Uma Dúzia de Livros // Janeiro

Fotografia da minha autoria

Tema: Um livro escrito por uma mulher

A partida para um local desconhecido provoca sempre um misto de sensações. Porque há um lado de entusiasmo imenso, mas também pressupõe uma certa gestão de expectativas. E o mesmo acontece na literatura, quando nos distanciamos da nossa zona de conforto e abraçamos leituras que nos desafiam. Independentemente de serem áreas distintas, há um princípio comum: a beleza inerente ao regresso a casa - que, a nível literário, significa um género ou um[a] autor[a] que nos fale ao coração e que nos transmita segurança.

O meu primeiro contacto com Donna Tartt aconteceu por acaso, mas marcou-me profundamente, ao ponto de sentir que O Pintassilgo [Entrelinhas #48] é um dos livros da minha vida. Quando decidi participar n' Uma Dúzia de Livros, criado por Rita da Nova, e vi o tema de janeiro, a minha escolha foi quase óbvia. Hesitei por momentos, mas algo me dizia que a decisão só poderia ser esta. É que a autora tem uma forma extraordinária de contar histórias, tornando a sua escrita viciante. E depois de um primeiro encontro tão positivo e inspirador, fazia todo o sentir voltar a arriscar nela.

A História Secreta tem um ritmo mais lento, com partes em que se parece demorar em factos que não são assim tão centrais. Por isso, é uma narrativa que exige uma maior concentração do leitor e, inclusive, o espírito certo para a desvendarmos e compreendermos. Porque parece que tudo é explanado em pleno, mas as entrelinhas levantam pistas e várias dúvidas. Há sempre um toque nebuloso, como se existisse um filtro a impedir-nos de analisar, profundamente, as personagens. O que é curioso - e é, também, neste aspeto que se destaca a minúcia e mestria de Donna Tartt - é que temos conhecimento da ocorrência de um homicídio e quem são os assassinos e a vítima precocemente. No entanto, o livro não perde a sua atmosfera enigmática, que nos inquieta: não só porque queremos descobrir as motivações, mas também pela forma leve e despreocupada com que é introduzido no enredo [partilhado sempre através do ponto de vista de Richard], transparecendo uma calma duvidosa. Mas será que é exatamente assim?

A história foca-se num grupo de estudantes peculiar e algo disfuncional. Apesar disso, não deixa de ser apaixonante, na medida em que nos envolve nas suas ligações e nos desperta um interesse quase visceral de entendermos a sua essência social e individual - há atitudes tão banais e outras tão desviantes, que, por vezes, ficamos no limbo, sem saber o que esperar. Com o desenrolar dos acontecimentos, permanece a sensação de uma certa tensão e alguma incoerência na maneira como se tratam. Em contrapartida, é evidente o constante desejo de pertença. O fazer parte de um todo, mesmo que implique comportamentos perigosos, é uma necessidade forte, até porque existe uma procura constante de validação num meio tão restrito. E, através de um segredo comum, tornam-se confidentes e têm uma breve ilusão de normalidade.

Esta obra, que transita entre o presente e o passado, coloca-nos em confronto com uma experiência divina/paranormal. Porém, ultrapassa-a, uma vez que aborda temas cruciais como a homossexualidade, a família [e os seus diferentes tipos], a fragilidade humana, as aparências, a saúde mental, a chantagem, os complexos, a exclusão social e a convivência por fachada. Além disso, leva-nos a refletir sobre o quanto a nossa vida muda após conhecermos determinadas pessoas. Mas, naturalmente, o grande foco prende-se com o crime e com o impacto do mesmo nos seus protagonistas. O comportamento do grupo é altamente reprovável, ainda assim, é interessante perceber como tudo se processou e como é que cada etapa afetou cada um dos elementos. Porque o choque assume níveis diferenciados e manifesta-se em momentos, igualmente, distintos, quebrando a letargia que os consome.

A História Secreta sustenta-se na tragédia, na [in]sanidade, na mentira, na malícia, em estados de loucura e num jogo psicológico. E permite-nos viajar pelos limites da moralidade e da legalidade, destacando o peso da culpa perante uma morte calculada para camuflar outro ato criminoso. Atendendo às consequências, há dúvidas que permanecem: como é que não cedem à pressão? Até quando é que agirão sem levantar suspeitas? Neste livro, Donna Tartt criou uma narrativa intensa, que nos faz questionar a nossa integridade, o peso da consciência, a quantidade de máscaras que escondemos e aquilo que somos capazes de fazer quando perdemos o controlo.

Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Surpreendeu-me a facilidade com que conseguiram incorporar-me nas suas existências cíclicas e bizantinas. Estavam de tal maneira acostumados uns aos outros que talvez a minha presença lhes parecesse refrescante» [p:89];

«Meu Deus, o que é que eles estão a fazer? Voltei ao hall de entrada, repus o papel em cima da mesa, e saí a correr pela porta fora com o meu livro debaixo do braço» [p:146];

«Estava a pensar, isso sim, em pequenas coisas. Nos insultos, nas insinuações, nas crueldades mesquinhas. Em centenas de pequenas humilhações impunes que se vinham acumulando dentro de mim há vários meses» [p:226];

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