Identidade Cruzada #6

Fotografia da minha autoria


«E, depois, apenas o nada. Retorna, então, a brisa e a...»


A minha memória é um fio de algodão: é tão fina e destrutível, que, sempre que se rompe, é como se uma parte da minha existência se fragmentasse. E aquela velha máxima de que somos instantes, parece-me agora, nunca esteve tão certa. Mas o que sei eu da vida? Daqui a sete minutos - talvez menos, talvez um pouco mais - já me esqueci de tudo. Estes pensamentos nunca existiram. E eu quase não sei quem sou.

É triste chegar a este estado permanente de confusão, sem ter qualquer controlo neste desenrolar de ações. Deixei de ser protagonista, para passar a ser marioneta de uma doença que contamina a minha essência. Não tenho dores, mas tenho um vazio imenso. Há hiatos que não sei justificar - porém, em minha defesa, muitos deles nem me ocorrem. E pontos que ficam sem nó. O único conforto é saber que esta preocupação tem um prazo de validade mínimo. E, por mais que se repita, não tem peso suficiente para me angustiar, porque há-de desaparecer da mesma maneira que surgiu: sem eu querer. E, pior, sem eu dar conta.

Hoje, sinto, estou num momento bom de lucidez. Por isso, escrevo para que as palavras não me falhem, para que permaneça vivo este presente que insiste em fugir-me por entre os dedos. E escrevo, sobretudo, pela busca desenfreada por algum domínio das minhas faculdades mentais. Tudo desmorona dentro de mim, mas preciso de saber que sou capaz de não ficar reduzido a um pedaço de nada. Porque, pelo menos, sobrevivo numa lembrança física, num traço preto fino que me prende ao mundo. Mesmo que o tempo avance e eu seja cada vez menos seu.

Há uma brisa que me arrepia. A minha cabeça sente um peso ausente, uma espécie de congelamento que faz o meu cérebro entrar em pausa. Ouço vozes ao longe, mas não as distingo. Os rostos que me rodeiam estão ansiosos e algo turvos. Estou como a fachada desta minha casa: em ruínas. Com vidros partidos e outros estilhaçados. E sob uma luz ténue, que me desfoca a lucidez. Pouso a caneta. Já não sei o que faço aqui. Se ao menos eu me lembrasse...


[Joaquim, 71 anos, a perder-se de si]

35 comments

  1. Que intenso que é ler palavras assim, que descrevem tão bem as tão comuns, infelizmente, demências que consomem muitos dos nossos. É terrível para eles e para quem os rodeia. Vê-los a descontruírem-se involuntariamente, sem que nada possamos fazer para ajudar a eliminar sentimentos negativos...
    Muito bom, minha querida!
    Um beijinho grande*

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  2. Triste e tocante. Infelizmente acontece com mais frequência do que gostaríamos e todo mundo, tanto a pessoa, quanto seus familiares, acabam sofrendo junto.

    Beijo!
    Cores do Vício

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    1. Pois é. E, em muitos casos, são as pessoas à volta que acabam por sofrer mais

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  3. Impressionante estas palavras do Sr. Joaquim li um livro sobre este problema muito bom que é Cair Para Dentro de Valério Romão, aproveito para desejar a continuação de uma boa semana, enquanto não me esqueço das palavras.....

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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  4. UAUUUU!! Triste que me vieram as lágrimas aos olhos, mas muito muito bom!!!

