Entrelinhas #71
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Fotografia da minha autoria
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«(...) é seguramente um dos romances míticos do século XX, uma daquelas obras raras que alteram o modo como toda uma geração encara o mundo que a rodeia»
Os livros podem guardar histórias leves, como uma pena que voa e que pousa delicadamente. Em contrapartida, também podem esconder enredos complexos, como uma teia que nos prende aos seus fios. Cada um destes registos pode ter um momento próprio, dependendo do nosso estado de espírito. Pessoalmente, aprecio obras que estabeleçam um equilíbrio entre ambos, porque adoro a simplicidade que me permite relaxar intelectualmente, na mesma medida que procuro uma leitura que me desafie e alargue horizontes. E com Milan Kundera consegui atravessar essa ponte.
A Insustentável Leveza do Ser faz-nos refletir. E convida-nos a abraçar uma viagem introspetiva sobre o peso das coisas, do eterno, do retorno, das metáforas, da dualidade das nossas ações/reações, das ligações e relações que estabelecemos com terceiros, da incoerência e do amor. Dividido em sete partes, absorvemos pensamentos acerca do corpo e da mente, através de uma pluralidade de registos, que nos aproximam daquilo que é a essência do ser humano: por vezes, tão antagónica, tão paradoxal, mas sempre tão propensa a experiências únicas e fascinantes.
A riqueza - e a pertinência - deste romance passa, igualmente, pelo desenvolvimento das personagens e pela aproximação de «lugares distantes geograficamente», o que implica perspetivas singulares e um contacto mais direto com outras realidades. Por isso, há espaço para tópicos políticos, culturais e factos históricos, que se interligam entre si com bastante naturalidade e sem ficarem desconexos com temas de outra natureza. É incrível como a narrativa consegue ser positiva e melancólica, conformada e insurgente. E seguindo um certo cariz filosófico, cada segmento assume o ponto de vista de um dos protagonistas, quer em relação aos demais, quer em relação ao mundo e aos acontecimentos centrais da época [como a invasão Russa]. Embora esta voz tenha um traço poderoso, é interessante constatar que a ação se estende para lá dela. Seria fácil restringi-la às conceções individuais, porém, em nenhum momento isso ocorre, porque o autor teve sensibilidade suficiente para explorar uma vertente ampla, comprovando que há sempre algo muito maior do que nós.
Recuperando um conceito anterior, este livro forma uma teia de vínculos e observações pessoais e sociais. Além disso, os dilemas das personagens são sustentados pelo narrador, que, sendo omnisciente, partilha os seus anseios e pareceres. Assim, nesta história feita de opostos, que parece não ter uma direção definida, mas cuja escrita descomplicada se revela profunda e clara, disserta-se sobre a vida, desde as questões mais banais às mais complexas: a maternidade/paternidade, a bondade, o corpo e a mente [organismos que se fazem valer em conjunto e em separado], o amor e o respeito pelos animais, a religião, Deus, morte, a eutanásia, a traição que não é, somente, amorosa, os traumas de infância. E estabelece-se, consequentemente, algumas dicotomias: corpo-alma [sempre tão presente], amor-sexo, entrega suprema-entrega carnal, razão-coração, sensatez-inconsciência. E no que diz respeito, particularmente, ao amor, há uma análise muito evidente, que distingue o sentimento em estado puro da ideia de amar e ser-se amado: quantas relações se alicerçam na segunda? Quantas pessoas se apaixonam pela ideia de alguém as amar e não pelo remetente desse amor?
As perguntas sucedem-se, quase, em simultâneo: será que a nossa existência é só feita de acasos? Até que ponto fazermos algo por compaixão é correto? Seremos capazes de suportar as revezes do nosso caminho? Que direito temos para decidir o futuro de alguém? Quanta incoerência e maldade habitam dentro de cada um? E é à procura de respostas que avançamos, desconstruindo juízos prévios e retirando camadas até chegarmos ao cerne da questão. Pelo caminho compreendemos que, por mais que tentemos, não controlamos o que sentimos, que somos feitos de metáforas e que existem sempre diferentes posturas e maneiras de interpretar os sinais que recebemos. Tudo tem um duplo sentido, a começar pela própria semântica das palavras, porque nem tudo é o que aparenta ser e porque os nossos atos têm sempre uma intenção. Sinto que transferimos um pouco de cada personagem para a nossa personalidade, uma vez que temos muitos «eus» dentro, que se perdem e que se reencontram. E esta obra mostra-nos que pode haver um «eu» individual e um «eu» em sociedade. Paralelamente, retrata a conjuntura difícil entre a manutenção da integridade desse «eu» e a necessidade de integração - o sentido de pertença por vontade ou por coação. É que o ser humano pode ser leve - livre -, mas a sua natureza exige peso para estar consciente da sua própria vida.
A Insustentável Leveza do Ser é um livro terapêutico, mas também inquietante, porque transparece o desassossego de uma forma visceral. E lê-se compulsivamente, porque os seus capítulos são dinâmicos e estimulam o raciocínio. Ainda assim, é daquelas narrativas que devemos desfrutar com calma e com toda a entrega, de mente aberta. E incitando-nos a querer alcançar o inimaginável, atingimos aquele milésimo que nos distingue e que nos deixa mais perto de quem pretendemos ser. No final, ficamos a desejar mais!
