STORYTELLER DICE //
COMO QUEM CONTA UM CONTO

Fotografia da minha autoria


«Nós vivemos dentro de um conto»


A mesa do escritório é o meu caos. É a paz calculada na escuridão que habita os meus pensamentos. E, todos os dias, envolvo-me no mesmo processo: tirar um café bem cheio - e forte -, para ir bebericando, enquanto preencho folhas banais em branco. Quando pego no lápis, pois é a única maneira de sentir a essência das palavras, nada mais tem peso. E, num traço desenfreado, rabisco histórias que, certamente, nunca verão a luz da ribalta. Pois isto não é um sonho. É uma catarse.

Escrevo pela pressão de libertar certos fantasmas. E paro assim que sinto a mão enfraquecida e o olhar a lacrimejar de cansaço. No último ponto final, reúno as folhas - e as falhas -, rasgando-as com veemência. Uma vez que nesta casa, nesta divisão neutra, não há espaço para acolher as minhas sombras. Estendo-lhes a passadeira no papel, enganando-as com um pouco de ego, para logo as desfazer em mil pedaços. Não suporto a ideia de que durem mais tempo do que o necessário, para não regredir na estabilidade emocional que conquistei - e foi tão difícil chegar aqui. Portanto, evoco estas memórias, apenas para provar que sou eu que tenho a última palavra. E, até hoje, só há um fragmento que preservo na primeira gaveta da escrivaninha.

«Há um tempo em que o tempo não me dói
Num dormente estado de alma 
Estou vazia na tua ausência 
Tu que viveste dentro de mim 
Mesmo sabendo que nunca te tive 
E é neste delírio que me decomponho 
Num lento cerrar de fé 
Desenhando um nariz de batata 
E lábios cor de amor 
E um olhar pequenino e terno 
Para, de repente, acordar 
Porque neste meu peito de não mãe 
Tu perdeste-te em mim»

Há sempre algo que me faz questionar a razão que me leva a manter este pedaço de poesia, que, ainda para mais, nem sequer representa o melhor do meu trabalho. É como se procurasse viver no limite da sanidade, insistindo em deixar aberta a minha pior ferida. Mas acredito que, tal como a escrita, o nosso coração rege-se por leis próprias, nem sempre decifráveis. Por isso, tenho aprendido a gerir esta inconstância. Esta falta de transparência. E, se me pesar, posso sempre optar por fechar a gaveta, ignorando a sua existência - porque ainda magoa. Muito!

O café esfriou. Perdi a noção das horas, porém, sei que o sol já não brilha. Agrupo o que escrevi e retiro toda a importância do seu conteúdo. Reorganizo a mesa e coloco o lápis no organizador. É tempo de retomar a vida fora deste lugar. Assim, bato a porta. E despeço-me em silêncio. Exatamente como se alimentasse um ritual inquebrável. Um juramento de fidelidade. E viro costas, pronta para descer as escadas.

Mais ninguém conhece esta divisão. Só eu. Porque garanti que assim o fosse. E, entretanto, acho que já desistiram de procurar descobrir para onde fujo, porque perceberam que esta é a minha única cura.

«Regressei, como sempre, no dia seguinte. A porta entreaberta sobressaltou-me. E lá dentro vi o fim...»

Comentários

  1. Respostas
    1. Que bom que é ter esse retorno!
      Obrigada e igualmente, Francisco

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  2. Adorei *.*. Estava a ler e a rever tudo ao pormenor.

    Beijinho grande, minha querida.

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  3. Bom dia:- Todos nós somos um livro: Uns, livro aberto. Outros, livro fechado. Resta saber qual deles é o mais interessante de ler.
    .
    Cumprimentos

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    1. É bem verdade! Será que algum dia teremos uma resposta definitiva?

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  4. Como eu queria escrever e reflectir como tu! Adoro!

    https://blogda-joana.blogspot.com/

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  5. Oh, uau. Identifiquei-me imenso! Para mim é o meu texto favorito desta rubrica. 😍

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  6. Lindo! E é assim, que te imagino no teu mundo minha querida 🧡
    Beijinhos*

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  7. As tuas palavras seguem um ritmo tão bonito que é impossível não imaginar o que escrever, é como se estivesse a sentir e a ver tudo a acontecer ao pormenor.
    Incrível ❤

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    1. As tuas palavras são sempre generosas! Muito obrigada, minha querida ❤

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  8. Adorei a tua escrita, como sempre!
    E que bom que é ter um cantinho assim :)

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  9. Bom dia de semana pascal, querida amiga Andréa!
    Muito bom manter seu espaço poético, pois, no mundo caótico, precisamos desopilar pelas vias poéticas para dar um tom e sabor aos dias
    Palavras nos viram... É catarse!
    Tenha dias abençoados!
    Bjm carinhoso e pascal

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    1. Obrigada e igualmente, Roselia!
      Sem dúvida, é mesmo uma catarse :)

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  10. Como não gostar, acho que todos nós temos algo dentro de nós que é como se fosse um livro
    Beijinhos
    Novo post
    Tem post novos todos os dias

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  11. Ah que lindo um ótimo fim de semana pra todos nós ! Beijos

    Segredosdamarii.blogspot.com

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  12. Todos nós temos um livro da vida, tu mais uma vez não me surpreendes. Linda história Andreia.
    Beijinho linda.

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    1. Sem dúvida, até porque há histórias que quase nos definem!
      Beijinho grande, minha querida

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