STORYTELLER DICE // ÓCULOS, O PALHAÇO ZANGADO
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Fotografia da minha autoria
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«Num mundo de faz de contar»
A manhã acordava com sol, mas dentro de casa do palhaço Óculos estava sempre a chover. Porque não havia um único dia em que ele não se levantasse irritado, sempre a reclamar com tudo. E ninguém conseguia descobrir a razão da sua má disposição. Talvez nem ele soubesse qual era, porque, ao que parece, sempre foi assim. Quer dizer, desde que se começou a vestir de palhaço: uma profissão herdada, mas não desejada.
Na sua família, desde o seu tetravô, todos vestiam um fato colorido e uma peruca farfalhuda, com muitos truques na algibeira, para encantar ruas, circos, feiras, festas populares, aniversários e tantos outros eventos onde fossem necessários. Além disso, os seus nomes eram escolhidos a partir de alguma característica que os distinguisse. Enquanto a maioria dos colegas procurava alcunhas cómicas, os Rabelos marcavam pela simplicidade. E o caçula, por usar óculos, tinha o destino completamente traçado. Ficou Óculos. Mais tarde, passaram a acrescentar, como piada interna, «Óculos, o palhaço zangado». O que só servia para o deixar mais furioso. Inseguro. E distante do seu grupo.
Para grande surpresa de todos, era ótimo nos seus espetáculos. E, por instantes, nem parecia tão infeliz atrás de todas aquelas pinturas. Porém, assim que abandonava a festa, voltava ao seu ar fechado. Ninguém compreenderia a sua dor, por isso, aprendeu a calá-la. Até ao dia em que, ao desfazer a personagem, foi abordado pelo pequeno Tomás.
- Senhor Palhaço, porque está tão zangado?
- Não estou!
- Está, sim. Porque é que está tão zangado?
- Miúdo, vai aproveitar a tua festa. Já te respondi que não estou!
A resposta foi mais bruta do que era suposto e estava quase a pedir desculpa. Só que aquele menino de olhar gigante não deu parte fraca.
- Eu vou, mas não precisava de me mentir. Os meus pais castigam-me quando o faço, sabe? Os seus deveriam fazer o mesmo. Para aprender.
E virou-lhe costas, sem qualquer tentativa de amenizar o ambiente. Óculos ficou, então, sozinho. E começou a rir tanto, que achou que ficaria sem ar. Porque aquela amostra de gente - como gostava de chamar às crianças - colocou-o no lugar. E a sua inocência comoveu-o.
Quando estava a sair do local da festa, viu o seu pequeno acusador sozinho, a observar a animação do lado de fora. E aproximou-se dele.
- Porque é que te estás a esconder?
- Não estou escondido!
- A mim parece-me que estás. E os teus pais deviam castigar-te por mentires. Para aprenderes, sabes? - Óculos piscou-lhe o olho.
Ficaram em silêncio uns segundos, até que o rapaz continuou.
- Eu acho que estás zangado porque não querias estar aqui... E eu estou sozinho porque também já não me apetece muito estar na festa.
- Talvez tenhas razão.
- Talvez.
- Porque é que já não queres estar na festa?
- Porque não sou o miúdo mais conversador. Porque, agora, queria estar no meu quarto a ler. E porque os meus pais insistem que eu tenho que interagir e ser mais como todos os rapazes da minha idade.
- Isso não me parece muito justo.
- Pois não, mas sei que não o fazem por mal. Por isso, faço o esforço para não os preocupar, até porque não quero que sejam conhecidos como os pais do miúdo esquisito. Somos novos na rua e não seria agradável.
- Já lhes disseste isso?
- Tentei, mas não iam perceber.
- Se lhes explicasses, se calhar, eles entendiam.
- Como tu fizeste? Por isso é que continuas a ser o senhor palhaço...
- Para um rapaz pouco conversador, tens muitas opiniões - e riu-se, para, depois, continuar -. Eu venho de uma família de palhaços profissionais. Seria quase uma desonra não seguir as suas pegadas.
- Não é pior fazeres algo que não gostas?
- Talvez... Não sei... É complicado.
A conversa foi interrompida, quando o pai do Tomás o chamou.
- Bem, parece que eu já consegui o que queria.
- Aproveita a liberdade.
- Quando é que vais fazer o mesmo?
Sem aviso, abraçou-o e foi embora a correr. Aquele miúdo era especial. E deu-lhe uma das maiores lições da sua vida. Portanto, naquele mesmo dia, reuniu a família e anunciou-lhes que não voltaria a vestir o seu fato. Pela primeira vez, abriu o coração, sentindo-se livre. Inteiro.
O Óculos ficou no baú. Mas o Rui tornou-se contador de historias. Porque não há nada mais bonito do que ajudar alguém a sonhar.
Se há pessoas que nasceram para a escrita, tu és uma delas Andreia! Espero ver-te ir longe no mundo da escrita!
ResponderEliminarIsabel Sá
Brilhos da Moda
Oh, Isa, muito, muito obrigada! Quanta ternura nessas palavras *-*
EliminarAdorei🥰 Revi-me a mim e ao meu Louis no menino, pois também eu só estava bem no meu mundo, dos livros e do faz-de-conta, e o Louis vai pelo mesmo caminho 💙 Já tenho história para lhe ler logo à noite 💫✨ Muito Obrigada minha querida 😘
ResponderEliminarÉ um mundo maravilhoso, que nos aconchega sempre *-*
EliminarAww, que maravilha. Muito obrigada, minha querida
Uma bela estória, gostei bastante.
ResponderEliminarUm abraço e boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Muito obrigada, Francisco!
EliminarBoa semana :)
A liberdade da escolha é o tema deste conto delicioso.
ResponderEliminarCertíssimo :) e como ela é tão importante!
EliminarBem... Fiquei colada a ler. Adorei adore adorei a história. Que lição de vida. De facto devemos sempre fazer aquilo que nos faz feliz, que nos completa e não aquilo que muitas vezes a família gostaria que fizéssemos.
ResponderEliminarBeijinho grande :*
Assim fico sem palavras! Muito, muito obrigada, minha querida *-*
EliminarHá alturas em que parece que temos de viver sonhos que não são nossos e isso não é saudável. Para nenhuma das partes
Estória que bem podia ser real que gostei muito de ler.
ResponderEliminar.
Abraço
Saudações poéticas
Feliz ou infelizmente, há muitos Gonçalos espalhados por aí
EliminarQuando sai um livro teu? Como é possivel ainda não teres um, porque tu tens um talento que não há mesmo palavras
ResponderEliminarBeijinhos
Novo post
Tem post novos todos os dias
Tão querida! Muito, muito obrigada, Sofia *-*
EliminarHá-de acontecer e partilharei tudo convosco
Há tanta sabedoria na voz das crianças. <3
ResponderEliminarBelo texto.
Beijinhos
Há mesmo! São inspiradoras *-*
EliminarMuito obrigada
Andreia, és excelente a escrever histórias, acredito que também a contá-las.
ResponderEliminarAcho que me safo melhor a escrever :p muito obrigada, Magui!
EliminarQue história tão bonita, adorei <3
ResponderEliminarMuito obrigada *-*
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