SEPARAR O ARTISTA DA OBRA: UTOPIA OU NECESSIDADE?

Fotografia da minha autoria


«Todos os artistas têm em comum a experiência da distância 
insondável que existe entre a obra e suas mãos»


A arte tem múltiplas vozes. É uma extensão da nossa identidade. E um passaporte para a liberdade de ser, alargar horizontes, pensar de maneira diferente e, até, criar. Nem sempre temos uma noção clara da sua importância, mas a verdade é que é um refúgio quando a vida nos vira do avesso, colocando à prova a nossa resiliência. Constituída por figuras de vários departamentos, há personalidades que crescemos a admirar, enquanto outras nos surpreendem durante o percurso. Mas quando a realidade se revela antagónica à nossa perceção, existe uma questão que se impõe: seremos capazes de separar o artista da obra?

UTOPIA OU NECESSIDADE

A resposta terá sempre áreas cinzentas, até porque dependerá muito das manifestações artísticas em causa. Reparem, com a literatura ou o cinema podemos fazer essa distinção com maior facilidade, uma vez que o produto não implica uma reação imediata. No entanto, na comédia, o cenário muda. Como mencionou Guilherme Duarte, num artigo para o Sapo 24, a piada só é piada se o público se rir. Porém, um filme, um quadro ou um livro não necessitam dessa validação para o serem. Portanto, a nossa empatia tem um papel preponderante, podendo condicionar o impacto de determinados conteúdos - independentemente da sua natureza.

Este tema é bastante complexo, pois há inúmeros aspetos a ter em consideração. Embora a arte não seja, totalmente, isenta do seu criador, também não o representa em exclusivo. Por essa razão, parece-me seguro reconhecer que não são a mesma coisa e que é benéfico dissociá-los. Ainda assim, talvez necessite de tempo, sobretudo, quando procuramos serenar dúvidas e preocupações. A arte é maior que quem a produz, porque, a partir do momento em que é partilhada, torna-se um bem comum. Um traço dependente das conjeturas do seu recetor. E, aparentando ter vida própria, sustenta-se numa linguagem patrimonial.

Os escândalos não são uma novidade, mas têm-se propagado. Caravaggio foi acusado de difamação e agressão. Louis C. K. foi acusado de assediar mulheres. Michael Jackson foi acusado de pedofilia. J. K. Rowling não sofreu acusações desta magnitude, mas tem-nos brindado com tweets pouco íntegros. E estes são apenas alguns exemplos inquietantes, que nos deixam no limbo. Alguém escreveu, a propósito de todas as polémicas, que «as máscaras têm que cair, para se fazer justiça». E eu concordo. Mas se continuarmos a consumir obras com as suas assinaturas, o que é que isso revela sobre a nossa essência?

OS DILEMAS MORAIS

Encontramo-nos, então, num impasse paradoxal. Porque custa-nos a compreender se é correto ou errado, enquanto espectadores, apreciarmos a arte de quem se revela um ser humano questionável. A desilusão é bastante intensa, até porque há muitas figuras que se tornam referências. E fazer essa gestão emocional requer algum discernimento e desapego. Não obstante, acredito que é fundamental não confundirmos contextos, visto que conhecemos o profissional, não a pessoa. E mesmo que as duas partes coabitem dentro do mesmo corpo, continuam a ser componentes individuais. Influentes uma na outra, sim, mas autónomas.

Será mais lógico, por esta ordem de pensamentos, distanciar os dois mundos, pois não seria justo julgar um produto que em nada representa e estimula esse drama. Além do mais, valorizá-lo não significa que estejamos a compactuar com os atos e/ou ideologias do artista. Simplesmente, focamo-nos no seu trabalho e permitimos que seja ele a inspirar-nos. Em simultâneo, importa perceber que serem boas ou más pessoas não os torna mais ou menos talentosos. E isso não legitima comportamentos condenáveis, impede-nos é de sentenciar projetos.  

