The Bibliophile Club // Março

Fotografia da minha autoria


Tema: Um livro escrito por/sobre mulheres


O despertar tardio para a leitura transmite-nos a sensação de ter que correr contra o prejuízo. Porque há obras incontornáveis. E porque as queremos descobrir com sofreguidão. No entanto, nem todas aquelas que se tornaram referências suscitam-nos o mesmo entusiasmo. Mas procuramos minimizar os danos e tirar as nossas conclusões. E eu passei demasiado tempo a adiar uma história que nos desarma apenas por escutarmos o seu nome. É que, quando fechamos o livro, sabemos que não fica presa às suas páginas: teve forma no mundo que desbravamos.

O Diário de Anne Frank sempre me fez questionar a humanidade. Angustiava-me. E sussurrava-me o quanto não estava preparada para ler sobre o assunto. E eu acredito mesmo que cada leitura tem o seu momento certo. Portanto, tendo noção do desfecho, senti o arrepio da brutalidade e o desrespeito profundo pelos direitos humanos. Além disso, tornou-se inevitável estabelecer um paralelismo com a atualidade, uma vez que, por maior que seja a nossa perceção da catástrofe, continuamos a ser, muitos de nós, privilegiados por não termos qualquer ferida a relembrar-nos que éramos apenas um número e uma raça inferior. Em todas as ocasiões que me cruzei com este exemplar, senti o meu coração despedaçado, mas igualmente grata: mesmo que o mundo não seja um porto seguro pleno - quanto desta história se voltará a repetir? -, não carrego na minha identidade todo este sofrimento. E pude crescer sem temer o meu futuro.

Alimentei, assim, a dúvida e prolonguei a minha inocência, até que li o tema de março para o The Bibliophile Club e percebi que não fazia sentido continuar a evitar este contacto literário. Independentemente do conteúdo, sei que conquistei maturidade suficiente gerir os seus contornos. E foi quando me despi deste receio que encontrei uma narrativa absolutamente envolvente, sem reservas, com uma certa leveza e humor na descrição das inúmeras vivências. E isso, em parte, sossegou-me. Porque conheci uma Anne em desenvolvimento, com conjeturas muito pertinentes e observações que quase nos fazem esquecer que era uma adolescente a quem foram negadas oportunidades pessoais e sociais. Sinto que é simples relacionarmo-nos com ela, porque há um lado muito puro - e sem filtro - na sua escrita. Além disso, é bastante autocrítica e autoconsciente, o que nos inclui ainda mais nos seus pontos de vista e na sua história. E fiquei fascinada com o seu crescimento, sobretudo, intelectual e com as ligações que se estabeleceram naquele Anexo. Houve vários episódios dramáticos, melancólicos e de profundo desânimo. Em contrapartida, Anne conseguiu transmitir-nos uma lição valiosa de esperança. Na medida em que, no meio do caos, encontrou um propósito. E não deixou de sonhar.

N' O Diário de Anne Frank somos confrontados pela guerra, pela perseguição aos judeus, pela liberdade comprometida e pela diferença de tratamento. Através do seu relato regular, também acompanhamos a admiração comovente pelo pai e os sentimentos oscilantes pela mãe. Em simultâneo, exploramos a angustia, o medo, a inquietação, os diferentes estados de espírito, o convívio inconstante, o isolamento, a clandestinidade e o futuro em suspenso. É impressionante como tudo adquire outro impacto quando somos privados do básico; de coisas que deveriam ser intrínsecas à nossa existência. Porém, desintegrando a narrativa do contexto, existem passagens que nos fazem esquecer o cenário tenso e desfrutar de peripécias banais, porque o discurso da protagonista consegue ser sereno, ainda que não oculte nenhuma das componentes: a que se resume à vida no Anexo e a que se destina à guerra. Deste modo, partindo da sua veia de diarista, deixou-nos um testemunho intemporal. E de máxima relevância.

Esta obra é agridoce, pois evidência o pior e o melhor do ser humano - perante toda a tragédia, reconforta compreender que o espírito de entreajuda não se perdeu por completo, atendendo a que existia sempre alguém disposto a ajudar e a correr esse risco. Pela voz de Anne, viajamos por pensamentos, memórias, receios, ações, transformações comuns e individuais e desabafos que permitiam salvaguardar a sua sanidade mental. É uma realidade triste, que nos marca profundamente. Porque é um ponto sem retorno. No mês que se exalta o género feminino, mergulhei na história de uma menina que não pode tornar-se adulta, uma vez que lhe foi negado esse acesso; uma vez que lhe veteram o direito a uma vida em liberdade. E é, também, por ela que não descuro a luta, a sorte e o privilégio que é ser mulher.


