Entrelinhas #61

Fotografia da minha autoria


«(...) grandes homens de cultura e que primaram pela interligação fundamental entre a palavra e a música patente nos três ciclos de canções sobre poesia de Eugénio de Andrade, que Lopes-Graça compôs, bem como num diálogo muito mais vasto que a correspondência entre ambos»



A literatura não se encerra nas palavras. Assim como todas as expressões artísticas conseguem sempre ser mais do que a área que abraçam. Aliás, ainda que tenham todo o mérito em separado, uma vez que nos emocionam com as suas características distintas, é a articulação entre elas que potencia uma valorização acentuada, na medida em que exploram novas vertentes. E é interessante compreender como a sucessiva fusão de ideias permite estabelecer uma ponte entre as várias artes. É por isso que a conversa intimista entre a escrita e a melodia não me parece improvável. Parece-me, sim, inevitável. E fundamental.

Tiago Manuel da Hora evidenciou o quanto essa ligação - e a consequente partilha - é possível, vantajosa e, sobretudo, prazerosa, através de uma obra que privilegia o diálogo entre a música e a poesia, destacando duas referências importantíssimas da nossa cultura: Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade. A correspondência trocada entre ambos resulta numa conversação artística inspiradora, não só por ficarem registados episódios caricatos, mas também por nos permitirem conhecer os meandros da vida cultural portuguesa, na segunda metade do século XX. A título de curiosidade, as cartas do poeta encontram-se preservadas na Biblioteca Municipal Pública do Porto, enquanto as do compositor estão no Museu da Música Portuguesa.

Neste livro há uma constante troca de opiniões e de planos. E a cumplicidade entre as duas figuras tão ilustres é notória, o que nos aproxima das suas emoções, das suas frustrações, das suas conquistas e do respeito mútuo. Apesar de existir uma maior incidência na componente profissional, também existe espaço para questões mais pessoais. E há um certo pesar no silêncio, quando não conseguem corresponder-se com a regularidade pretendida/desejada. Dois aspetos, facilmente, identificáveis são a honestidade de parte a parte e a formalidade do discurso, que, mesmo assim, não se torna impessoal. Aliando estes fatores à extensão dos manuscritos, a leitura é feita de uma forma bastante célere e, inclusivamente, viciante. O único ponto negativo prende-se com uma pequena troca na ordem cronológica de determinadas cartas, pois influência a sequência de pergunta-resposta, descontextualizando-a. Além disso, existe uma quebra temporal significativa entre o contraponto - o que, acredito, não seja da responsabilidade do autor, pois devem faltar alguns registos originais. Porém, altera o ritmo, a dinâmica, da narrativa, porque fica a sensação de que houve assuntos que não foram abordados. No entanto, o teor das mensagens é tão elegante, tão sincero, que nos faz esquecer tudo o resto, levando-nos a desfrutar desta partilha.

Com o intuito de compreendermos a natureza de Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade: o diálogo entre a música e a poesia, são-nos fornecidos elementos biográficos e uma nota introdutória - que atribui sentido à sua existência, ao mesmo tempo que nos explica a organização da obra. No final, encontramos uma listagem de apontamentos referentes a algumas temáticas abordadas ao longo do texto - e que não foram introduzidas no seu decurso para evitar ruído. Este livro foi uma autêntica surpresa e agradou-me o cuidado de preservarem as cartas tal como foram escritas, só acrescentando anotações que pudessem clarificar detalhes menos percetíveis. A presença da crítica e o foco no quanto as questões burocráticas podem atrasar a execução de projetos, faz-nos ter uma ideia mais fidedigna de como se processavam as coisas na altura. Mas há, principalmente, uma mensagem de esperança, porque continuaram a criar. E a tentar. Por fim, mas não menos importante, «traz a lume elementos eminentemente biográficos pela pena dos próprios artistas», o que enriquece o conteúdo da obra. E nos deixa mais perto do compositor, do poeta e daquilo que os une.


