Entrelinhas #80

Fotografia da minha autoria

«(...) a autora volta a presentear-nos com um valioso tesouro»

A construção de uma biblioteca pessoal é um sonho em movimento. O ritmo pode ser mais desacelerado, porém, com paciência, dedicação e amor as estantes compõem-se: em número e em diversidade. Porque preservo essa inocente curiosidade de ler autores fora da minha bolha. Por mais que me repita, acho gratificante este encurtar de distâncias. Faltar-me-á tempo para me perder em todas as obras que ambiciono, mas dou o meu melhor. E, sorte a minha, já consegui riscar mais um nome da minha lista: Isabel Allende.

Contos de Eva Luna marcou a minha estreia e deixou-me fascinada com a quantidade de mundos presentes na sua escrita. Porque é criativa, divertida, aprofundada, com personagens detalhadas, coesas e que apelam a várias camadas da nossa personalidade, do nosso eu - interior e exterior. No fundo, apresentam tanto do ser humano, que é possível criar uma comparação com a nossa vida. Mas há algo a considerar: a individualidade. Na medida em que existem inúmeros caminhos, histórias, sentimentos e sensações, potenciando uma reflexão sobre a multiplicidade e a complexidade dos nossos pares. Há tanto que ainda não experienciamos e que não conhecemos, mas isso não implica ausência de empatia. Depende sempre da forma como expomos os nossos pensamentos. E nestes contos tudo flui de um modo natural.

No total, são 23 histórias independentes, maioritariamente narradas sob o olhar feminino, sem esquecer o conjunto de vozes secundárias, expondo uma consciência coletiva. Assim, encontramos partilhas plurais, que revelam tristeza, privações, maus-tratos, mas também uma dose de esperança. Nesta abordagem múltipla, somos, portanto, confrontados por questões de poder, de paixão, de resistência, de vingança, de morte, de solidão, de dor, de entreajuda. E é ainda percetível a representação de assuntos pertinentes, atuais e que necessitam de máxima atenção, como é o caso da eutanásia, do tráfico de órgãos, da violência - verbal e física - e do papel da mulher. Percebi, posteriormente, que muitas das personagens são transportadas de Eva Luna. Contudo, a sua leitura prévia não é imprescindível para a compreensão desta obra em questão. Contudo, não deixa de ser interessante constatar este elo familiar.

Isabel Allende, em Contos de Eva Luna, faz-nos viajar por diferentes locais e épocas. Mas também por personalidades distintas. E mesmo que subsistam em planos opostos da nossa existência, constrói a ponte que nos permite alternar entre a falha e a superação, entre o afeto e a pobreza de espírito, entre o amor e a falta dele, entre os prazeres e os tormentosos estados de alma. Com as suas descrições simples e mágicas, conhecemos vidas cheias de intensidade e misticismo, lembrando-nos, inclusive, Xerazade, com os seus contos viciantes, de sentimentos profundos. E, claro, prova o quanto as pessoas nos marcam, mudando-nos ou revelando quem somos.

Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Tu pensas com palavras, para ti a linguagem é um inesgotável fio que teces como se a vida se fizesse ao contá-la. Eu penso em imagens congeladas numa fotografia» [p:9];

«Desde pequeno que se propôs ser rico, com a ingénua intenção de conseguir pelo dinheiro a segurança que não obtivera na família» [p:77];

«Fiquei sozinho para ver se aprendia alguma coisa, mas soube desde o princípio que regressaria para os meus. Nada pode reter um guerreiro por muito tempo contra a sua vontade» [p:102];

«O tenor pediu aos músicos que continuassem a tocar a mesma valsa para sempre, porque compreendeu que com a última nota o Capitão acordaria do sonho e que a recordação da menina Eloísa se esfumaria definitivamente» [p:137];

«- Perseguiste-me sem trégua. Não consegui amar ninguém em toda a minha vida, apenas a ti - murmurou ele com a voz embargada pela vergonha» [p:209].

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