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«As camas desfeitas, as coisas do pequeno-almoço sobre a mesa, meio quilo de carne de gato na cozinha - tudo isto dava a impressão de que tínhamos partido à pressa. Mas não estávamos interessados em impressões. Queríamos apenas sair dali, fugir e chegar ao nosso destino em segurança. Mais nada importava» [p:37];

«Tudo o que posso fazer é esperar, tão calmamente quanto possível, que tudo acabe» [p:113];

«Quero amigos, não admiradores. Pessoas que me respeitem pela minha personalidade e pelas minhas ações, não pelo meu sorriso lisonjeador. O círculo de pessoas à minha volta seria muito mais pequeno, mas que importa, desde que fossem sinceras?» [p:284].


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Comentários

  1. Conheço bem a história deste livro, já estive ao pé da sua casa em Amesterdão, mas infelizmente nunca li o seu diário, uma falha minha, aproveito para desejar a continuação de uma boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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    1. Adorava poder visitá-la! Deve ser uma experiência arrebatadora
      Obrigada e igualmente

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  2. Li o livro na escola, na aula de Português e gostei imenso. É um livro incrível que nos mostra quão cruel pode ser o ser humano. Hei-de voltar a lê-lo.

    Beijinho grande! :*

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    1. R: Infelizmente já não tenho exemplares. Mas posso ceder-te com todo o gosto o ebook =)

      Beijinho grande!!!

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    2. Tem uma energia completamente transformadora, até porque nos faz repensar a nossa caminhada!

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    3. Oh, teria todo o gosto! Muito obrigada <3

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  3. Li este livro nova, perto da idade de Anne, e foi para mim arrasador, não pelo conteúdo, como tão bem dizes, que nos esquecemos por vezes da fase aterradora em questão, mas porque neste caso era real eu já sabia o fim... o aterrador e cruel fim...

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    1. Surpreendentemente, o conteúdo acaba por ter um traço mais leve.
      Imagino! Ler perto dessa idade deve ter um impacto surreal :o

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  4. Olá Andreia
    Eu passei por essa obra no início do secundário, mas olha que tu estás cada vez mais pro a fazer critica literária. Gostei muito da tua resenha.
    xoxo

    marisasclosetblog.com

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    1. Muito, muito obrigada! É gratificante ter esse retorno *-*

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  5. É um livro que espero ler em breve! :P

    www.amarcadamarta.pt

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  6. As tuas palavras, Andreia, deixam marcas como as palavras da judia alemã.

    Como podes imaginar, li a versão original aqui e, a tradução portuguesa, era eu ainda adolescente.

    A composição da tua fotografia é absolutamente brilhante.

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  7. Tambem demorei muito tempo a ler este livro pela mesma razão que tu. Comprei-o quando fomos a Amesterdão em 2015 e recomendo ;)
    Beijinhos
    https://matildeferreira.co.uk

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    1. O tema deixa-nos logo em alerta.
      É daqueles livros que todos deveriam ler :)

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  8. Já li este livro 3 vezes, absorvi sempre coisas diferentes em cada leitura.
    Existe um que supostamente conta os últimos meses no campo de concentração mas ainda não tive coragem de ler, não sei se quero perder a imagem que criei da Anne na minha cabeça..

    Sonha mas Realiza

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    1. É daqueles livros que sei que vou querer reler :)
      Esse não conhecia, mas acho que vai ser precioso redobrar a coragem, porque a angustia será muito maior

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  9. Li no 7.º ou 8.º ano e foi um livro que me marcou. Ando a querer reler há algum tempo, mas ainda não tive coragem.


    A Sofia World

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    1. Lê-lo em idades mais novas, acredito, deve ter um impacto ainda maior!

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  10. Uma leitura a fazer, é muito interessante, já que nos transmite um olhar por dentro do terror que então se vivia.
    Já estive na casa dela, que também vale a pena visitar.
    Andreia, continuação de boa semana.
    Beijo.

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    1. Sem dúvida! É um testemunho de máxima importância *-*
      Espero, um dia, ter a oportunidade de a visitar

      Obrigada e igualmente

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  11. Vivo a um pulo de Amesterdão, contudo, nunca consegui entrar na Casa de Anne Frank. As longas bichas à porta, assustaram-me.

