Entrelinhas #75
![]() |
Fotografia da minha autoria |
«Há uma instituição portuguesa que é única no mundo inteiro. É o já agora. Noutras culturas, tratar-se-ia de um pleonasmo. Na nossa, faz parte do pasmo»
O meu coração hospeda determinados autores com o mesmo cuidado como se fossem família. Porque, mesmo sem os conhecer pessoalmente, acompanham inúmeras fases da minha vida - e do meu crescimento. Marcam a minha jornada. E são, igualmente, um refúgio, onde me aconchego sem filtros. Por essa razão, há escolhas das quais não abdico. E Miguel Esteves Cardoso é uma delas. Porque é uma referência e porque tem uma capacidade brilhante de superação.
É sempre complicado - e, talvez, um pouco ingrato -, do meu ponto de vista, analisar um livro de crónicas, uma vez que, por muito que apresentem um fio condutor, são textos que se fazem valer pela sua individualidade. Contam histórias muito particulares, dentro de um mundo muito próprio. Por isso, tenho sempre a sensação de que ficou tanto por realçar. No entanto, é um registo no qual adoro perder-me, sobretudo, quando tem o cunho de MEC. É impressionante a sua atenção ao detalhe e o seu interesse genuíno por temáticas, aparentemente, banais e sem relevância para a nossa formação - enquanto seres autónomos e enquanto parte integrante da sociedade. Através da sua escrita, compreendemos que tudo tem valor, desde que nos permitamos ser curiosos.
A Causa das Coisas vem provar isso mesmo. Porque só o autor poderia, por exemplo, dissertar acerca de listas telefónicas com tanto entusiasmo e encanto, envolvendo-nos no seu pensamento. Quando comecei a acompanhar Fugiram de Casa de Seus Pais, entendi, em pleno, todo o seu cuidado com os pequenos nadas, que o levam a pesquisas aprofundadas. E eu sinto que esta característica, para além de maravilhosa, é um enorme sinal de respeito por todas as particularidades que compõem a nossa existência, ainda que, na maior parte das ocasiões, nem nos lembremos delas. Neste que é o seu primeiro livro de crónicas publicado, tudo é uma porta em aberto, desde as alcatifas à corrupção, passando pelos ódios, pela paixão, pelo tempo, pelas desconversas e por uma série de outros tópicos que, através de reflexões ponderadas e pertinentes, nos incitam a observar para lá da nossa bolha. Simultaneamente, denota-se uma certa transversalidade e intemporalidade nos assuntos que aborda, permitindo uma identificação contínua. Com um estilo perspicaz, mordaz, cómico e irreverente, concentrou-se num povo tão rico em pormenores: o português.
Esta obra, como o título sugere, está dividida em dois capítulos centrais: as Causas e as Coisas. No primeiro, que é o mais longo, viajamos pelas qualidades e pelos defeitos da população, destacando aquilo que nos distingue e que nos torna tipicamente portugueses. No segundo, encontramos artigos específicos, que fazem - ou fizeram - parte da nossa história. Portanto, há uma espécie de recuperação de memórias, que nos aproxima de momentos e contextos antigos. Ambas as partes respiram e transmitem vida portuguesa. E recordam-nos aquilo que nos torna únicos, como se fossemos um traço de arte. Embora existam alguns hábitos que o autor considera desagradáveis, há uma clara partilha de admiração por outros. E esta oscilação garante-nos uma leitura com ritmo. Ademais, e tendo em conta que nada é por acaso, existe um retrato sociocultural da essência Lusitana, em consequência de aspetos tão valiosos do seu quotidiano.
As crónicas remontam aos anos 80, mas permanecem tão atuais que chega a ser surreal - mas, igualmente, agradável e familiar. Porém, isso só é possível porque Miguel Esteves Cardoso tem um método coerente, organizado e fundamentado para expor as suas ideias. E é essa mestria que nos desarma, porque parece que nos lê através das suas palavras.
