Entrelinhas #70

Fotografia da minha autoria

«Paixão e distância, azar e destino, dor e prazer... qual o verdadeiro rosto do amor?

É com um enorme conforto no peito que desembrulho presentes que escondem livros. E a primeira razão é facilmente identificável, ou não fosse a leitura uma das minhas grandes paixões. Mas adoro, sobretudo, que me ofereçam livros porque é um elo que se estreita. Porque as pessoas acabam por, inconscientemente, projetar os seus gostos e por nos descreverem - a nós, mas também a uma realidade que se pode adequar ao nosso contexto ou a um caminho que faria sentido descobrirmos. E todo esse encanto acresce quando nos brindam com obras das suas bibliotecas pessoais, como se fosse uma passagem de testemunho, um tesouro que nos confiam para cuidar com amor.

No Natal passado, um dos meus primos - o grande responsável por ter entrado na blogosfera - presenteou-me com três títulos que figuraram nas suas estantes. E um deles, curiosamente, pertencia a um dos autores que mais curiosidade me despertava, mas cujo encontro fui adiando sempre, talvez por sentir que não tinha, ainda, maturidade suficiente para o desconstruir: Mario Vargas Llosa. Acredito, genuinamente, que tudo acontece por um motivo e que este cruzamento já estava destinado. Só precisou de um pequeno empurrão no momento certo. E, por isso, lancei-me sem rede. E, em consequência, fiquei a conhecer uma das histórias mais fascinantes e que, seguramente, marcará este meu ano literário.

Travessuras da Menina Má transporta-nos para um cenário emocional complexo, denso e inquietante. O seu discurso próximo leva-nos a contactar com uma realidade crua, direta, de um amor profundo que procura sobreviver a um jogo de interesses constante. Ricardo, o «menino bom», tinha um sonho: viver em Paris. E cumpriu-o bastante cedo. Porém, uma paixão visceral de adolescência fará com que a sua jornada seja inconstante, cheia de reviravoltas, de esperança e de frustrações. Porque, como carinhosamente a apelidou, a Menina Má, sempre esquiva, irá arrastá-lo para as suas ambições, para os seus anseios, para os seus dramas e problemas, para os seus desejos e para as suas mentiras. A vida, aparentemente, avança, mas Ricardo parece ficar sempre preso ao mesmo lugar, à mesma pessoa. Ainda que, pelo meio, vivencie outras experiências, há algo que o faz regressar ao passado. Ou, então, existem mudanças que o cruzam com a sua amada - seja de uma forma forçada, seja por mera casualidade.

Esta obra é, incontornavelmente, marcada por desencontros: físicos e sentimentais. No entanto, por muito que a Menina Má assuma outras identidades e surja em diferentes partes do mundo, a história de ambos está longe de se separar, seguindo estradas longínquas. Há uma certa obsessão, um certo prazer pelo abismo. E uma consciência, por vezes, inconsciente, porque tanto Ricardito, como a jovem que o conquistou para sempre, têm plena noção da fragilidade da relação que procuram perpetuar - por motivos opostos. Mas por mais que tenham objetivos distintos, ele nunca a esquece e ela sabe onde - e quando - regressar. E são estes seus regressos que, em parte, angustiam, porque sentimos o traço manipulador das suas intenções. Enquanto leitores, expressamos a revolta pela maneira como ela o trata, mas o diálogo entre os dois é desconcertante e inebriante, provocando-nos sensações contraditórias, quase como se abraçássemos uma certa bipolaridade.

Mario Vargas Llosa conseguiu produzir uma narrativa cheia de contrastes, envolvendo-nos nas suas palavras de uma forma muito singular. Numa questão de detalhes, saltamos da aflição para a esperança, da empatia para a cólera, da compreensão para a impaciência - e, também, para alguma irritação. E a magia deste livro passa por aqui, por este lado humano tão presente e vincado, que nos faz identificar e apaixonar pelo enredo. Nesta viagem alucinante, há passagens extremamente intensas e gráficas, abordando inúmeras temáticas, o que nos permite refletir sobre a natureza das pessoas. Simultaneamente, ainda que o romance seja o foco mais evidente, somos implicados em épocas e contextos geográficos diferenciados, atravessando fronteiras e conhecendo um pouco mais da história da América Latina e da sua situação política nas décadas de 60, 70 e 80, bem como deslindamos um pouco sobre a cultura de cada um dos lugares por onde passa a ação.

Travessuras da Menina Má é imprevisível. E rico em emoções. Tem uma escrita descritiva e nada maçadora, muito pelo contrário. O seu final é surpreendente e à altura do brilhantismo de toda a obra. É uma história de amor profunda e peculiar, com personagens marcantes que, acredito, ficarão para sempre na nossa memória. Neste contraste entre o bom e o mau, compreendemos que nada é tão linear assim e ficamos presos do início ao fim, ansiando e expectando o futuro. Será que o amor é suficiente? Quando duas pessoas estão em diferentes níveis emocionais, sem deixarem de se amar, o que é suposto decidirem? O que pesa mais? É admirável a quantidade de camadas que este livro tem, tirando-nos o fôlego em cada descoberta. E, no fim, alterando a imagem que criamos da personagem feminina e da própria construção narrativa - tão sólida, tão pertinente, tão genial.

Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«E embora tenham decorrido tantos anos, e se eclipsassem barreiras e preconceitos que dantes se exibiam com insolência e agora se dissimulam, eu guardei-a na memória, e volto às vezes a evocá-la, a ouvir o riso travesso e o olhar trocista dos seus olhos de mel escuro...» [p:25];

«- Ainda continuas apaixonado por mim? - perguntou-me de entrada, quebrando o gelo» [p:58];

«Fiquei certíssimo de que não me telefonaria. Eu era uma testemunha incómoda de um passado que ela queria apagar a todo o custo» [p:120];

«Era-me já difícil acreditar em alguma coisa do que ela me dizia, porque desde que a conheci que me tinha contado sempre mais mentiras que verdades» [p:175];

«És a pessoa mais perversa que eu conheci, menina má. Um monstro de egoísmo e de insensibilidade. Capaz de apunhalar com a maior frieza as pessoas que melhor se portam contigo» [p:367].

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