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  12. Mais um que não conhecia, mas parece ser bastante bom para ler e conhecer
    Beijinhos
    Novo post
    Tem post novos todos os dias

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  13. Já li o livro e tal como tu, dei por mim muitas vezes a questionar a humanidade!

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram

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  14. Este é um dos melhores livros que já li. E foi escrito por uma criança com uma mentalidade mais adulta que muitos, hoje em dia.
    Acredito que se teria tornado uma grande mulher, se tivesse sobrevivido ao tormentos que a vida lhe impôs.

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    1. Verdade! A maturidade dela é impressionante *-*
      Tenho a mesma crença que tu, confesso

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  15. Já li "O diário de Anne Frank" duas vezes e foi um livro que me marcou.

    Beijinho
    Carla Ribeiro - Blog

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  16. Não tenho a certeza, mas creio que foi a partir da leitura do livro, que me afastei de escrita ou filmes baseados no Holocausto, pois acabava sempre por viver demasiado a história e no fim ficava uma sensação de revolta pela desumanidade do ser humano.
    Tu ganhaste maturidade. Eu não quero perder a fé na humanidade e fujo...

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    1. O relato é brutalmente cru, apesar de uma certa leveza. Porque não há filtro e as descrições de Anne ativam todo o nosso lado de reflexão.
      Compreendo-te!
      Vamos manter a fé na humanidade, ainda há pessoas que a fazem valer a pena

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  17. Ja li algumas frases já ouvi falar muito do livro e do seu conteúdo.
    Não calhou lê lo, ainda, mas gostava, são assuntos que gosto de saber, embora saiba do que se trata. Não sei se viste, mas adorei o filme: o Pianista, pena ser uma história que se paasou mesmo. O livro é igual, mas quero muito lê lo sim.
    Beijinhos linda.

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    1. Vale muito a pena lê-lo. E, em parte, arrependo-me de só agora lhe ter dado uma oportunidade. Mas tudo acontece por uma razão :)
      Nunca o vi, mas já ouvi falar muito. Obrigada pela dica, minha querida

      Beijinho grande

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  18. já li algumas resenhas do livro a história emociona muito, o livro é incrível, Andreia bjs.
    http://www.lucimarmoreira.com/

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    1. É daqueles livros que valem muito a pena, sem qualquer dúvida!

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  19. Pois ficaaaa :3

    Desconhecia o livro por completo, mas já me surpreendeu pelo conceito, meu bem!!!

    NEW BRANDING POST | THE WALLS OF MY ROOM TELL STORIES!
    InstagramFacebook Official PageMiguel Gouveia / Blog Pieces Of Me :D

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  20. Já li, gostei e recomendo, acho que vale a pena.
    Bjs

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  21. É um livro incrível, mas ao mesmo tempo dá-nos uma raiva por os nossos antepassados terem feito o que fizeram.
    Admirei muito a Anne, uma força incrível para a idade.
    Beijinhos

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    1. Desperta-nos um misto de sentimentos e sensações! É daqueles testemunhos que, depois de lidos, não conseguimos esquecer.
      Tem uma força surpreendente, sem dúvida *-*

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  22. Ando há tanto tempo para ler este livro, quero mesmo mesmo muito, mas não deve ser nada nada leve...

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    1. Como te compreendo, minha linda. Andei muito tempo a adiar, mas ainda bem que deixei de o fazer. É um testemunho que nos revolta, mas que também nos inspira. A descrição de Anne é incrível

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  23. Já li este livro mais do que uma vez e fico sempre de coração apertado. Foi este livro que despertou a minha atenção para a segunda guerra mundial, para o holocausto. Foi este livro que me fez questionar tudo e ainda hoje há tantas perguntas por responder...

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    1. Lamento ter demorado tanto tempo a lê-lo, porque é um relato impressionante!
      Pois é, há ainda tanto por responder :/

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  24. Um livro que já me fez chorar... já o li, algumas vezes... e fico sempre incrédula, com a crueldade dos seres humanos... Triste a sua história... por ter morrido poucos dias antes, do campo de concentração onde estava, ter sido tomado pelas tropas aliadas, e os sobreviventes libertados...
    Beijinho
    Ana

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    1. Tão perto da liberdade e, depois, uma reviravolta inquietante :/

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