O problema é que há dois cenários que nos apoquentam: continuarmos a relacionar-nos com a produção, após descobrirmos a verdade sobre o seu autor ou arriscarmos consumi-la, pela primeira vez, depois de sermos alertados para a mesma. E esta realidade bipartida alimenta um conflito interno, pois é doloroso afastarmo-nos de alguém que admiramos. Contudo, será que temos que o fazer obrigatoriamente? Ou podemos, apenas, demarcar bem a fronteira do que é a obra e do que é o Homem? Pessoalmente, procurarei sempre seguir a segunda rota descrita.

SEPARAR A ARTE DO ARTISTA

A resposta a este dilema não é universal. Nem tem que o ser. Por isso, devemos optar pela posição que nos deixa mais confortáveis e de consciência tranquila. A arte é uma representação e devemos ter sensibilidade suficiente para não embarcarmos em extremismos. Talvez nem todos consigamos separar a arte do artista. Mas sinto que é essencial guardarmos esta afirmação de Daniel Radcliffe, que se refere a Harry Potter, mas que pode ser aplicada em qualquer contexto.


Ninguém deve ter o poder de se intrometer entre as emoções e o sentido de pertença que uma obra desperta no seu público. Nem mesmo o autor.

Comentários

  1. "Ninguém deve ter o poder de se intrometer entre as emoções e o sentido de pertença que uma obra desperta no seu público. Nem mesmo o autor", concordo plenamente.
    Um abraço e boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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    1. Acredito mesmo nisso! Se as obras, independentemente da sua natureza artística, nos inspiram e ajudam de alguma forma, nada deve colocar isso em causa.

      Obrigada e igualmente, Francisco

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  2. Não é fácil separar a arte do artista...acabamos, quase sempre, por juntar os dois lados...

    Isabel Sá  
    Brilhos da Moda

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    1. Pois é, até porque, consciente ou inconscientemente, acabamos por estabelecer um elo entre ambos

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  3. Gostei muito desta reflexão, de facto, muitas vezes não separamos o artista da sua arte.

    Beijinho grande!

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    1. Muito obrigada, minha querida!
      Torna-se difícil, até porque não é um processo intuitivo e acabamos sempre por aliar as duas componentes

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  4. Não me parece fácil separar a obra do artista, seja que obra for. A literária não foge à regra

    Deixando cumprimentos

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    1. É uma atitude que requer tempo e muita predisposição, porque não é mesmo nada fácil. E, em boa verdade, não tem que ser uma prática obrigatória, mas também ajude quando uma obra nos diz tanto, mas o seu criador acaba por nos desiludir de alguma forma

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  5. Gostei bastante do artigo de hoje, sempre estou aqui acompanhando seu blog. Tenho aprendido muitas coisas legais aqui.

    Beijos 😘.

    Meu Blog: Web Dicas Online e Aplicativos

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  6. Acho que nunca é mesmo uma coisa facil de o fazer, mas devemos sempre tentar
    Beijinhos
    Novo post

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  7. No meu entender acho que quem esteve mesmo muito mal foi o otário do ex-marido dela que se quis aproveitar da situação... quanto MJ, este ainda era vivo e desde a cena da varanda que nunca mais consegui ouvir a música dele :(

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    1. Não estou a par da polémica com o ex-marido. Estava a referir-me ao que ela tem partilho sobre as pessoas transgénicas.
      Pois, compreendo

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    2. O marido aproveitou esta onda de polemicas para vir dizer que o estalo que deu à escritora foi bem dado... (e toda a gente sabe bem que nao foi um so estalo mas sim anos a fio de violencia domestica :( )

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    3. Que estupidez! Como se a agressão fosse resposta. Ela até pode dizer as maiores barbaridades sobre determinados assuntos, mas nada legitima esse tipo de comportamentos. O ex-marido bem que ganhava mais se tivesse permanecido calado.

