Entre Margens

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A banda sonora de uma viagem literária


A playlist das leituras de agosto, creio, é bastante introspetiva. Embora traga alguns ritmos que possam induzir o contrário, apela a um lado mais emocional. Se calhar, não acompanha a leveza que associo a este mês, mas, por outro lado, fez-me viajar bastante sem sair do lugar.


desvio, ana pessoa & bernardo p. carvalho
Desavindos, Deolinda & Foge Foge Bandido ▫️ «Quase nem reparo em ti/Ocupada como eu ando/Com as minhas coisas/Que vou adiando» começa por cantar Ana Bacalhau. Mas, na novela gráfica de Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho, o protagonista repara em tudo: principalmente, nas suas coisas, naquilo que esperam dele, no futuro que é tão turvo. Depois, Manel Cruz canta «Dou-me por certo e logo vejo/E ser mesmo o que eu quero», mas Miguel ainda não sabe quem quer ser. Não obstante, numa narrativa tão cheia de contraste, com um ritmo mais lento pela necessidade de descobrir a sua identidade, achei que o tema que une os Deolinda e os Foge Foge Bandido seria a banda sonora ideal: pelo tom melancólico e pela necessidade de tentar outra vez, de contar outras histórias.

a rapariga nas garras da águia, karin smirnoff
Wicked Little Monster, Veda ▫️ O facto de não me ter envolvido tanto com o enredo pode ter condicionado a procura pela música ideal. Então, optei por um caminho alternativo e concentrei-me numa das personagens mais memoráveis da ficção: Lisbeth Salander. Ao percorrer uma playlist inspirada nela, pus Wicked Litter Monster a tocar por acaso e a conexão foi imediata, porque a melodia consegue ser, em simultâneo, sombria e sedutora e porque a letra espelha traços da sua personalidade, que ainda se confronta com demónios do passado, que ainda mantém em equilíbrio uma espécie de jogo pela sobrevivência. Salander consegue despertar o melhor e o pior, sempre com um objetivo de fundo.

quero voar, kachisou
Andorinhas, Ana Moura ▫️ A melodia desta canção talvez não seja a mais indicada para o tom da narrativa, mas a letra serve-lhe na perfeição, porque Kyle queria «tirar os pés do chão», queria «voar daqui p'ra fora e ir embora de avião». O protagonista queria ser livre, «soltar as asas» e desbravar o seu caminho tendo em conta a sua vontade e não a imposição de terceiros. E esta música grita tudo isso.

querido edward, ann napolitano
Hold On, Lizzy McAlpine ▫️ Desenvolvi o hábito de procurar no Spotify uma playlist inspirada no livro que começarei a ler, sobretudo se for de um autor estrangeiro (a probabilidade de acontecer é bem maior), uma vez que me ajuda a concentrar e a envolver com a narrativa. Ao encontrar uma para a série Dear Edward (baseada no livro de Ann Napolitano), fui logo conquistada pelo primeiro tema. Conforme fui avançando na leitura, senti que os seus versos estavam a descrever o protagonista e algumas das suas relações, portanto, Hold On foi a escolha final.

sr. salário, sally rooney
Got Weird, Dodie ▫️ A associação a este tema foi muito rápida: primeiro, porque as personagens têm coisas a resolver entre si; segundo, porque acho que há um receio implícito de que as coisas fiquem estranhas, caso tomem certas decisões. Além disso, achei que o ritmo tinha o seu quê de sedutor, acompanhando muito bem a interação entre Sukie e Nathan.

expectus luna - esperando a lua, ana rita areias
Teima, Pikika ▫️ Ocorreu-me logo esta canção, pela noção de uma vida efémera, pelo amor que fica à espera, pela despedida, pela importância de curar as feridas, mesmo que esse processo demore. O livro da Ana não se foca só nas relações que ficam em suspenso, mas também há espaço para essa temática. Além disso, sinto que a letra da Pikika pode ser facilmente adaptada a outros contextos. Às vezes, temos só de seguir. E os versos «Mas foi sozinha que eu plantei as minhas lágrimas e as colhi/Esta estrada só tem um sentido ainda que eu não seja boa a conduzi-lo» espelham a energia que também encontramos nesta obra poética.

