Entrelinhas #77

Fotografia da minha autoria

«O relato hilariante das andanças de Mino»

As minhas visitas a lojas como o Porto Alternativo e a Cash Converters são cada vez mais frequentes, sobretudo, quando vou à procura de livros aleatórios, que possam sair da minha zona de conforto ou, simplesmente, que me permitam cruzar com autores que, talvez, não me ocorressem. Além disso, e porque sinto que nunca é de mais realçar estes aspetos, é possível encontrarmos exemplares em excelente estado, por um preço, quase sempre, irrisório. E isso aconteceu-me na última compra, na qual, por uns meros 50 cêntimos, adquiri À Noite Logo Se Vê, de Mário Zambujal.

É sempre um risco abraçar escritores desconhecidos. Por outro lado, é igualmente entusiasmante. E, claro, desafiante. Sem qualquer referência prévia, iniciei a leitura com expectativas brandas, apesar de toda a minha curiosidade. No final, fiquei com uma certeza: não foi uma narrativa que me tivesse arrebatado, porém, revelou-se uma agradável surpresa e companhia, muito pela construção de texto - leve, proximal, com bastante humor e sem grande complexidade. Ou, melhor, não é que o enredo seja previsível, porque é necessário estar atento a certos detalhes não tão óbvios e, até, surreais. Mas o desenvolvimento da ação é objetivo, não se perdendo em descrições demoradas e arrojadas. E isso confere um ritmo de descoberta mais célere, absorvendo cada desconstrução num só fôlego.

Há um mistério no Roseiral [lugar central da história]. Uma calamidade. E uma série de acontecimentos sem aparente explicação. Através de um «relato hilariante», que alterna entre a fantasia, a paródia e o mundo real, há um constante foco no sobrenatural, na magia e nas ciências ocultas. Mesmo sem apresentar aquela carga intensa de um thriler, por exemplo, desconcerta e inquieta em algumas passagens, até porque determinados episódios provocam dúvidas profundas. E a narrativa acaba por estender-se numa atmosfera paralela, desvendando pouco do mistério que, no fundo, desencadeia o enredo: há quatro anos que não nascem crianças naquela localidade.

À Noite Logo Se Vê espelha, também, a ambição. O viver para o trabalho e as respetivas consequências na vida pessoal e familiar. E, inclusive, retrata o contraste entre a noite e a sua clareza, pois expõe a verdade. Afinal, existe sempre um esclarecimento. Com alguns desvios para nos colocar a par de outras histórias e personagens caricatas, o livro faz-nos rir do insólito. E o final intrigante deixa perguntas em aberto. Certamente que procurarei outras obras do autor.

Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«No tempo inteiro de quatro anos, quatro, não nasceu criança, uma que fosse, menino ou menina, na aldeia do Roseiral» [p:11];

«Sabe, Miralva, é sempre à noite que tudo se vê. O sobrenatural e o próprio naturalzinho circundante escondem-se nas trevas do dia. Toda a claridade é nocturna!» [p:36];

«Todo o mistério tem explicação, podendo a explicação, isso sim, ser inexplicável» [p:53];

«As estradas, Natinha, são como as pessoas: dão as suas curvas, têm altos e baixos, mas encontram o seu destino» [p:65];

«Não tenho pressa, acalmo-o, e ele pesquisa na minha cara outros sinais de loucura. Natural: toda a gente sofre de pressa, vagar é marginalidade como outra qualquer» [p:80].

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