Entrelinhas #72

Fotografia da minha autoria


«Jorge Amado descreve, em páginas carregadas de grande beleza e dramatismo, a vida dos meninos abandonados nas ruas de São Salvador da Bahia»



O desconhecido pode revelar-se uma descoberta fascinante ou, em contrapartida, ser uma desilusão. Mas acredito que devemos arriscar sempre que é possível, porque não sabemos o mundo que nos espera do outro lado. E isso é totalmente válido na literatura. Por isso, tenho uma certeza: caso não me identifique, fico com uma nova experiência; caso me conquiste, retornarei ao autor. Por mais que demore a fazê-lo, os nossos caminhos voltarão a cruzar-se. E após concluir O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá [aqui], percebi que Jorge Amado não mais sairia da minha vida.

A transição para Capitães da Areia foi natural e muito desejada, até porque era uma das obras que constava na minha lista de desejos. E fui arrebatada por uma história intensa e comovente, que expõe um grupo de crianças negligenciadas - em amor, segurança e educação -, com idades compreendidas entre os oito e os 16 anos, que se dedica a atividades criminosas. É extremamente duro constatar a carência de afeto e a necessidade de pertença, ao ponto de enveredarem por caminhos perigosos, sem estarem preocupados com os riscos, sobretudo, porque têm pouco - ou nada - a perder. A dada altura, atendendo aos seus comportamentos, é fácil esquecermo-nos que estamos a acompanhar o percurso e o crescimento de protagonistas tão jovens e indefesos, que, por um acumular de circunstâncias cruéis, tiveram que se tornar autónomos e adultos à força. No entanto, quando essa imagem sobressai, o coração aperta. Porque não é uma realidade assim tão distante e irrealista. E se caímos na tentação de questionar se são miúdos genuinamente maldosos, rapidamente compreendemos que as suas atitudes são fruto do abandono plural, que os obriga a sobreviver a qualquer custo.

Privados de cuidados, andam um pouco ao sabor da sorte. Porém, apesar de todo o cenário de violência, tortura, descrença e desresponsabilização, onde se descobre a tremenda hipocrisia de instituições como a Igreja e os Reformatórios [neste contexto], o enredo é contrabalançado por detalhes preciosos. Unidos pelo crime, conseguiram criar uma família - disfuncional, é certo, e com muitas falhas e poucos propósitos, mas é a representação mais próxima que têm de uma.  E isso faz com que as suas jornadas - enquanto todo e parte - sejam menos dolorosas e solitárias, mesmo que tudo à volta se desmorone. Além disso, entre os Capitães da Areia há leis, valores e um código de honra que não pode ser quebrado. Inevitavelmente, revoltamo-nos com a falha do sistema, com o desrepeito e a desumanização que estas crianças tiveram de enfrentar. Mas, também por essa razão, é simples empatizarmos com elas. Porque têm muito a ensinar-nos. Embora os fins nem sempre justifiquem os meios, quando as alternativas não possibilitam uma mudança de rumo, entendemos que as motivações não sejam as mais corretas. No fundo, e sem ser com o intuito de legitimar certas atitudes, fica claro que não foi uma escolha, mas uma imposição indireta do destino.

Há uma série de preocupações e questões que nos inquietam, principalmente, em relação ao presente das personagens. E levanta-se a dúvida: quando alguma delas encontra um lar, recebendo o que mais deseja, trai o grupo ou a família que está disposta a acolhê-la? E é no centro de dualidades desta natureza que verificamos a evolução de cada um e a sua conquista de liberdade. Nesta história cheia de aventura e emoções fortes, que nos faz, inúmeras vezes, redefinir o que é mau e o que é, no mínimo, aceitável, deparamo-nos com um texto quase poético, que nos embala - algo que é possível, também, pela própria linguagem. Por outro lado, há várias ocasiões em que ficamos sem chão, porque é descrito um retrato fiel da sociedade, onde ainda existe desigualdade social, discriminação entre raças e exclusão.