torto arado, itamar vieira junior
Torto Arado, Rubel, Liniker & Luedji Luna ▫️ Ainda nem estava perto de iniciar a leitura e já sabia qual a música que lhe ia associar, isto porque o Joana da Silva falou nela no discord do Livra-te. Fiz questão de só a ouvir depois de terminar a leitura e, sem qualquer dúvida, a escolha tinha de ser esta, porque cada verso transporta-nos para a história, para a fazenda, para a relação daquelas duas irmãs, para as desigualdades, para as memórias que só aquela terra pode guardar.

as telefones, djaimilia pereira de almeida
Amazing Grace, Aretha Franklin ▫️ A civilização evolui, temos acesso a novas ferramentas de comunicação e é fascinante aquilo que se consegue fazer em simultâneo. É num destes momentos de constatação que uma das personagens refere algo como «ouvir-te cantar o Amazing Grace, ao mesmo tempo que te escrevo na varanda até sair de casa», por isso, achei que seria um bom tema para embalar esta leitura: pela referência e por apelar a algo partilhado entre mãe e filha.

portugal em ruínas, gastão de brito e silva
Terra Ardida, Diabo na Cruz ▫️ Escolhi este tema pela sensação de destruição, pelo golpe duro que é ver o património a ruir. Neste «salve-se quem puder», vai-se perdendo parte da nossa identidade. Mesmo que a letra se foque em coisas completamente distintas do que é abordado no livro, acho que há versos que poderiam ser uma ponte entre ambas.

tudo o que sei sobre o amor, dolly alderton
All I Want, Joni Mitchell ▫️ A vida da autora, sobretudo durante a adolescência e os «vintes», deu imensas voltas, mas a amiga Farly esteve sempre presente. Como acho que este livro é mais sobre o amor presente nas amizades, quis associar um tema que representasse ambas ou que estivesse, de alguma forma, ligado à sua história. Num dos textos, Dolly Alderton refere o álbum Blue, de Joni Mitchell, que as acompanhou durante um verão, e confidenciou que All I Want era a sua canção favorita - ao ler a letra, acho que consigo compreender o porquê. Sinto que elas revelam o melhor uma da outra, portanto, não me fazia sentido mais nenhuma música.

segredo mortal, bruno m. franco
Pontas Soltas, Souls Of Fire & Dubi ▫️ Leonardo Rosa, um dos protagonistas deste livro, detestava pontas soltas. Por esse motivo, lembrei-me deste tema dos Souls Of Fire. Acho que a letra não encaixa em pleno, ainda assim, como o enredo deu «voltas e voltas», decidi avançar com esta associação.

o meu treinador, joana bértholo
Passive Aggressive, Placebo ▫️ A música citada foi uma fonte de motivação para Joana Bértholo, enquanto atleta de alta competição, e um dos seus versos funcionava como piada interna entre ela e o treinador. Portanto, só me fazia sentido fazer esta combinação. Além disso, sinto que o desporto consegue ter esta energia passivo-agressiva, encaixando no título da canção e, até, na melodia.

esquerda e direita: guia histórico para o século xxi, rui tavares
Inquietação, José Mário Branco ▫️ Há sempre qualquer coisa que está para acontecer, como cantou o músico portuense, e o debate que questiona a pertinência de termos como esquerda e direita, no plano político, potenciam esse prenúncio. Além disso, como sinto que esta obra nos impulsa a fazer «tantas perguntas», nos mostra que ainda há muita coisa que nos falta perceber e dá voz a algumas das nossas inquietações - pelo passado não tão longínquo e por um futuro incerto - decidi escolher este tema.

giz, gisela casimiro
Giz, Legião Urbana ▫️ Optei por esta música porque, tal como aquilo que a autora faz na sua poesia e na sua prosa, há uma descrição de algo muito credível, há um desenlaçar de uma realidade que podia pertencer ao quotidiano de qualquer um de nós. Além disso, o giz transmite a ideia de recomeçar e de refazer, algo que senti nas duas componentes artísticas. Por fim, o verso «acho que estou gostando de alguém» transportou-me para coisas que Gisela Casimiro foi escrevendo ao longo do livro.

