ENTRELINHAS //
DEBAIXO DE ALGUM CÉU

Fotografia da minha autoria



«A consciência de um jogo entre o desejo de chegar 
ao seu destinatário»


A minha vida - até ao momento - foi toda passada numa casa. Ou seja, nunca usufrui de outro conceito de habitação, numa rua que, não sendo fechada, sempre me permitiu conhecer e privar com alguns vizinhos. Porém, os desencontros tornam-se mais recorrentes, porque é fácil desalinharmos entradas, saídas e permanências. Ao contrário da dinâmica num prédio, em que as paredes nos aproximam os passos e proporcionam mais contacto interpessoal - existindo exceções. No entanto, em ambos os casos, quando as portas se fecham, há um mundo que desconhecemos. Só que, tal como verificamos no livro de Nuno Camarneiro, essa ignorância pode manifetar-se em vários contextos.

«Há quase um ano que ninguém entra no apartamento 
e ninguém no prédio tem chave» [p:21]

Debaixo de Algum Céu apresenta uma premissa interessante, embora se alicerce numa estrutura, aparentemente, banal. Afinal, o que é que pode acontecer de extraordinário num ambiente restrito, situado à beira-mar, durante um período de oito dias? Na realidade, tudo! Porque todos os inquilinos atravessam uma crise e procuram algo. Encontram-se sem se conhecerem, sem se relacionarem e sem compreenderem que têm tanto em comum. E isso é uma consequência do quanto vivemos enclausurados na nossa bolha, nos nossos problemas e nas culpas que nos consomem. Assim, nesta narrativa «de janelas viradas para dentro», na qual as personagens se movimentam sem um destino definido, há uma tempestade que as vira do avesso, obrigando-as a repensar a sua postura, a reagir, a observar para lá do seu metro quadrado e, inclusive, a ser mais vizinho. Porque é quando a vida fica em suspenso que entendemos o quanto é imprescindível o sentido de comunidade.

«Mas as ideias, como um cão, às vezes, correm por onde querem 
levam-nos atrás porque também nós lhes pertencemos» [p:52]

O autor, através de uma prosa poética inspiradora, criou várias histórias dentro de uma só, com protagonistas distintos, mas unidos pela solidão, pela escuridão que expõe segredos, pelos lamentos, pelos tormentos e pelos desejos em surdina. Portanto, escutando as suas vozes - e tudo o que é dito em silêncio -, refletimos sobre a dinâmica familiar, a rotina, o fosso entre relações, crises matrimoniais e existenciais, traições, contrariedades e fé. Apesar de espelhar um retrato ficcional, revela-se uma leitura introspetiva, que nos faz questionar os nossos limites e os extremos da nossa loucura, conhecendo e desconstruindo inúmeras realidades, experiências e travessias e permitindo-nos, ainda, adequar o enredo à nossa condição.

«Talvez amemos só pelo que o amor nos traz, ou pelo que podemos 
ser quando alguém nos ama. Seremos assim tão tortos?» [p:82]

Houve alguém a partilhar um pensamento que eu achei maravilhoso: «nos prédios, as vidas arrumam-se como livros numa estante». E foi necessário acontecer uma catástrofe - externa e interna - para que não «se fechassem em si mesmas», abalando uma estrutura espacial e emocional. Nascendo um rasgo de cumplicidade num tempo de aperto, esta obra transborda humanidade, porque é feita sobre pessoas. É feita de todos nós, que contestamos o que nos calha em [má] sorte, que nem sempre conhecemos quem vive na porta ao lado, mas que continuamos a caminhar, tentando entender qual é a nossa rota, o que nos falta e, no fundo, quem somos. Nem sempre aquilo que está perto atrai a nossa atenção, mas o passado vai colocando bandeiras na nossa redenção.

«Medimos tudo, menos o que mais interessa. 
Em que ponto da montanha estarei?» [p:128]

Debaixo de Algum Céu é um livro bastante especial. E, por algumas horas, senti-me a viver dentro deste prédio, que funciona como purgatório, permitindo-nos descobrir uma mensagem muito mais profunda. Ainda que o enredo se situe «numa cidade da província», podemos encontrá-lo ao virar da esquina. E, se calhar, até já habitamos nele.

«Alguns imaginam vidas de caminho, atrás do que lhes 
falta, como se o futuro fosse lugar e a felicidade 
um pouco de terra que os pés pudessem pisar» [p:154]


// Disponibilidade //
Bertrand: Livro | eBook | Livro de Bolso

Nota: O blogue é afiliado da Wook e da Bertrand. Ao adquirirem o[s] artigo[s] através dos links disponibilizados estão a contribuir para o seu crescimento literário - e não só. Muito obrigada ♥

18 comments

  1. Gostei muito de mais esta excelente sugestao :) O titulo inspira-me <3

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  2. Nunca li nada do autor, mas vou levar a sugestão.

    Um beijinho grande!

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    1. Entretanto já li outro, mas este foi o meu primeiro contacto com o autor e fiquei encantada *-*

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  3. Eu penso que num prédio as pessoas também não se conhecem....já passou o tempo em que todos os vizinhos se conheciam e conviviam. Hoje em dia, as pessoas mudam mais vezes de casa e isso também acaba por ditar um afastamento da vizinhança.
    Isabel Sá  
    Brilhos da Moda

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    1. Sim, é verdade, a permanência também acaba por ser menos duradoura!

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  4. Morar numa casa tem as suas vantagens, mas também tem desvantagens...
    Este livro, pelo bom resumo que a Andreia fez (como sempre), fez-me lembrar de um dos últimos livros do Lobo Antunes, onde aborda (à sua maneira) a vida dos moradores de um prédio com 4 ou 5 andares.
    Pelo que li, parece ser uma boa sugestão de leitura.
    Gostei muito da foto, muito adequada ao livro em causa.
    Continuação de boa semana, querida amiga Andreia.
    Beijo.

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    1. Como sempre vivi numa casa, acabo por não ter grande termo de comparação, mas adoro :)
      Ah! Sim, já ouvi falar desse, mas ainda não tive a oportunidade de o ler.
      Adorei e recomendo imenso a leitura deste.

      Muito obrigada, Jaime.
      Continuação de boa semana

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  5. Não conhecia nem a obra nem o autor, mas fiquei com curiosidade acerca do livro pela forma cativante com que escreves.
    E pela experiência de viver num prédio, muitas das vezes não conhecemos os vizinhos ou pouco conhecemos...

    http://arrblogs.blogspot.com/

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    1. Aconselho, é uma leitura maravilhosa!
      As pessoas tendem a cruzar-se com mais regularidade, mas não implica que se conheçam

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  6. É sim uma boa opção para conhecer, pois acho que ainda não tinha ouvido falar
    Beijinhos
    Novo post
    Tem post novos todos os dias

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  7. Do género de um livro que li há muito tempo " uma ilha dentro de casa"...uma historia simples de como entreter criancas num dia de chuva
    Kisssss

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  8. Ontem fui pela primeira vez à bertrand que abriu em espinho recentemente. Até gostei do espaço da loja :)

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