Entrelinhas #73

Fotografia da minha autoria


«Durante um passeio pelo campo, após trinta anos de serviço em Darlington Hall, Stevens, o mordomo perfeito, reflecte sobre o passado...»



A diversidade da minha pequena biblioteca é algo que privilegio, por vários fatores. Só não a priorizo por uma simples razão: há nomes aos quais pretendo regressar sempre que for possível. E parece-me improvável passá-los para segundo plano, durante bastante tempo. Tento, no entanto, que não monopolizem as minhas escolhas. Porque é fascinante viajar por mundos desconhecidos e que poderão proporcionar-me experiências distintas. Quando escrevi a publicação sobre os sete autores que pretendo acrescentar à minha estante, mencionei Kazuo Ishiguro. E, meses depois, consegui cumprir esse desejo.

Estreei-me na sua escrita através da obra Os Despojos do Dia. E, apesar de ter achado a premissa interessante, sinto que não me relacionei verdadeiramente com a história. A narrativa flui com celeridade, porém, há uma certa demora em determinados pontos que, honestamente, a meu ver, não requerem tanta minúcia. Ainda assim - e tendo em conta que esta apreciação é sempre subjetiva -, não carece de assuntos pertinentes. Além disso, o discurso na primeira pessoa torna a partilha mais próxima e emotiva. Excluindo as minhas elevadas expectativas, que sofreram um abalo, reconheço todo o potencial do livro, não só por se focar numa época em declínio, mas também pelo seu cariz mais introspetivo. E por evidenciar a pressão que exercemos sobre a nossa vida profissional, ao ponto de quase nos esquecermos da componente pessoal.

Há, consequentemente, uma tentativa de recuperar o tempo perdido, sobretudo, pela enumeração de memórias tão específicas e, em parte, saudosistas. Na mesma proporção, alerta-nos para o quanto é tóxico agarrarmo-nos ao que poderíamos ter feito e/ou ter sido. E expõe as nossas fragilidades e a linha ténue das conceções que criamos sobre nós e sobre a existência humana. Em simultâneo, desperta a impressão de que existem dois planos de ação, isto porque o autor interliga o universo da casa onde a personagem principal trabalhou uma vida inteira com «o campo britânico e o rebuliço do mundo». Essa travessia exalta os deveres de alguém com um cargo tão crucial e simboliza uma viragem e a consciencialização do que existe para além de quatro paredes.

Os Despojos do Dia foca-se na «personalidade, na classe, na cultura». E apresenta uma análise comportamental, explanando uma ordem social e os costumes inerentes ao contexto em que se desenrola a ação; levando, posteriormente, a uma reflexão sobre a sociedade, sobre o estado político e sobre o indivíduo. Uma abordagem curiosa é que este «estudo psicológico» parte, em inúmeras circunstâncias, de casos profissionais, estabelecendo uma relação de causa-efeito, na medida em que Mr. Stevens, o mordomo perfeito, acredita que «serviu a humanidade servindo um grande homem». Será que sim? Quando as dúvidas adquirem força, questiona-se a moral, a ambição, a humildade e a própria dignidade, embora não se perca a elegância do trato, a noção de rotina e o ato de servir em si. Porque há valores inquebráveis e porque, apesar das incertezas, há uma contenção emocional. E sinto que foi este último motivo que me distanciou um pouco do enredo.

A leitura faz-se com leveza. E não deixa de ser agradável, ainda para mais quando existe uma desconstrução de dentro para fora. Contudo, gostaria que alguns momentos tivessem sido mais aprofundados. O final foi, seguramente, o que mais me comoveu: pelos sentimentos notórios, que quebraram a racionalidade de toda a obra, e por nos demonstrar o quanto perdemos por nos dedicarmos em exclusivo a um caminho, negligenciando tudo o resto.