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Gatilhos: Violência, Escravatura, Racismo, Morte, Luto; Linguagem Explícita


O primeiro livro de Itamar Vieira Júnior esteve anos na minha lista de desejos. Tantos que achei que, se calhar, nunca o descobriria, embora todas as críticas maravilhosas me aguçassem a vontade. Foi preciso ser uma das escolhas do Livra-te, para agosto, para que esse encontro se proporcionasse.


 uma forte presença feminina

Torto Arado leva-nos até Sertão da Bahia, para conhecermos a história de Bibiana e Belonísia: irmãs, filhas de trabalhadores da fazenda e descendentes de escravos. Esta herança desumana perdurou não só na família delas, como também no território brasileiro. Ainda assim, Bibiana e Belonísia pareciam ver para além dessas restrições, alimentando a curiosidade própria de uma criança. Sempre juntas, há um dia em que o atrevimento de ambas muda as suas vidas para sempre, entrelaçando com mais força os laços que as uniam. Ou será que sofreram uma reviravolta inesperada?

A escrita é muito bonita, com uma cadência que nos embala e que quase nos faz acreditar que é uma história leve. Porém, está longe de o ser, até porque traz várias reflexões sobre escravatura, submissão e desigualdades sociais e de género; traz reflexões sobre (a ausência de) liberdade, sentido de comunidade e laços familiares. Através de um conjunto de personagens carismático, o autor traçou um retrato de uma vida dedicada à terra, enquanto foi dando voz a todos aqueles que foram (e permanecem) silenciados.

A realidade da roça de Água Negra era dura, mas o mais impressionante era que ninguém desistia. No meio da pobreza, das tormentas e da ganância dos proprietários, agarraram-se ao que lhes trazia alento: a religião, que, aliás, tem um peso bastante significativo para estas pessoas, sendo norte no meio do caos, sendo paz e caminho. Talvez por isso tenham encontrado razões para lutar, talvez por isso acabemos por encontrar uma ramificação destas irmãs, que trouxeram perspetivas distintas para o futuro da população, ainda que se mantivessem alicerçadas aos mesmos valores.

«Sem a comunicação era como se nos silenciássemos mutuamente. Era silenciar o que tínhamos de mais íntimo entre nós»

Confesso, no entanto, que esta narrativa não funcionou muito bem comigo, por um lado, porque achei as três partes um pouco desiguais, desequilibradas na envolvência e na emotividade (a minha favorita foi a segunda, sem dúvida) e, por outro, porque me parece que a falta de conhecimento prévio sobre o Jarê - «religião de matriz africana com ritos e símbolos do Candomblé, da Umbanda Omolocô e do Catolicismo» - pode condicionar a nossa interpretação dos acontecimentos e criar um certo afastamento. Percebemos a importância, mas será que percebemos todas as implicações? Reconheço, também, que posso ter feito uma má gestão de expectativas, mas estava à espera de uma história mais impactante.

Torto Arado não foi tudo o que esperei, mas não posso deixar de destacar a figura de Zeca Chapéu Grande, nem a dinâmica daquela família, que, apesar de algumas revezes, funcionou sempre como um todo e por um bem maior. Com um texto rico sensorialmente, há passagens que guardarei. Ademais, fiquei a pensar, graças a Bibiana e Belonísia, que é preciso coragem para ir, mas que também é preciso tê-la para ficar.


🎧 Música para acompanhar: Torto Arado, Rubel, Liniker & Luedji Luna


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Gatilhos: Violência, Pedofilia, Misoginia, Racismo; Linguagem Gráfica e Explícita


O mundo criado por Stieg Larsson revelou-se inesquecível, por esse motivo, faço sempre o exercício consciente para me esquecer que a Millennium é da sua autoria. Se já não acho muito justo comparar obras do mesmo artista, menos sensato me parece comparar obras de autores diferentes, até porque cada um terá a sua voz e a sua visão deste universo. No volume mais recente, fui descobrir a proposta de Karin Smirnoff para o desenrolar da saga.


 violência, corrupção e energias renováveis

A Rapariga nas Garras da Águia leva-nos até ao extremo norte da Suécia por três razões: 1) os recursos naturais inexplorados são um chamariz de negócio; 2) Lisbeth Salander chega a Gasskas porque foi nomeada tutora da sobrinha, Slava; 3) Mikael Blomkvist vai casar a filha com um dos políticos mais influentes da região. O interessante será perceber como os vários cenários se cruzarão.