      Só agora é que reparei que escrevi «partilho» e não «partilhado»

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  8. A última frase é mesmo poderosa, e resume tudo o que penso acerca do assunto.
    Por acaso sempre consegui separar bem a arte do artista, apesar de a mesma já não saber tão bem após saber a verdade sobre o criador. Ainda hoje continuo a ouvir as músicas de MJ, mesmo sabendo que ele era, provavelmente, um pedófilo - ele era um génio musical e, por muito que a sua personalidade fosse duvidosa, ninguém lhe tira isso. Quanto à J.K Rowling, a ferida ainda é mais recente, mas ainda assim continuo a apreciar a saga como ela é, se me deu certas mensagens de amor, de coragem até agora, não vai mudar porque ela não se revelou ser a pessoa que admirava.
    Beijinhos
    Blog: Life of Cherry

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    1. Estava a escrever a publicação e a pensar se tinha algum exemplo em que me tenha custado fazer esta separação, mas, de um modo geral, ainda que fique impressionada com essa divergência/incompatibilidade pessoal, não soou nenhum nome no meu pensamento.
      Tal e qual, também ainda ouço músicas dele, porque continuam a fazer sentido. Porque, enquanto artista, era um génio e nada belisca o percurso musical que construiu. Mas entendo quem se tenha distanciado. Simplesmente, para mim, não me faz sentido privar-me da sua arte.
      Como demorei a perder-me em Harry Potter, acabei por não me relacionar com J. K. Rowling a esse ponto, mas se até a mim me custou toda a discrepância, imagino a quem cresceu com os seus livros. «[...] se me deu certas mensagens de amor, de coragem até agora, não vai mudar porque ela não se revelou ser a pessoa que admirava», assino por baixo. É mesmo isto!

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  9. Para mim é muitíssimo importante SEPARAR O ARTISTA DA OBRA.

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    1. Também acho fundamental, até porque não são a mesma coisa. Embora se influenciem, não deixam de ser entidades autónomas

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  10. Eu separo sempre, pelo menos acho que o faço na maioria dos casos. A obra pode ser genial para nós e o autor, seja qual for o género, pode ter uma personalidade que não é minimamente compatível connosco. No entanto, caso o autor tenha cometido alguma atrocidade - violações, terrorismo, homicídio, ... - já não consigo separar tão bem e tenho tendência a tentar ignorar tanto o obra como o autor.

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    1. Exato! Até porque a obra nem sempre o reflete. Quantos autores temos, por exemplo, a escreverem sobre temas mais perturbadores, com protagonistas psicopatas, e são pessoas pacatas? Assim como acontece o oposto. Por isso é que acho muito importante fazer essa distinção.
      Sim, compreendo. Nunca será um tema linear

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  11. Pessoalmente acho que depende da obra e do autor, mas sim, às vezes é realmente necessário!

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube

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    1. Entendo onde queres chegar. E acho mesmo importante percebermos que obra e autor não são um espelho, mas, lá está, não é sempre um processo intuitivo

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  12. Acho que não consigo fazer essa separação em algumas situações. Actualmente tenho bastantes livros da Marion Brandley Zimler e confesso que tenho alguma dificuldade de avançar com a leitura das suas obras depois de descobrir a polémica a que a autora estava envolvida. Uma vez que ela já morreu já não ganhará mais dinheiro e prestígio e por isso talvez ainda regresse aos seus livros. No que respeita à J. K. Rowlings, apesar de não concordar com as suas ideias acho que, tal como toda a gente, tem o direito de exprimir as suas opiniões. Desde que não passe das palavras à acção para mim ainda está dentro do que é razoável para mim. Boas leituras.

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    1. Não é um processo assim tão intuitivo, por isso, é natural que tínhamos mais dificuldades nessa separação. E, claro, depois depende da polémica em si. Embora sinta que não é correto prejudicar a obra só porque o seu autor se revelou uma pessoa pouco correta.
      Confesso que não estou a par da polémica com Marion Brandley Zimler, mas vou informar-me.
      Sim, tem todo o direito a fazê-lo, mas há formas e formas de o fazer. Como em tudo na vida

      Igualmente!

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