Real, emotivo e, indubitavelmente, humano, Capitães da Areia fica marcado por uma simbologia vincada, a começar pelo nome. E expõe o ódio, a arrogância, a luta, sem deixar de transmitir uma mensagem de fé e esperança. É delicioso reler os detalhes que nos relembram que estamos perante crianças: por causa dos seus sonhos, dos seus medos e, inclusive, de alguma ingenuidade. E isso provoca no leitor uma vontade imensa de as proteger no seu abraço. Este livro não se poupa em aprendizagens. Algumas evidentes. Outras mais subtis. Porém, há uma que, a meu ver, se destaca: podemos nascer condicionados pelo meio, mas não ficamos predestinados à miséria. Podemos, sim, ser influenciados, mas nunca presos. É daquelas leituras que nos transformam.


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarros, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas» [p:28];

«Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno» [p:37];

«Só vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e os ame. Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza» [p:70];

«A liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo» [p:209];

«Quando outras crianças só se preocupavam com brincar, estudar livros para aprender a ler, eles se viam envolvidos em acontecimentos que só os homens sabiam resolver» [p:251].



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Comentários

  1. Um excelente livro desse grande escritor brasileiro.
    Um abraço e continuação de uma boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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  2. todo o universo do Jorge Amado faz parte do Brasil, mas eu acho que nunca li nenhum livro dele de fato acredita? preciso urgentemente remediar isso

    www.tofucolorido.com.br
    www.facebook.com/blogtofucolorido

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  3. Nunca li nada Dele, mas ouço falar muito ;))

    Bjos
    Votos de uma óptima Quinta - Feira.

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  4. Eu li este livro muito nova, foi cheio de emoções, até me apaixonei por um dos personagens, o da cicatriz!!

    Quero muito reler e vou fazê-lo, até porque agora mãe acho que a minha interpretação vai ser outra!!

    Mais uma vez uma excelente review!!! Bjs

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  5. "A liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo"

    A LIBERDADE é um bem MUITÍSSIMO maior do que o sol, na minha modésta opinião.

    Li o autor brasileiro, quando ainda vivia no Porto. Aqui, li um livro da mulher do Jorge Amado. Um livro muito interessante.

    Esta manhã, não tenho sol em DÜSSELDORF, mas a liberdade de fazer o que me apetecer 😘

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  6. Adoro :)
    Lembro-me bem da serie :)
    Beijinhosss
    https://matildeferreira.co.uk/

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  7. Nunca li! ☺

    https://siimplicity.blogs.sapo.pt/foi-sem-querer-que-te-quis-de-raul-21583

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  8. Amado é um autor obrigatório. Adoro este livro, na verdade já o li duas vezes.

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  9. Sempre a conhecer as novidades, mais um que não conhecia
    Beijinhos
    Novo post //Intagram
    Tem post novos todos os dias

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  10. Um maravilhoso livro do escritor Jorge Amado nós brasileiros temos muito orgulho desde escritor, Andreia bjs.

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  11. Um bom livro :)

    https://checkinonline.blogspot.com/

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  12. Um dos livros preferidos da minha mãe :)
    Ainda não me aventurei, um dia destes quem sabe. :)

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  13. De Jorge Amado ainda só li O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, mas ao ler esta publicação fiquei com uma certa curiosidade

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  14. Li "Capitães da Areia" na mesma época em que li "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes. Ambos contam a história dos "homens que nunca foram meninos", embora no caso de "Esteiros", os meninos fossem trabalhadores infantis. Alguns deles também faziam pequenos furtos nos pomares, para matarem a fome, mas o que sobressai dos dois livros, é a miséria humana a que a sociedade abandona os seus filhos, sem dó nem piedade.

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  15. Foi sim! ;)

    Esse livro é um clássico. Mas a história é triste, ainda mais por ser tão próxima da realidade!

    Ótima quinta!