O plano político volta a assumir um papel preponderante, atendendo a que influencia uma série de relações pessoais e profissionais. Além disso, colocando a tónica na exploração de energias renováveis, mostra-nos como a sociedade pode ser dividida e como uma única decisão compromete todo o sistema. Num contexto como este, rapidamente compreendemos o que está em jogo e quanto valem os direitos humanos.

Em simultâneo, somos transportados para múltiplos ambientes familiares conturbados, com questões do passado pendentes e várias áreas cinzentas, situações de violência, criminalidade e manipulação. Na pequena vila sueca, sopram ventos de mudança, mas até que ponto? Serão todas vantajosas ou só trarão mais sofrimento?

«Porque é que a vida nunca nos deixa simplesmente em paz? Vá para onde for, seja qual for o rumo que toma, aquela parte do seu passado vem sempre ter com ela»

Este volume tem uma premissa interessante, focada em temas bastante atuais (como as mudanças dos meios de comunicação, por exemplo) e uma nova personagem carismática, que gostava de ver construída com outra profundidade e coerência. Contudo, não consegui reconhecer a Lisbeth, nem o Mikael, nem aquela energia obscura que, para mim, é uma das imagens da saga. Há episódios de extrema violência, que nos confrontam com a malvadez do ser humano, só que torna-se tudo demasiado disperso e célere, condicionando a envolvência com o enredo.

A Rapariga nas Garras da Águia permitiu-me regressar a um universo que adoro, mas a verdade é que me faltou algo, faltou-me aquele estado de quase apneia que me faz querer ler tudo de seguida. Sei que voltarei à Millennium, caso surjam novos volumes (pela forma como este termina, creio que acontecerá), mas o coração já não salta uma batida conforme vou avançando na leitura - e sinto mesmo falta disso.


🎧 Música para acompanhar: Wicked Little Monster, Veda

📖 Outros livros lidos da saga: Os Homens que Odeiam as Mulheres | A Rapariga que Sonhava com uma Lata de Gasolina e um Fósforo | A Rapariga no Palácio das Correntes de Ar | A Rapariga Apanhada na Teia de Aranha | O Homem que Perseguia a sua Sombra | A Rapariga que Viveu duas Vezes


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Gatilhos: Violência Física e Sexual, Homicídio, Misoginia, Linguagem Gráfica e Explícita


O fenómeno das redes sociais é tanto que, ao seguirmos criadores de conteúdo literário, podemos ser influenciados a aumentarmos as nossas listas de livros por ler. Uma vez que estou sempre disposta a descobrir novos autores portugueses e que a obra de estreia do Bruno M. Franco foi aparecendo em algumas das páginas que acompanho, acabei por o incluir como autor do Alma Lusitana, na edição de 2024. Estava, portanto, bastante entusiasmada, porém, a experiência não foi positiva.


um projeto secreto, um assassino contratado e um homem acusado por crimes que não cometeu

Segredo Mortal é um policial que cobre três frentes: um projeto secreto, um assassino contratado e um homem acusado de crimes que não cometeu. Para contextualizar um pouco mais, na véspera de Natal, ocorreu uma catástrofe em Lisboa. Mais tarde, é encontrado um puzzle humano numa praia, um jovem tenta provar a sua inocência e começa a compor-se o perfil de um perigoso assassino. Estará tudo interligado?

A premissa intrigou-me e fui anotando algumas questões sobre comportamentos que me pareceram suspeitos. Além disso, senti mesmo que esta pluralidade de cenários seria promissora: por um lado, porque acrescentaria ritmo à ação e, por outro, porque levaria o leitor a conjeturar, a traçar vários percursos e, na melhor das hipóteses, a fazer parte desta grande conspiração. No entanto, este livro não funcionou comigo.