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  5. Caramba... das coisas que tenho mais receio é de perder a mina memoria... :/ A minha mae esta debilitada fisicamente mas continua com uma memoria invejavel <3 e o meu pai faleceu com a idade deste senhor...
    Mais uma vez obrigada pela partilha das tuas palavras tao sentidas.
    Beijinhos
    https://matildeferreira.co.uk/

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  6. Texto com tanto de intenso como de fantástico.
    E a foto também está um espanto!
    Bjs

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  7. Que texto tão bonito Andreia! Nunca paras de surpreender, obrigada por partilhares o teu talento com o mundo! Acho que é essencial irmos guardando memórias físicas, desde textos a fotografias. Em jeito de manter o passado vivo!
    Beijinho, Ana Rita*
    BLOG: https://hannamargherita.blogspot.com/ || INSTAGRAM: @rititipi || FACEBOOK: https://www.facebook.com/margheritablog/

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  8. Bom dia. Obrigada pelo tocante texto :))

    Hoje :- Sorriso camuflado

    Bjos
    Votos de uma óptima Quarta - Feira.

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. Assim eu imagino, quem o lê não se cansa,
    gostei de ler esse texto escrito na perfeição
    aonde poderá não chegar a presença humana
    não impede de lá poder chegar a imaginação!

    Tenha uma boa tarde Andreia.

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  11. Que texto mais lindo e mais tocante, adorei
    Beijinhos
    Novo post //Intagram
    Tem post novos todos os dias

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  12. Fez-me logo lembrar a doença de Alzheimer deve ser terrível sentirmos que estamos a perder a nossa identidade, as nossas memórias, o que somos.

    Excelente texto e duro testemunho de Joaquim, gostei imenso.

    Beijinho muito grande! :*

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  13. Texto tocante e também muito triste. Nem imagino como deve ser perder a memória, já que isso é praticamente tudo o que somos.

    Iasmin Guimarães | E agora?

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  14. Que palavras que despedaçam o coração querida Andreia. Nem imagino o que será este estádio..

    THE PINK ELEPHANT SHOE

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    1. Sentir que não temos controlo sobre nós deve ser das piores coisas :/

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  15. um texto tocante.

    r: eu estava a pensar num encontro talvez, um desafio para fazer nos blogs. Não sei , o que achas ?

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  16. De todas as terríveis doenças de que podemos padecer, esta é a que mais me perturba e mete medo.
    Como se de repente nos reduzissem à condição de escravos da nossa memória.

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  17. E infelizmente há tantos Joaquins por esse mundo fora, a memória e a pessoa nao saber quem é ,deve ser das coisas mais tristes que existem.
    Adorei o texto, linda.
    Beijinhos

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  18. Muito intenso o texto e ao mesmo tempo nos faz refletir muito na vida, gostei muito do texto, Andreia bjs.
    http://www.lucimarmoreira.com/

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  19. Em dia de escrita sobre memórias, o teu texto fez-me lembrar o alzeimer. Uma doença complicada.

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  20. O que mais me impressionou foi a fotografia: uma casa velha como metáfora da doença, pelo menos, foi assim que interpretei a fantástica fotografia.

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  21. obrigado, meu bem. de facto o conceito faz com que os produtos sejam, ainda mais, apetecíveis :D

    acho que perder a memória, tal como a visão, deve ser qualquer coisa de terrível. não quero, sequer, poder imaginar!
    o texto está incrível, meu bem!

    NEW GET THE LOOK POST | READY… SET… COLD DAYS ARRIVED.
    InstagramFacebook Official PageMiguel Gouveia / Blog Pieces Of Me :D

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  22. A minha avó, depois de o meu avô falecer, ficou muito mal e fico sempre triste quando me apercebo que ela confunde as coisas, troca o passado e o presente e por vezes nem se lembra do meu nome. É triste e assustador pensar que ela está presa nos pensamentos dela. :(

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  23. Intenso! Felizmente, não conheço alguém que esteja a passar por isso, mas sendo uma das áreas em que posso atuar, sei\acredito o quão angustiante poderá ser perdermos assim a nossa identidade, sermos testados pela nossa própria cabeça, pelo nosso próprio eu. Não nos lembrarmos dos momentos, das pessoas, de onde estão as coisas, de onde é a casa de banho... É tão triste.
    Não sei se já viste, mas aconselho imenso este filme sobre este tema: Still Alice.

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