de uma boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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  2. Confesso-me preguiçosa :)) Mas tantos :))

    Bjos
    Votos de uma óptima Quinta - Feira

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  3. Eu nunca li o livro mas vi o filme pouco tempo depois de estrear no cinema e achei a história muito comovente! <3

    pimentamaisdoce.blogspot.pt

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  4. Não li, mas vi o filme! Depois de ver o filme não fiquei com vontade de ler, para ser sincera!

    Beijinhos

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  5. Não li o livro de Yann Martel "A Vida de Pi", mas vi o filme. EMOCIONANTE‼‼

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  6. Tenho de ler este livro ao meu filhote :)
    Beijinhos*

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  7. I haven't read the book but saw the movie"Life of Pi" and i loved that. books too seems interesting.
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  8. Vi o filme, mas ainda não li o livro. Tenho mesmo que ler.

    Beijinhos!

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    1. Embora não tenha ficado completamente rendida, é uma leitura que até se faz bem :)

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  9. Olha nem li o livro nem vi o filme, só li uma review num blog e agora no teu, parece me ser uma história interessante.
    Xoxo

    marisasclosetblog.com

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  10. Nunca li o livro, mas a julgar pelo filme, acredito que ainda tenha sido melhor.

    Beijinho | https://danielasilva-oficial.blogspot.com

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  11. Olha que não conhecia mesmo se não falas-se nele
    Beijinhos
    Novo post
    Tem post novos todos os dias

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  12. Antes de mais, parabéns pela foto. Muito boa.
    Acho que já li. Em qualquer caso é uma boa sugestão de leitura.
    Andreia, continuação de boa semana.
    Beijo.

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  13. Gostei muito de ver o filme e procurei ler o livro, mas, a verdade é que tive de desistir... foi, talvez até agora, o único livro que desisti de ler... os primeiros capítulos deixaram-me desesperado de aborrecido (sorry)

    Quanto a livros, a minha última visita a uma livraria foi na condição de não comprar nada até dar algum avanço aos últimos que adquiri... em todo o caso vejo-me cada vez mais interessado por textos um pouco mais "históricos".

    Beijinhos

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    1. A parte inicial é um pouco mais maçuda, o que pode não provocar uma identificação imediata com a história. Também me custou, confesso

      É incrível como vamos adaptando os nossos gostos :)

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  14. Tenho muita curiosidade em ler, mas ainda não tive a oportunidade!

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram

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  15. Vi o filme apenas e adorei! :D

    www.amarcadamarta.pt

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