O primeiro aspeto a deixar-me reticente foram os diálogos, porque nem sempre me pareceram credíveis e adequados à situação/à personagem. Depois, houve partes que achei que não acrescentavam muito à história, tornando-a repetitiva. Ademais, a dado momento, senti que estavam a surgir coincidências inverosímeis. Claro que sendo uma obra de ficção, num género que também necessita de uma certa extrapolação, não me incomoda que não represente a realidade tal como ela poderia ser, caso todas estas situações saíssem do papel, mas, enquanto leitora, gosto de sentir que até o cenário mais surreal consegue ser fidedigno, fazendo-nos acreditar no que estamos a ler, e existiram várias alturas em que isso me faltou, distanciando-me do enredo. Ainda assim, aquilo que mais me incomodou foi mesmo a construção das personagens.

«No fundo da sua mente, um plano começou a ganhar forma. A sua estratégia, apesar de drástica, poderia ser a sua salvação»

As figuras femininas foram sempre retratadas de um modo inferior, como se fossem menos capazes, muito mais emocionais e menos preparadas para lidarem com situações nefastas, ainda que ocupassem cargos importantes e/ou de chefia. Não quero entrar em detalhes, para não comprometer a história, mas fica sempre a sensação que só as figuras masculinas é que são dotadas de destreza, sentido crítico e coragem. Por outro lado, existe uma objetificação constante do corpo da mulher, que só serve para perpetuar estereótipos (não só em relação à mulher, mas também em relação ao homem). Eu compreenderia esta construção se o propósito fosse retratar um ambiente misógino, não sendo, pareceu-me apenas gratuita e, confesso, confrangedora.

Sou muito fã da expressão «mostra, não digas», porque acredito que a leitura se torna mais cativante se depreendermos as coisas pelas atitudes dos protagonistas. E esse foi outro aspeto que também me falhou neste livro, uma vez que é tudo detalhado. A base é curiosa, no entanto, peca pelo excesso e pela falta de equilíbrio entre as três frentes que sustentam o policial. E esse talvez possa ter sido outro dos problemas deste enredo, para mim: haver tanta coisa para alimentar, o que fez com que certos acontecimentos ficassem em segundo plano e tivessem desenvolvimentos superficiais.

Escrever este texto deixou-me incomodada, porque percebi que não tinha algo de bom para partilhar e queria muito ter gostado. Além disso, deixou-me triste porque tinha tudo para ser surpreendente. A escrita pode melhorar? Claro que sim! Mas estavam aqui vários ingredientes para nos deixarem em suspenso. Segredo Mortal precisava de ser polido e de ter um foco mais maduro, para não seguir o caminho mais fácil.


🎧 Música para acompanhar: Pontas Soltas, Souls Of Fire & Dubi


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Gatilhos: Morte, Luto; Referência a Aborto e Abandono


O reencontro com Ann Napolitano estava para breve, apenas dependente da tradução do seu primeiro livro. Quando vi que seria uma das escolhas do Livra-te, para agosto, tudo se alinhou.


 libertarmo-nos das nossas tragédias

Querido Edward conta-nos a história de Edward Adler, de 12 anos, que foi o único sobrevivente de um acidente de avião. O voo com destino a Los Angeles transportava 183 passageiros, para além da família do protagonista - os pais e o irmão mais velho. Perante semelhante tragédia, é acolhido pelos tios e a pergunta que salta logo do peito é: e, agora, como é que se vive depois de se perder o mais importante?

As leituras para o clube são sempre dividas por partes, para ser mais fácil de ir comentando e partilhando o nosso parecer. E a minha intenção era mesmo dosear, lendo apenas uma das partes por dia, mas não fui capaz de largar este enredo: não porque tenha um ritmo compulsivo, que nos deixa quase sem respirar, em permanente alvoroço, mas porque há um amadurecimento lento, constante, como se estivéssemos compenetrados a colar os cacos de um coração despedaçado, amplamente ferido, que não desistiu de procurar o seu lugar no mundo, ainda que esse lugar seja distante de tudo o que idealizou.