    Beijo! ^^

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  16. Um grande livro de um grande escritor.
    Magnífica sugestão, por isso.
    Andreia, continuação de boa semana.
    Beijo.

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  17. teu texto (muito bom, aliás) me lembrou da minha vontade de reler essa obra. dei o meu único exemplar a um amigo estrangeiro quando ele teve que ir embora. Andres falava que não se dava muito a leituras de romances porque preferia se ater às realidades relativamente puras dos livros de não ficção. escrevi uma dedicatória dizendo que esperava que ele percebesse na literatura de Jorge Amado o poder de revolucionar nossas visões, por múltiplos caminhos, que a ficção tem. esse processo de questionamento sobre quem somos e onde estamos.

    fico por aqui esperando mais impressões de tuas leituras! beijos!

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  18. Parece ser uma livro cheia de emoções.

    r: eu gostei a música mesmo pela letra que tem.

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  19. Já ouvi falar imenso deste livro, mas nunca li. Deixaste-me curiosa, mais um a acrescentar à minha lista.

    Beijinho grande!

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  20. Oi Andreia, eu li o livro quando era bem novinha e me lembro de ter ficado super impactada. Preciso ler de novo agora, depois de adulta. Tenho certeza que vou perceber nuances que não percebi na época. Um beijo querida :*

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  21. Se essas crianças tivessem sido apoiadas. Em vez de ter sido deixadas à mercê da marginalização não teriam chegado ao mundo do crime? Culpa dos governos, que viram as costas à pobreza. Quando pelos menos lhe deviam garantir no mínimo meios de sustento. Barrando-lhes o caminho antes que fosse tarde de mais.
    Governo que for inteligente não deixa. Evita através de mecanismos criados para ajudar quem mais precisa de ser ajudado. Evitando o aumento da pobreza, cuja a fome pode conduzir as pessoas desesperadas à violência?
    Gostei de ler esse texto. Sobre acontecimentos da vida real. Os quais podiam ser evitados, se houvesse vontade política?

    Tenha uma boa noite Andreia. Bons sonhos!

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  22. Querida Andreia, para bem da minha conta bancária, é bom que deixes de sugerir livros, porque os vou devorando aos poucos eheheh (estou a brincar, é sempre um gosto enorme, gigante, ler as tuas opiniões e críticas dos livros que lês). É um prazer também fazer parte das pessoas que te lêem!
    Acho que esta e a Jukebox são das rubricas que mais gosto de acompanhar no sentido em que me dão asas e me abrem novos horizontes. As restantes rubricas são as que gosto de ler assim como gosto de ler um livro 😘
    Um beijinho grande*

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  23. Realmente! É um tapa na cara... Nos faz refletir sobre tantas coisas, né?!

    Ótima sexta!

    Beijo! ^^

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  24. Olá,

    Adorei esse livro, quando o li há alguns anos!

    Na minha vida profissional, deparei-me com muitas crianças e jovens como esses: perdidos, mal amados, sozinhos, abandonados e entregues a si próprios. Por vezes, a vida é muito dura.

    Beijinhos
    Margarida
    https://minhacasadopatio.blogspot.com/

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  25. «A liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo» e que importante que é!!! infelizmente a minha relação com o Jorge Amado é muito pequena. Até o livro da Andorinha Sinhá me desapareceu, emprestado a alguém que nunca mais mo deu :(

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  26. Confesso que nunca li nada deste autor mas depois dessas citações este livro vai já para a minha lista.:p

    Another Lovely Blog!, https://letrad.blogspot.com/

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  27. Deve ser mesmo um livro incrível, pelo que nos dizes e enumeras. Muitas vezes as coisas são tão diferentes daquilo que pensamos, há quem tenha culpa sem a ter, quando a vida não coopera e os "maus caminhos" parecem a solução. Mas terminas em beleza, de facto não há impossíveis e há sempre hipótese de melhorar, não se está apenas destinado ao insucesso :)

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