Deixo-vos, agora, com algumas citações:
«Mas será o peso verdadeiramente atroz e a leveza bela?» [p:11];
«O amor pode nascer de uma única metáfora» [p:18];
«Só o acaso pode surgir-nos como uma mensagem. Aquilo que acontece por necessidade, o que já era esperado e se repete todos os dias, é apenas uma coisa muda. Só o acaso fala» [p:67];
«A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio por debaixo de nós que nos atrai e nos enfeitiça, o desejo de queda do qual nos defendemos depois com pavor» [p:82];
«O amor é o desejo dessa metade perdida de nós próprios» [p:303].
Nota: O blogue tornou-se afiliado da Wook. Ao comprarem através dos links disponibilizados, estão a contribuir para o seu crescimento literário. Obrigada ❣
Este é um dos livros que consta da minha "pilha" de livros a ler.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Adorei este livro, li muito cedo e fez-me realmente perceber a dualidade da vida, que cada um têm uma história, a sua versão de mesmo facto, que a acção têm sempre reação às vezes difícil de suportar...
ResponderEliminarNão é aqui que vêm a frase " Apareces-te na minha vida como Guliver no pais do Liliputianos "?
Beijinhos
Incrível!!!
ResponderEliminarNas minhas arrumações para as festividades que se aproximam, encontrei este romance que li na minha adolescência e o trouxe comigo para aqui. Penso lê-lo uma vez mais durante as férias de Natal.
Muito bem. Parece-me um livro interessante:))
ResponderEliminarBjos
Votos de uma óptima Sexta-Feira
Este tem mesmo de vir para a minha estante :) e tenho de rever o filme ;)
ResponderEliminarBeijinhos e boa sexta*
https://matildeferreira.co.uk
Mais um para a minha lista a comprar. Agora descobri que o site da Bertrand dá para ter uma lista de desejos. Dá para organizarmos os livros que queremos comorar num só local, e ireendo as promoções que podem ir tendo. É muito fixe :)
ResponderEliminarBeijinho grande, princesa*
maravilhosa indicação, eu tbm já li esse livro e gostei demais
ResponderEliminarwww.tofucolorido.com.br
www.facebook.com/blogtofucolorido
Mais um livro que me parece bastante interessante :) Beijinhos*
ResponderEliminarBoa tarde, perfeita partilha e sugestão.
ResponderEliminarFeliz fim de semana,
AG
Mais um que nunca tinha ouvido falar, mas sempre que venho cá conheço novos livros
ResponderEliminarBeijinhos
Novo post //Intagram
Tem post novos todos os dias
Já ouvi falar do título deste livro por aí. Apesar de nunca o ter lido, fiquei com curiosidade, vou registar para ler mais tarde. =)
ResponderEliminarBeijinho grande e bom fim-de-semana!
Andréia ainda não li o livro mais pela resenha é um maravilhoso livro, muito bom quando o livro nos faz refletir, Andréia bjs.
ResponderEliminarUma mão cheia de palavras bem escritas que fazem todo o sentido. Gostei desta. Os livros podem guardar histórias leves.
ResponderEliminarComo uma pena que voa,
e que pousa delicadamente,
a vida é ai que mal soa,
deve ser vivida suavemente,
com amor e carinho, não à toa!
Boa noite e bons sonhos Andreia.
Parece interessamte ainda não li, boa sugestão para a lista de prendas de Natal.
ResponderEliminarBjs
Gosto de livros que nos fazem refletir! Fiquei curiosa! :D
ResponderEliminarwww.amarcadamarta.pt
Fiquei bastante curiosa com o livro querida!
ResponderEliminarRêtro Vintage Maggie | Facebook | Instagram
Aquele sabonete em folhas é interessante. Adorei testar! ;D
ResponderEliminarJá tinha ouvido falar bem desse livro. Curti! Gosto de leituras que estimulam o raciocínio!
Ótima sexta!
Beijo! ^^
Tu devoras livros ahahaha só fazes bem, ocupar a cabeça com coisas uteis ;) não o li mas já ouvi falar.
ResponderEliminarBeijinho linda.
Foi este livro que nos juntou, a mim e ao Artur hehe :D
ResponderEliminarÉ uma obra de arte intemporal!
;D
ResponderEliminarÓtimo sábado!
Beijo! ^^
Não conhecia o livro, mas começo a entender pela forma como o descreves, que será uma obra que adorarei. Espero comprá-lo em breve!
ResponderEliminarBeijinho grande
Já ouvi falar muito bem deste livro e a tua review deixou-me curiosa. Há perguntas que nos deixam, de facto, com muitas dúvidas :)
ResponderEliminarOlá,
ResponderEliminarLi o livro quando era adolescente e lembro-me de ter gostado muito. É um livro a reler agora, numa altura da vida em que voltei a questionar tudo novamente.
Parabéns pelo texto! Escreve muito bem!
Beijinhos
Margarida
https://minhacasadopatio.blogspot.com/