A forma como nos libertamos das nossas tragédias é sempre muito pessoal, mas acredito que, de uma forma mais ou menos consciente, exista uma estrutura que nos permita avançar ou recuar sem que nos sintamos desamparados. Nesta narrativa, verificamos isso e corroboramos que o processo de luto é moroso, com múltiplas áreas cinzentas. E, admito, chorei por causa de alguns detalhes, porque, para mim, foram uma demonstração tremenda de generosidade e de amor.

«Os homens esvaziaram o camião no parque de estacionamento, depositando todas as caixas no asfalto. Abriram uma identificada como quarto do Eddie. Retiraram o elefante de peluche da caixa e enviaram-no para o hospital de Denver (...)»

Ann Napolitano, inspirando-se em dois acidentes de aviação, construiu uma história exímia, com uma estrutura que me parece resultar muito bem, até porque a alternância temporal permite conhecer um conjunto de personagens fascinantes, em vez de ficarem reduzidas a números. Além disso, com uma escrita sensível e melancólica, não camufla emoções. Ninguém imaginava o que ia acontecer e acabamos a viver diferentes perspetivas.

Querido Edward é um longo processo de descoberta, que nos mostra que há sempre algo que se quebra e que não pode permanecer igual - mas não tem de ser o fim. Explorando o impacto das memórias, do escrutínio público e de termos um porto seguro, achei interessante que nos deixe a pensar no quanto certas pessoas nos moldam, transformando quem somos. Este livro é sobre recuperar e estabelecer várias pontes. Talvez seja estranho, mas é quase poética a maneira como nos une, porque nos reconhecemos na dor, ainda que nenhuma perda seja igual.


🎧 Música para acompanhar: Hold On, Lizzy McAlpine

📖 Outro livro lido: Olá, Linda


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Uma viagem literária para descobrirmos autores portugueses


O início de um novo mês aproxima-se, o que significa que também chegou a altura de partilhar a lista de autores para o Alma Lusitana. Em setembro, teremos três nomes: Adília Lopes, enquanto autora para descobrir, Gonçalo Câmara, enquanto autor que já li e recomendo, e Kachisou, enquanto autora extra.


 adília lopes

Nasceu em Lisboa, em 1960, frequentou a licenciatura em Física (mas não a concluiu) e, anos mais tarde, enveredou em Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa. Começou por publicar os seus poemas no Anuário de Poetas não Publicados da Assírio & Alvim e, hoje, conta com uma extensa obra publicada. Por curiosidade, Adília Lopes é o pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira.

     

      
 
      

      

      

      

   


 gonçalo câmara

Locutor e escritor, começou o seu percurso na rádio aos 18 anos. Em simultâneo, tem nas viagens uma das suas paixões. Publicou o seu primeiro livro de crónicas em 2013 e, desde então, tem-se dedicado à poesia, mais concretamente aos haikus (forma curta de poesia japonesa), contando com três obras neste género. 

LI E RECOMENDO

   

   

📖 Opinião sobre Já Dizia o Outro | Entre o Deserto e a Montanha | A Árvore Que Não Fazia Sombra | Nuvem Cortante


 kachisou

Nasceu em Faro, em 1994, tornando-se leitora de Banda Desenhada muito cedo. Completamente autodidata, foi depois de ter lido «uma entrevista com a autora Hino Matsuri» que decidiu ser artista de mangás. Com o seu rumo profissional definido, conquistou vários prémios no Japão. A título de curiosidade, Kachisou é o pseudónimo artístico de Cátia Sousa. Também ilustrou uma antologia de contos de ficção científica.