Deixo-vos, agora, com algumas citações:
«O pior defeito do homem português é achar-se melhor e mais capaz que a mulher. A maior qualidade da mulher portuguesa é não ligar nada a essas crassas generalizações, sabendo perfeitamente que não é verdade» [p:104];
«Dizem que só se devem ler livros bons, e não podia ser mais tamanha a estupidez. Ler é uma necessidade como comer - não é só luxo, arte e aprender. Quando não há rosbife, come-se um rissol. E quando não há um bom livro, lê-se outra merda qualquer. Havendo educação, não são os livros que são "indispensáveis" - é a própria leitura. Tanto os bons poetas como as tampas dos detergentes, tanto os bons romances como os maus - assim como há variedade na qualidade e no agrado daquilo que temos que comer, também o mesmo acontece com o que temos de ler» [pps:153/154];
«É por ser tão poética a morte em Portugal que não tem qualquer significado o desuso em que parece ter caído o luto. Há até um verbo lindíssimo que descreve o sofrimento que se sente pela morte de alguém de quem se goste. E não há braçadeira, nem contorno negro de carta, que tenha a cor que este verbo bem: enoitece-se» [p:170].
Nota: O blogue tornou-se afiliado da Wook. Ao comprarem através dos links disponibilizados, estão a contribuir para o seu crescimento literário. Obrigada ❣
Entendo bem esse sentimento em relação aos autores, determinados autores, sinto isso especialmente em relação a alguns poetas, especialmente. Não conheço o autor por ti citado, mas o livro me pareceu interessante, inclusive fiquei aqui pensando sobre as citações - pequenos trechos assim podem, às vezes, abrir tantos outros dentro de nós sobre nós mesmos, inclusive.
ResponderEliminarVi as fotos dos teus gatos pretos, são lindos! Comentei lá.
Abraços, Andreia!
É o gosto pela leitura que faz com que" nos prendamos aos Autores" :)) Muito bom:))
ResponderEliminarBjos
Votos de uma óptima Quinta-Feira
Nunca li, mas vou tomar nota!
ResponderEliminarIsabel Sá
Brilhos da Moda
Gosto muito do Miguel Esteves Cardoso tanto como escritor, como comentador e jornalista.
ResponderEliminarUm abraço e continuação de uma boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Pronto, lá vou eu comprar mais livros, que vicio!!
ResponderEliminarOh que amor, quem sabe um dia o compre.
ResponderEliminarBeijinhos, https://diamonds-inthe-sky.blogspot.com
Mais um que não conhecia, mas parece ser bastante bom para ler
ResponderEliminarBeijinhos
Novo post //Intagram
Tem post novos todos os dias
Gostei, parece uma obra bastante interessante! Beijinhos*
ResponderEliminarO MEC tem uma escrita desconcertante e que surpreende o leitor em quase todas as páginas.
ResponderEliminarPor isso, vale a pena ler a tua sugestão.
Andreia, um bom fim de semana e um Feliz Natal.
Beijo.
Acho que um dia destes dou uma segunda oportunidade ao Miguel Esteves Cardoso!
ResponderEliminarBjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram
Por acaso nunca li, mas tenho imensa curiosidade! :)
ResponderEliminarbeijinhos
www.amarcadamarta.pt
Gosto tanto do MEC :) Tenho de ler este, o teu review despertou-me o interesse :)
ResponderEliminarBeijinhos
https://matildeferreira.co.uk
Dos três livros que li do MEC, o melhor para mim foi "Como é linda a puta da vida", foi o que mais me marcou. Os outros que li já os senti mais repetitivos.
ResponderEliminarAinda assim, o autor é um sábio das palavras.
Beijinhos!
Também já tive oportunidade de ler «Como é linda a puta da vida» e adorei! Tem um registo mais pessoal, deixando-nos conhecer um lado de MEC que não é assim tão visível
EliminarBeijinhos
Dos três livros que li do MEC, o melhor para mim foi "Como é linda a puta da vida", foi o que mais me marcou. Os outros que li já os senti mais repetitivos.
ResponderEliminarAinda assim, o autor é um sábio das palavras.
Beijinhos!
Por acaso não conhecia mas parece ser um livro bastante interessante e curioso.
ResponderEliminarBeijinhos
http://virginiaferreira91.blogspot.com
I haven't heard about this book, but seems interesting!!
ResponderEliminarMy Blog | Instagram | Bloglovin
Oh, minha lista 'to reaaaaaaad'... anda cá que tenho mais um título para te acrescentar... :) ihihihih
ResponderEliminar