o pai natal não vive no polo norte, afonso cruz

Fotografia da minha autoria



O livro Para Onde Vão os Guarda-Chuvas é um dos meus favoritos do Afonso Cruz, por uma série de razões, a começar pelo facto de, para mim, espelhar a mestria com que o autor cria cenários efabulados, tornando-os credíveis, apetecíveis. E falo-vos deste título em concreto porque uma das suas obras mais recentes relaciona-se com ele.


urdir sombra e luz

O Pai Natal Não Vive no Polo Norte talvez seja uma das suas obras mais provocadoras, irónicas, porque o texto e as ilustrações estão em permanente contradição, levando-nos a considerar o que vemos, o que incentivamos, as narrativas que reproduzimos. Em simultâneo, alerta-nos para realidades antagónicas, como se pretendesse interligar a esperança e o descontentamento, como se nos quisesse mostrar que a vida necessita deste equilíbrio constante, para que consigamos manter-nos de pé, em movimento.

Perante uma mensagem que nos desconcerta, sobretudo pelo contraste entre os temas e os traços tão cheios de cor, que nos fazem acreditar num mundo extraordinário, somos confrontados por uma certa inversão de valores, pela hipocrisia que vai conquistando espaço, pelo consumismo exacerbado, pela superficialidade. Através de uma figura tão carismática como o Pai Natal, Afonso Cruz desassossega-nos, porque nos convida a iniciar um debate sério, cada vez mais urgente, sobre as festividades.

Se é verdade que a quadra natalícia é um espelho de amor, solidariedade, empatia e família, também é verdade que vamos observando uma adulteração da sua essência. E na procura de um Natal idílico, esquecemo-nos (ou preferimos não ver) que do outro lado do espelho encontramos desigualdades profundas, segundas intenções, vários tipos de poluição, trabalho infantil, oportunidades de negócio e uma infinidade de outras questões que não se coadunam com aquilo que deveria ser a sua celebração.

«Por vezes, abraça-as e dá-lhes palmadas nas costas, como nós fazemos quando vemos pessoas de quem temos saudades»

Incentivamos as crianças a acreditar, a imaginar, a não prescindir do encanto e, até, da inocência de prolongar a magia da utopia, mas a que custo? Estaremos a salvaguardar o seu futuro ao permiti-lo? Ou deveremos, antes, começar a alertá-las mais cedo para os efeitos das nossas ações? Como escreveu Joana Bértholo, no Posfácio, «uma das muitas coisas que me atraem nos seus livros é a forma que têm de urdir sombra e luz, levando-nos pela mão, pelo que na experiência humana há de inconcebível, intratável ou penoso, sem nos deixar perder de vista a beleza, a poesia e o espanto». Por isso, este conto não pretende plantar a semente da deceção, mas, pelo contrário, fazer-nos pensar e, talvez, compreender que há diferença entre sonhar e alimentar a ilusão.

Por outro lado, creio que esta obra é um exercício de imaginação extraordinário, repescando a identidade dos mitos, das lendas, das histórias que nos trazem algum alento e que passamos entre gerações, quase como se fossem um legado inquebrável.

O Pai Natal Não Vive no Polo Norte faz-nos pensar nas incongruências do ser humano, na quantidade de vezes que dizemos algo e fazemos precisamente o oposto. Num claro manifesto de consciencialização, não assume, ainda assim, um tom derrotista, antes pelo contrário, mostra-nos que apenas precisamos de redescobrir o «potencial mágico» sem colocar em causa a generosidade, o planeta e a dignidade das pessoas.


🎧 Música para acompanhar: Prenda de Última Hora, João Couto



Disponibilidade: Wook | Bertrand

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