LER É CONHECER //
EVENTOS HISTÓRICOS

Fotografia da minha autoria


«História de um desastre nuclear»


O mundo, tal como o conhecemos, é marcado por episódios inesquecíveis. Mas será que temos consciência de todos os seus contornos? Será que acompanhamos as suas verdadeiras implicações? Porque a maioria tem camadas muito mais profundas, que nem sempre convém serem desvendadas para a sociedade. Nesse sentido, resolvi tornar o tópico Eventos Históricos, para o projeto Ler é Conhecer, mais abrangente e ler a obra de Svetlana Alexievich, que aguardava a predisposição adequada.

Vozes de Chernobyl tem uma estrutura particular, uma vez que a autora prioriza os testemunhos sem os intercalar com as suas questões. No entanto, várias delas são percetíveis nas entrelinhas, até pela orientação do discurso. E esta dinâmica não só dá voz a quem de direito, como também nos envolve com outra proximidade. Porque as partilhas são chocantes. Angustiantes. Um autêntico murro no estômago, sobretudo, quando nos inteiramos do sofrimento, das consequências, da negligência que afetou demasiadas vidas. Este desastre nuclear, como vimos a confirmar pelo avançar da leitura, divide-se em duas catástrofes: «a cósmica», que engloba o massivo acidente, e a social, referente ao colapso da União Soviética. A simbiose destas forças sombrias resulta da falta de condições de segurança, da incompetência das autoridades comunistas e da quantidade de factos omitidos, que poderiam ter possibilitado um destino diferente, caso existisse transparência. Por oposição, propagou-se uma contaminação radioativa grave, que desencadeou uma série de doenças oncológicas, atrasos mentais - em crianças -, mutações genéticas e perturbações neurológicas. Além disso, resistiu o medo. E, claro, a instabilidade.

A realidade descrita espelha as perdas infindáveis, a revolta, o luto, o desalento, a falta de fé e a tentativa de encontrar culpados. Por isso, enquanto ia conhecendo as várias histórias, senti o peito a comprimir, atendendo a que é notório o quanto a existência destas pessoas - e não só - foram reduzidas a zero - talvez, até menos. E é tão doloroso perceber o poder do egocentrismo, da precariedade, da falta de escrúpulos. Porque há sempre quem esteja a quebrar os limites da moralidade para alcançar determinados objetivos, nem que isso implique mortes e um futuro, completamente, incerto. E inseguro. Através destas conversas, que nos chegam como monólogos, refletimos sobre a condição humana, sobre o resultado da desinformação, sobre as guerras invisíveis e silenciosas e sobre a crueldade. Em simultâneo, é impressionante como há quem tenha discernimento para ultrapassar a desgraça, preferindo plantar amor. E humor. Mesmo no meio do caos, somos agraciados com passagens que nos serenam e transmitem esperança.

Este livro cede espaço a elementos de diferentes ambientes, desde anónimos a participantes diretos e familiares, porque todos sentiram este desastre na pele. E, mais do que conter respostas, alerta-nos para as repercussões que afetaram o desenvolvimento de uma nação inteira. Embora seja um enredo bastante duro, tem um traço viciante, pois tentamos compreender o quanto o mundo mudou depois de Chernobyl; tentamos compreender toda a manipulação, o crime inerente e qual o significado de fazer parte de uma luta patriótica. Numa constante dicotomia entre a lembrança e o esquecimento, a mensagem desarma-nos. Porque conseguimos ser tão pequeninos perante um sistema corrompido.

Vozes de Chernobyl mostra-nos as vivências. Os atos de coragem. A resistência. Não sinto que seja uma obra para chocar, mas, sim, para tornar tudo evidente. E é por essa razão que pode incomodar, ainda para mais, por se centrar num erro que condenou tantos inocentes. Com muita mágoa, mas coragem também, a eloquência entre as palavras e o silêncio faz com que os testemunhos assumam outro impacto. E, portanto, não deixa de ser uma homenagem a todos os sobreviventes.