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«É difícil explicar os meus sentimentos quando, finalmente, parti» [p:27];

«É certamente responsabilidade profissional de todos nós pensarmos profundamente nestas coisas, de modo que cada um possa lutar melhor no sentido de alcançar a "dignidade" para si próprio» [p:49];

«Pela primeira vez em muitos anos, posso andar devagar, e devo dizer que considero a experiência muito agradável» [p:73];

«- Claro, não deve ter reparado, visto não ser curioso. Limita-se a deixar acontecer tudo isto à sua frente e nunca lhe passa sequer pela cabeça ver as coisas pelo que elas são» [p:225];

«No fim de contas, que poderemos jamais ganhar se estivermos eternamente a olhar para trás e nos culparmos, a nós próprios, de as nossas vidas não terem, afinal, sido exactamente aquilo que poderíamos ter desejado?» [p:244].



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Comentários

  1. estou a gostar mesmo muito dele :D

    não conhecia o autor, meu bem, mas o livro pareceu-me super, super interessante :D

    NEW GET THE LOOK POST | A DRAMA CALLED: I DON'T KNOW WHAT TO WEAR IN THE FALL.
    InstagramFacebook Official PageMiguel Gouveia / Blog Pieces Of Me :D

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  2. A tua análise de "Os despojos do dia" é mais excitante | interessante do que o próprio romance.

    Li o livro de Kazuo Ishiguro, muito antes de ele receber o Prémio Nobel, e achei-o um pouco pálido | chato. Vi também o filme, que achei ainda mais chato, apesar das brilhantes interpretações de Emma Thompson e Anthony Hopkins.

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  3. Apesar de gostar muito de autores japoneses ainda não li nada deste escritor, mas fico com a sugestão.
    Um abraço e continuação de uma boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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  4. Apesar de gostar do autor, acho que esse ainda não vai entrar na minha lista... ao ler a tua analise, lembrei-me do livro " A Pomba " do Patrick Süskind... que também foi difícil...

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  5. Sempre que venho cá há sempre coisas a conhecer, mais um que nunca ouvi falar
    Beijinhos
    Novo post //Intagram
    Tem post novos todos os dias

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  6. Despertaste o interesse de ler esta obra tão conhecida :) Obrigada por este review :)
    Beijinhos
    https://matildeferreira.co.uk

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  7. Oi Andreia, eu acabei de ler "Um artista do mundo flutuante" do Ishiguro e gostei muito. Tenho curiosidade de ler o "Vestigios do Dia" (o nome do livro aqui no Brasil) no futuro. Você já assistiu a adaptação para o cinema do James Ivory?

    Um beijo :*

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  8. Não li, mas apesar dos teus comentários pouco abonatórios, tenho alguma curiosidade em ler este autor, seja no romance que analisas ou noutro qualquer.
    Andreia, continuação de boa semana.
    Beijo.

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  9. Viajar por mundos desconhecidos,
    será sem qualquer duvida fascinante
    mas, para quem tem os bolsos vazios
    é bom ver o Sol nascer no horizonte
    e ver os barcos navegando nos rios
    enquanto bebe água fresca da fonte?

    Tenha uma boa tarde Andreia.

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  10. Obrigada pela sugestão, fica para a próxima, por agora estou a ler sinal de vida de José Rodriguez dos Santos que está na fila a quase um ano.
    Beijinhos

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  11. Ouvi falar deste autor no "Apanha se Puderes", mas nunca li nada dele. No entanto, fiquei curiosa e com vontade de arriscar.

    Beijinhos!

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  12. Nunca ouvi falar nesse autor. Gosto de livros que me prendam desde o inicio, se não perco a vontade, aconteceu o contrário, com o Amar depois de ti, não gostei no inicio mas depois rendi-me.
    Beijinho linda.

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  13. "Porque é fascinante viajar por mundos desconhecidos e que poderão proporcionar-me experiências distintas." isto é tãoooooo ler livros :)

    r: obrigadaaaa! :D

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  14. O livro é bem fluido gostei do livro a leitura prende o leitor até o fim, Andreia bjs.

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