   


O Alma Lusitana tem grupo no Goodreads

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Gatilhos: Referência a Doença Oncológica


A civilização está em constante evolução e é interessante imaginar o quotidiano das pessoas sem o acesso a determinados recursos. Quando nasci, o telefone já era uma realidade, já existia essa facilidade de comunicar com os outros de uma maneira mais rápida - ainda que pudessem existir limitações. Contudo, nem sempre foi assim. E acho curioso traçar este arco de progresso, porque passamos de um tempo em que este objeto nem sequer era idealizado para um tempo em que é quase tudo feito a partir dele. O livro de Djaimilia Pereira de Almeida acaba por ser um espelho disso mesmo.


distância, chamadas e saudade

As Telefones, numa clara homenagem ao género literário da diáspora, narra a história de Filomena e Solange: mãe e filha que veem a sua relação a ser construída através de sucessivos telefonemas. Quando as dificuldades se tornaram evidentes e a fome chegou a sua casa, Filomena sentiu-se na obrigação de enviar Solange para casa da tia, para que as suas condições de vida fossem, pelo menos, mais confortáveis. A partir daqui, as conversas passaram a ser à distância, na tentativa de minimizar vazios.

A ideia de um vínculo cimentado nestes contornos intriga, até porque implica uma série de reflexões sobre o impacto da ausência, o desejo de pertença, a noção de compromisso, a disponibilidade, o respeito pelo tempo de cada um dos envolvidos. Por outro lado, contrasta a cumplicidade e a intimidade da chamada e a cerimónia no reencontro. No fundo, tornou-se claro que ambas procuram não se tornar estranhas, estrangeiras, mas que há coisas que um fio de telefone não é capaz de proporcionar.

Entre desassossegos, medos e uma certa utopia, as protagonistas alimentam o elo que as mantém perto, mesmo quando não sabem como chegar uma à outra, mesmo quando há um oceano a separá-las e várias diferenças que só podem imaginar. A imagem foi substituída pela voz e passam a existir pela incógnita, pelas recordações. Numa espécie de simulacro, tentam resistir a um distanciamento imposto pelas circunstâncias e nós vamos procurando compreender se conseguiram lá chegar.

«Onde fica a estrada que nos leva para longe? A casa do futuro, onde já não somos nós que envelhecemos? A casa anterior à confusão, onde, envelhecendo em descanso, ainda não nascemos? A estrada das coisas que a distância não resolve, onde, andando em frente, o meu chapéu voa, e eu não quero saber, não estou nem aí se fico ou não mais leve»

As relações à distância são sempre complexas, independentemente da sua natureza, e creio que Filomena e Solange não se representam apenas a elas: expõem a história de tantas pessoas que tiveram de partir, de assentar raízes noutro lugar, de aprender a organizar a rotina de modo a que o silêncio não seja demasiado prolongado. Todos esses ajustem têm peso e não deixam de sofrer com as barreiras que vão surgindo.

Gostei mesmo muito da premissa e de nos fazer pensar sobre temas tão centrais como a imigração, as ligações familiares e as desigualdades sociais, no entanto, confesso que não me consegui relacionar com todas as partilhas feitas por esta mãe e por esta filha. Acho que encontraram um mecanismo de defesa na forma como se expressavam - Filomena com um tom mais religioso e Solange sempre em fluxo de consciência - e naquilo que pretendiam contar uma à outra, mas isso criou uma espécie de fachada, que me impediu de as conhecer melhor e de sentir que fui crescendo com elas. Por outro lado, fico a questionar se esta sensação não será uma intenção da autora, para que compreendamos que nenhum vínculo é isento desta dança de omissões e desvios.

As Telefones retrata a dureza da distância, mas também o amor que subsiste apesar de todos os contratempos. Sem deixar de mostrar toda a importância das memórias, é uma narrativa focada nas aprendizagens e no quanto as saudades nos vão moldando.


🎧 Música para acompanhar: Amazing Grace, Aretha Franklin

📖 Outros livros lidos: Luanda, Lisboa, Paraíso | Esse Cabelo | Maremoto | Ferry | Toda a Ferida é Uma Beleza | Ajudar a Cair | Regras de Isolamento | O Que é Ser Uma Escritora Negra Hoje, de Acordo Comigo | Os Gestos | Três Histórias de Esquecimento


Disponibilidade: Wook | Bertrand

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andreia morais

andreia morais

O meu peito pensa em verso. Escrevo a Portugalid[Arte]. E é provável que me encontrem sempre na companhia de um livro, de um caderno e de uma chávena de chá


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