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Não me lembro da viagem... A viagem escapou-me novamente da memória...» [p:28];

«Serei culpada por querer ser feliz?» [p:141];

«Temos sempre vivido em ambiente de horror, sabemos viver em ambiente horror, é o nosso habitat. Quanto a isto, o nosso povo não tem igual...» [p:207];

«O mundo inteiro encontrava uma desculpa qualquer. Uma explicação. Fiz essa experiência comigo mesma... E, de modo geral, percebi que na vida as coisas terríveis acontecem de maneira impercetível e natural» [p:236];

«Eu sou a pessoa a quem falta instinto de autopreservação. É normal porque está fortemente desenvolvido o sentido do dever. Havia muita gente assim, não era só eu» [p:276];


Disponibilidade: Wook | Bertrand

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Comentários

  1. Parece-me ser uma excelente leitura, obrigada pela partilha.

    Beijinho grande!

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  2. Este livro é um principio para perceber muitas coisas sobre esta grande catástrofe...

    Beijos e abraços.
    Sandra C.
    Bluestrass

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    1. Abre-nos a porta de um desastre do qual, afinal, conhecemos tão pouco!

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  3. A escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Aleksandrovna Aleksiévitch foi galardoada com o Nobel de Literatura de 2015, altura em que li esse "monumento ao sofrimento".

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    1. É uma obra de arte dura, mas absolutamente fascinante! E a escrita da autora conquistou-me por completo

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  4. É essencial estudar o passado para não repetirmos os mesmos erros no futuro mas, por mais que se leia ou se estude, nunca vamos compreender verdadeiramente o que aconteceu. Nunca, espero eu, vamos conhecer o horror constante de um campo de concentração, por exemplo. Uma coisa é ler e imaginar outra, verdadeiramente diferente, é senti-lo na pele. Essas pessoas para mim são verdadeiros heróis e por elas que acho que episódios assim, tal como Chernobyl, nunca devem ser esquecidos.

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    1. Acredito muito nisso!
      Podemoss vir a conhecer todos os detalhes de um determinado acontecimento, mas faltar-nos-á sempre uma parte, porque não o vivemos. Porque não sentimos na pele as suas consequências. Mesmo que nos sensibilizemos pelo horror destas pessoas e o respeitemos, a verdade é que a sua verdade não nos corre no sangue. Porque estamos distantes e, até, seguros.
      Assino por baixo

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  5. O assunto é convidativo.
    Porque a verdade foi muito pior que a mentira que nos tentaram impingir...
    Um livro interessante.
    Continuação de boa semana, querida amiga Andreia.
    Beijo.

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    1. Sem dúvida, Jaime! A verdade é ainda mais angustiante.

      Obrigada e igualmente

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  6. Esse livro deve ter uma historia bastante interessante, ainda não conhecia
    Beijinhos
    Novo post
    Tem post novos todos os dias

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    1. São testemunhos que nos apertam o coração, mas vale muito a pena ler

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  7. Comprei este livro em Fevereiro de forma a assinalar um conquista positiva na minha vida. Ainda não o li porque quero distanciar-me um pouco da série que vi o ano passado. Pela tua opinião, irei encontrar aquilo que estou à espera: relatos duros de quem viveu uma tragédia na primeira pessoa.
    Eu fiquei muito impressionada com a série. Talvez ainda pegue no livro este ano.
    Beijinhos

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    1. A série ainda não tive a oportunidade de ver, porque quis começar primeiro pelo livro. E, bem, que descoberta alucinante.
      Sim, é verdade, há relatos extremamente duros, que nos inquietam, mas também há amor e uma forma bonita de olhar a vida.

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  8. Quero muito ler :)
    Muito obrigada por partilhares este excelente review :)

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    1. Quando tiveres oportunidade, aconselho, minha querida!
      Eu é que agradeço <3

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  9. Imagino que seja um livro fascinante de ler.
    .
    Abraço

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  10. Nunca o li, mas parece-me uma obra intensa, dado o tema e a realidade para nós não tão conhecida!

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    1. Sim, bastante! Alarga-nos completamente o horizonte, mostrando-nos que, afinal, sabemos tão pouco

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  11. É um livro que quero ler, ainda mais depois de ter visto a série da HBO, mas sei que preciso de uma disposição diferente porque vai ser duro.


    A Sofia World

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    1. Sim, sem dúvida, precisamos de estar com a disposição certa, para conseguirmos gerir todas as partilhas. Mas vale muito a pena! Eu ando a ganhar coragem para ver a série

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