Deixo-vos, agora, com algumas citações:

«Todos os amantes são lendários, todos têm uma face branca e matinal e outra nocturna e orvalhada. E todos caminham ao encontro da noite que, impiedosamente, os devora. O mundo é demasiado frágil para os amorosos...» [p:33];

«Que diabo, como foi isto arranjado! Não há maneira de fazermos o quer que seja sem mácula...» [p:75];

«Querido Amigo: Estranho a sua falta de notícias. Não terá recebido a minha carta, ou estará doente, o que será bem pior?» [p:79];

«(...) que lhe hei-de eu dizer acerca dos seus versos que Você não saiba já: que eles me deliciam sempre, que eles "cantam" sempre em mim, que Você é de facto um Poeta de eleição...» [p:103];

«(...) depois caí a um poço, como de vez em quando me acontece. E custa muito vir à tona, sem "fios de oiro" a puxar por mim. De vez em quando olho a sua carta, entre muitas outras que aguardam resposta, e fico aflito com o meu silêncio. E como nunca falo desta agonia, até os amigos me julgam mal. O preço da solidão V. bem o conhece. É inútil falar-lhe. Espero vê-lo por cá breve» [p:152].



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Comentários

  1. Deve ser um livro bem interessante sobre estes dois gigantes da nossa cultura, ainda tive o prazer de conhecer pessoalmente o Lopes Graça.
    Continuação de uma boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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  2. Das conciliaçoes mais bonitas, juntar poesia e musica :) Sem duvida um bom livro para ler ao meu Lu quando ele for para a escola :)
    Bjinhosss
    https://matildeferreira.co.uk/

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  3. Embora, Eugénio de Andrade não tenha nascido na cidade invicta, é um POETA da nossa cidade.

    Vou procurar um CD do Lopes Graça, que me ofereceu uma amiga portuguesa.

    Estou absolutamente interessada neste livro.

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  4. Mais uma interessante sugestão.
    E superiormente apresentada (parabéns).
    Andreia, continuação de boa semana.
    Beijo.

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  5. Boa tarde. Mais uma brilhante publicação :)) Adorei

    Hoje... O teu sussurro.

    Bjos
    Votos de uma óptima Quinta-Feira

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  6. Acho que ainda vamos ouvir falar muito de ti :)

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  7. Acho que me lembre desse livro nunca tinha ouvido falar
    Beijinhos
    Novo post // CantinhoDaSofia /Facebook /Intagram
    Tem post novos todos os dias

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  8. Excelente apresentação. Um livro de excelência.
    Vou procurar amanhã na Feira do Livro.
    Obrigada
    Beijinho

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  9. Ainda não li o livro mas pelo que li aqui, é um livro maravilhoso, bastante interessante, Andreia bjs.

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  10. Não conhecia este livro e fiquei muito curiosa, uma interessante conjugação de autores.

    Beijinhos! :)

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  11. Não conhecia, mas creio que ia gostar! :D
    beijinhos

    www.amarcadamarta.pt

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  12. Fiquei muito interessada no livro... Tens razão, a mescla das artes é algo divino.
    A propósito, estou apaixonada pelas patinhas fofinhas e branquinhas do gato da foto! Muito lindo.
    Espero que estejas tendo um ótimo dia. :)
    Com amor,
    Rai
    Alegoria da Primavera

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  13. Gostei bastante do post querida, principalmente das quotes :D
    Uma óptima sugestão :D
    Beijinho *

    https://w-m-mind.blogs.sapo.pt/

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  14. "A literatura não se encerra nas palavras. Assim como todas as expressões artísticas conseguem sempre ser mais do que a área que abraçam." Amei esse trechinho!

    O livro deve ser muito interessante, pena que não tenho tempo ultimamente para ler.

    It's Lizzie | Facebook

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  15. Não conhecia, mas parece muito interessante!

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  16. Acho que nem consigo acrescentar mais nada ao que disseste. É precisamente isso. A mudança interior, por muito que as pessoas à nossa volta possam ajudar, só parte de nós. E é isso que dá sentido à vida, no geral :D
    Obrigado, meu bem :D

    Não conhecia mas achei o conceito e as temáticas de grande interesse. Sou cada vez mais fã de livros que nos mostrem o lado real da vida! Sem dúvida dos que me deu vontade de devorar!

    NEW YOUTUBE POST | I CHANGED MY BEAUTY CORNER. :o
    InstagramFacebook Official PageMiguel Gouveia / Blog Pieces Of Me :D

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